HUMANIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL: PERSPECTIVAS E DESAFIOS
Organizadores: Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa, Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa, Adriano Marteleto Godinho. Pesquisa financiada pela Capes, realizada pelo Grupo de Pesquisa e Extensão Perspectivas e Desafios de Humanização do Direito Civil-Constitucional (UFPB)
Humanização_do_Direito_Civil_Con stitucional02.pdf
Documento PDF (1.7MB)
Documento PDF (1.7MB)
HUMANIZAÇÃO DO
DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
PERSPECTIVAS E DESAFIOS
Organizadores
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa
Adriano Marteleto Godinho
Coordenação Científica
Rodrigo Toscano de Brito
Pedro Pontes de Azevedo
André Gomes Alves
Juliana Fernandes Moreira
Alfredo Rangel Ribeiro
HUMANIZAÇÃO DO
DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
PERSPECTIVAS E DESAFIOS
Grupo de pesquisa cadastrado no Cnpq
Perspectivas e Novos Desafios de Humanização do Direito Civil-Constitucional
Pesquisa financiada pela Capes
Florianópolis – 2014
Editora CONCEITO EDITORIAL
Presidente
Salézio Costa
Editores
Orides Mezzaroba
Valdemar P. da Luz
Assistente Editorial
Lourdes Fernandes Silva
Capa e Diagramação
Paulo H. Benczik
Conselho Editorial
André Maia
Adriana Mildart
Aline de C. M. Maia Liberato
Carlos Alberto P. de Castro
Cesar Luiz Pasold
Diego Araujo Campos
Edson Luiz Barbosa
Fauzi Hassan Choukr
Jacinto Coutinho
Jerson Gonçalves C. Junior
João Batista Lazzari
Jonas Machado Ramos
José Antônio Peres Gediel
José Antônio Savaris
Lenio Luiz Streck
Marcelo Alkmim
Martonio Mont´Alverne B. Lima
Michel Mascarenhas
Renata Elaine Silva
Samantha Ribeiro Meyer Pflug
Sérgio Ricardo F. de Aquino
Theodoro Vicente Agostinho
Vicente Barreto
Vladmir Oliveira da Silveira
Wagner Balera
Catalogação na Publicação: Bibliotecária Cristina G. de Amorim CRB-14/898
H918
Humanização do Direito Civil Constitucional: Perspectivas e desafios – Organizadores:
Adriano Marteleto Godinho; Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa; Maria Luiza
Pereira de Alencar Mayer Feitosa - Florianópolis: Conceito Editorial, 2014.
352p.
ISBN 978-85-7874-401-4
1. Direito Civil Constitucional 2. Direito Civil Humanizado 3. Perspectivas
4. Desafios I. Godinho, Adriano Marteleto II. Costa, Ana Paula Correia de
Albuquerque da III. Feitosa, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer (organizadores).
CDU – 347
Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo.
A violação dos direitos autorais é punível como crime, previsto no Código Penal e
na Lei de direitos autorais (Lei nº 9.610, de 19.02.1998).
© Copyright 2014 Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Rua Hipólito Gregório Pereira, 700 – 3º Andar
Canasvieiras – Florianópolis/SC – CEP: 88054-210
Editorial: Fone (48) 3205-1300 – editorial@conceitojur.com.br
Comercial: Fone (48) 3240-1300 – comercial@conceitojur.com.br
www.conceitojur.com.br
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.................................................................................................... 9
1
DIREITOS HUMANOS NA SEARA JUSPRIVATÍSTICA: A TUTELA DA
PERSONALIDADE................................................................................................ 11
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa
Clarissa Gomes
Príscila Ferreira
2
A CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉTICA À LUZ DO DIREITO CIVIL
CONSTITUCIONAL.............................................................................................. 37
Robson Antão de Medeiros
Suênia Oliveira Vasconcelos
3
A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ....................... 59
Marcos Ehrhardt Júnior
4
O PAPEL DA BOA-FÉ NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO: ABUSO
DE DIREITO, TUTELA DA CONFIANÇA E SUA CONCREÇÃO NA
JURISPRUDÊNCIA............................................................................................... 93
Adriano Marteleto Godinho
Ellen Imperiano de Amorim
Luana Cavalcanti Porto
Renato Braga Tavares
5
5
ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL: A BOA-FÉ OBJETIVA EM CONCRETO...113
William Bispo de Melo
Sterfesson Higo de Lima Ferreira
Pedro Pontes de Azevedo.
6
A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA
NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA FAMILIAR
(PRONAF) COMO MOTOR DE DESENVOLVIMENTO NACIONAL................139
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
Sandra Terto Sampaio Rodrigues
7
O CONSENTIMENTO INFORMADO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA
POR AUSÊNCIA OU DEFICIÊNCIA DO DEVER DE INFORMAÇÃO AO
PACIENTE............................................................................................................175
Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha
8
O ACESSO A INFORMAÇÕES E A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS
AGENTES PÚBLICOS.........................................................................................209
Rosilene Paiva Marinho de Sousa
Fenando Antônio de Vasconcelos
Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira
9
O DANO MORAL COMO EFETIVAÇÃO DA TUTELA JURÍDICA DA
PERSONALIDADE À LUZ DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO
CIVIL....................................................................................................................235
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa
Guilherme Pinto do Nascimento
Sterfesson Higo de Lima
Wallace Leonardo de Aguiar
6
10
O FENÔMENO DA DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL INDIRETA
COMO INSTRUMENTO DE FUNCIONALIZAÇÃO DA POSSE E DA
PROPRIEDADE...................................................................................................251
Adriano Marteleto Godinho
José Humberto Pereira Muniz Filho
Juliane da Silva Heman
Roberto de Oliveira Batista Júnior
11
RESPONSABILIDADE AFETIVA DOS FILHOS.................................................279
Dimitre Braga Soares de Carvalho
Jéssica Alessandra Barbosa Dantas
ZurisadaiLidna Silva Guedes
12
NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO ESTÁVEL COMO ATO
JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO....................................................................293
Olavo Nóbrega de Sousa Netto
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa
Juliana Fernandes Moreira
13
DA CATIVIDADE MARCÁRIA COMO NOVO FUNDAMENTO DA
RESPONSABILIDADE CIVIL EMPRESARIAL...................................................329
André Luiz Cavalcanti Cabral
7
APRESENTAÇÃO
Criado em 2012 no âmbito da Universidade Federal da Paraíba,
por iniciativa de seus docentes, o Instituto de Pesquisa e Extensão Perspectivas e Desafios de Humanização do Direito Civil-Constitucional
(IDCC) surgiu com o propósito de promover o estudo dos institutos
civis, à luz da moderna principiologia do Direito Civil, sempre ancorada
nos reflexos operados pelos valores emanados do texto da Constituição
da República.
A obra que agora se apresenta é tanto fruto dos debates travados
por ocasião do I Seminário do IDCC quanto das pesquisas realizadas
por docentes e discentes da UFPB, bem como de outras instituições de
ensino do País. Ela nasce como um marco do referido Instituto, revelando, a um só tempo, o viés expansionista das atividades da entidade e
a preocupação com o progresso da ciência jurídica, particularmente na
seara jusprivatística.
Os treze estudos que compõem este volume, que abarcam as mais
variadas esferas do Direito Civil, do Biodireito e do Direito Empresarial, têm em comum o propósito de apresentar uma nova roupagem às
instituições de Direito Privado, agora irremediavelmente marcadas pelos movimentos da constitucionalização, da despatrimonialização e da
funcionalização. Propõe-se ora a releitura de velhos institutos jurídicos,
ora a análise de novos fenômenos, sempre sob o fio condutor da principiologia civil-constitucional.
O papel dos juristas do nosso tempo consiste precisamente em
delinear adequadamente o sentido dos institutos civis. Esta é a missão
que orienta a edição esta obra. Estão abertos os debates.
9
1
DIREITOS HUMANOS NA SEARA
JUSPRIVATÍSTICA: A TUTELA DA
PERSONALIDADE
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa1
- Clarissa Gomes2
- Príscila Ferreira3
SUMÁRIO: Introdução - 1. Direitos Humanos e Direitos
Fundamentais - 1.1. Direitos Humanos - 1.1.1.Conceito 1.1.2. Histórico e Gerações - 1.2. Direitos Fundamentais - 2.
Constitucionalização dos Direitos - 3. Tutela dos Direitos da
Personalidade - 3.1. Personalidade e Direitos da Personalidade
- 3.1.1. Princípio da dignidade da pessoa humana - 3.1.2.
Pessoa e Personalidade Jurídica - 3.1.3. Os Direitos da
Personalidade: conceito, evolução e características - 3.1.4. Os
Direitos da Personalidade no Novo Código Civil - 3.2. Direitos
Fundamentais, Direitos Humanos e Direitos da Personalidade 4. Qual o alcance dos Direitos Humanos na seara jusprivatística
- Conclusões - Referências
1 Professora da Universidade Federal da Paraíba. Mestra em Ciências Jurídicas pela Universidade
Federal da Paraíba e Doutoranda em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade
Federal da Paraíba.
2 Acadêmica do 9º período de Direito da Universidade Federal da Paraíba.
3 Acadêmica do 9º período de Direito da Universidade Federal da Paraíba.
11
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Clarissa Gomes - Príscila Ferreira
Introdução
O presente artigo se propõe a resolver o seguinte problema: o ser
humano, enquanto sujeito de direitos, dispõe de direitos que lhes são
intrínsecos à sua própria existência. Dentre eles, estão os direitos da
personalidade, assim conhecidos pelos civilistas. Ocorre que os direitos
fundamentais passaram recentemente pelo fenômeno da eficácia horizontal, ou seja, direitos que são tradicionalmente oponíveis ao Estado e
agora também o são aos particulares. Resta saber se é possível verificar
de fato a eficácia horizontal, igualmente, em relação aos direitos da personalidade, determinando seu alcance, âmbito e sujeitos de proteção.
Quem é o homem, ou melhor, o sujeito dos direitos humanos? A
noção de homem parece ser um sentido abstrato, mas o que existe é o
homem concreto, o cidadão. Com a evolução da humanidade, surgiram
problemas relacionados à universalidade desses direitos, fala-se que a expansão dos direitos humanos ultrapassa a noção de homem. São protegidos os direitos do homem não apenas enquanto ser individual, mas de coletividades ou grupos humanos: minorias; mulheres; negros, entre outros.
Por que o homem é titular de direitos? Todo o conjunto dos direitos humanos encontra-se ancorado na concepção de dignidade humana. Esta pode estar relacionada com a ideia de direitos humanos por
serem estes direitos necessários à concepção da própria dignidade.
Pois bem, partindo de tal ponto, na doutrina de CARLOS ALBERTO BITTAR pode-se considerar como os da personalidade os direitos reconhecidos ao indivíduo tomado em si mesmo e em suas projeções
na sociedade4. Não se pode negar, pois, que os direitos da personalidade
estão intimamente ligados à concepção de dignidade e, como tais, devem ser protegidos. Tais direitos podem ser analisados em dois planos
distintos, quais sejam, entre particulares e face ao Estado.
Enquanto os direitos humanos fundamentais requerem de uma
atuação positiva ou negativa do ente público, e são, frequentemente demandados, no plano privado, a seu turno, não são muitos os casos levados aos tribunais, entre nós, a respeito de reflexos privados dos direitos
da personalidade5.
4 BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade. 7. ed. 1 reimpressão. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008, p. 1.
5 Ibid., p. 37.
12
1 • DIREITOS HUMANOS NA SEARA JUSPRIVATÍSTICA: A TUTELA DA PERSONALIDADE
Ora, enquanto direitos inatos, relacionados à própria concepção
de dignidade humana, os direitos da personalidade devem ser objeto da
mais ampla proteção, não apenas na esfera pública, mas também entre
particulares.
Todavia, mesmo entendendo que os direitos humanos também
são aplicados no plano horizontal, à tutela da personalidade, enquanto
direito humano, nas relações privadas ainda se demonstra tímida diante
do arcabouço jurídico pátrio.
Desse modo, pretende-se aqui afirmar o caráter humanitário dos
direitos da personalidade e demonstrar que, como tais, direitos necessários à concepção de dignidade, devem ser protegidos e aclamados não
apenas no plano vertical, face ao Estado, mas também no plano privado,
frente a particulares.
1. Direitos Humanos e Direitos Fundamentais
1.1. Direitos Humanos
1.1.1.Conceito
O conceito de direitos humanos ainda é muito discutido dentro da
própria doutrina. Há autores que afirmam que são aqueles inerentes ao ser
humano, no entanto, todos os direitos pertencem ao homem ou às suas
emanações. Outra definição seria que os direitos humanos são aqueles dos
quais o homem não pode ser privado do gozo, porém, recai numa seara
formalística. Mais além, numa esfera subjetiva, poder-se-ia dizer que são
os direitos fundamentais da pessoa humana sem os quais o homem, enquanto individuo, não poderia existir ou ter uma existência plena.
Em uma perspectiva terminológica podemos verificar que o texto
constitucional utiliza diversas expressões para se referir aos direitos humanos, como: “direitos e garantias fundamentais”, “direitos e liberdades
fundamentais”, “direitos fundamentais da pessoa humana”, “direitos da
pessoa humana”, “direitos e garantias individuais” e “direitos humanos”6.
Devido a essa inflação de termos, acabamos por ter uma maior dificuldade na definição do que vem a ser direitos humanos.
6 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL 1988.
13
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Clarissa Gomes - Príscila Ferreira
Parte da doutrina procura diferenciar direitos humanos de direitos fundamentais. “Direitos humanos” seriam os direitos estabelecidos
nos tratados internacionais sobre a matéria, enquanto a expressão “direitos fundamentais” seriam os direitos reconhecidos e positivados pelo
Direito Constitucional. 7
Nas palavras de Comparato, os direitos fundamentais são
[...] os direitos humanos reconhecidos como tal pelas autoridades as
quais se atribui o poder político de editar normas, tanto no interior
dos Estados, quando no plano internacional; são direitos humanos
positivados nas Constituições, nas leis, nos tratados internacionais8.
No entanto, essa distinção não tem muita importância porque
dentro da temática de direitos humanos há uma grande aproximação
entre o direito internacional e o direito interno.
1.1.2. Histórico e Gerações
O modo mais tradicional de contar a história dos direitos humanos
é a divisão nas chamadas “gerações de direitos”, embora haja críticas a essa
denominação, uma vez que o termo “geração” traz consigo a impressão de
sucessão, no entanto, o que acontece é um acúmulo de direitos.
O melhor seria chamarmos dimensão ao invés de geração, pois
quando um novo direito surge, os anteriores assumem uma nova dimensão, um novo modo de interpretação, não ocorrendo uma sobreposição de direitos como se faz pensar ao visualizar uma sequência de
gerações de direitos.
A primeira dimensão envolve os direitos de liberdade (prestações
negativas), nas quais o Estado deve garantir a autonomia do indivíduo.
CANOTILHO chama de direitos civis e políticos, onde serão definidas
as competências entre o Estado e o ser humano9. Essa geração tem como
marco as revoluções liberais do século XVIII na Europa e nos EUA, que
tinham o propósito de limitar a intervenção do Estado.
7 MIRANDA, Jorge, Apud RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na
Ordem Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 26.
8 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva,
2000, p. 46.
9 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. rev.Coimbra: Livraria
Almedina, 1993, p. 505.
14
1 • DIREITOS HUMANOS NA SEARA JUSPRIVATÍSTICA: A TUTELA DA PERSONALIDADE
Bonavides ensina que:
[...] os direitos de primeira geração ou direitos da liberdade têm por
titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como
faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que
é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de
oposição perante o Estado10.
A segunda geração de direitos humanos proporciona uma inversão no papel do Estado, que adentrará numa seara ativa, surgindo os
conhecidos direitos sociais, como são denominadas as prestações positivas do Estado. São exemplos desses direitos: saúde, educação, previdência social e habitação.
A segunda geração teve como base a Constituição mexicana de
1917 e a Constituição Alemã de Weimar, de 1919, e o Tratado de Versalhes, que criou a OIT - Organização Internacional do Trabalho, reconhecendo os direitos dos trabalhadores.
Os Direitos de terceira geração ou direitos de solidariedade são
oriundos do olhar do homem sobre o planeta Terra, a exemplo do direito
à paz, ao meio ambiente equilibrado, à autodeterminação, ao desenvolvimento. BONAVIDES defende uma quarta geração de direitos ou dimensão, resultado de uma globalização de direitos humanos, sendo os direitos de participação democrática, informação e direito ao pluralismo.11
Em 1948, a Comissão de Direitos Humanos da ONU tentou
elaborar um tratado internacional de direitos humanos em que se reunissem todos os direitos aceitos pela comunidade internacional. Entretanto, em vista do início da Guerra Fria, um documento uno não foi
passível de ser constituído, pois os blocos capitalistas e socialistas não
entraram em acordo sobre a preponderância desses ou daqueles direitos, o que ocasionou o surgimento de dois tratados: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais.
Desse modo, os direitos protegidos foram classificados em cinco
espécies: direitos civis, direitos políticos, econômicos, sociais e culturais12.
10 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. atual. São Paulo: Malheiros,
1993, p. 475.
11 Ibid., p.524 e seguintes.
12 RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional.
15
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Clarissa Gomes - Príscila Ferreira
Os direitos civis são aqueles referentes à autonomia do indivíduo contra
as interferências do Estado. Os direitos políticos são os direitos de participação, ativa ou passiva, da decisão política e nos cuidados com a coisa
pública. Os direitos econômicos são aqueles que dizem respeito à ordem
econômica do Estado, por exemplo, o direito da pessoa humana de obter
um trabalho digno, uma existência digna para si e para sua família. Os
direitos sociais seriam aqueles que garantem uma prestação positiva por
parte do Estado, atendendo as necessidades dos indivíduos, proporcionando aos seres humanos um nível de vida adequado, dentre eles, alimentação, moradia, vestimenta etc. Os direitos culturais são aqueles que
garantem a participação do indivíduo na vida cultural da comunidade, a
manutenção do patrimônio histórico cultural dentre outros.
1.2. Direitos Fundamentais
Quando se propõe a analisar a relação e extensão dos direitos
fundamentais perante as relações privadas, é de suma importância entender previamente o termo “direitos fundamentais”.
Produto de uma lenta e difícil evolução histórica, os direitos fundamentais são o resultado da consagração de grandes conquistas sociais que, a partir da superação de inúmeras e graves diferenças entre
os sujeitos de direitos, como diz EDUARDO CAMBI13, passaram a representar a pedra angular de praticamente toda a ordem jurídica atual,
especialmente do ocidente. Essas conquistas transformaram o mundo e
a sociedade, influenciando de forma cabal o modo como os Estados são
construídos e organizados.
Podemos afirmar que essas liberdades públicas, surgiram da necessidade de defesa dos indivíduos perante os abusos que o Estado poderia cometer, assim podemos inferir que esses direitos são construídos
a partir dos frutos do idealismo da soberania popular.
Entretanto, ao buscarmos um conceito de direito fundamental,
podemos encontrar diversos devido à tamanha complexidade do tema,
como já dito. Alguns autores podem dar a eles conceitos didáticos e positivo-dogmáticos ou, então, dar aos direitos fundamentais conceitos mais
Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 89 e seguintes.
13 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais,
políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 30
16
1 • DIREITOS HUMANOS NA SEARA JUSPRIVATÍSTICA: A TUTELA DA PERSONALIDADE
analíticos. Cambi, por exemplo, traduz direito fundamental como “princípios que produzem efeitos sobre toda a ordem jurídica, sendo dotados
de uma eficácia expansiva que inclui todos os âmbitos jurídicos.”14
Como citamos anteriormente, os direitos fundamentais possuem
diferentes terminologias, podendo ser chamados de liberdades públicas,
direitos naturais, direitos humanos fundamentais etc. Tamanha gama de
expressões se deve justamente à complexidade e abrangência de seu significado. De certo modo a própria ideia de direitos fundamentais, como
termo, é, ainda assim, limitadora e não traduz completamente todo o
campo abrangido por tais fundamentos.
Apesar da dificuldade em determinar uma expressão exata que
seja suficiente para abarcar todas as concepções sobre esses direitos é
possível encontrar positivado em diversas áreas do direito, em especial
no Direito Civil, normas e princípios declaradamente reconhecidos
como direitos fundamentais, o que pode servir como fundamento à eficácia horizontal dos direitos humanos – diante das relações privadas.
Assim, tratando especificamente dos direitos fundamentais como
meio de defesa e instrumentalização dos Direitos, poderemos caracterizá-los como dotados de historicidade, inalienabilidade, imprescritibilidade, exigibilidade, irrenunciabilidade e universalidade, podendo esses,
também, ser cumulativos.
É importante dizer que os direitos fundamentais são, em sua
grande maioria, relativos, pois não podem ser exercidos em absoluto e
sem restrições, em resumo, eles possuem limites. Entretanto, há quem
diga, como PONTES DE MIRANDA15, que há direitos fundamentais
relativos e absolutos, nos quais os primeiros seriam assim considerados (relativos) devido à necessidade do seu conteúdo e incidência serem
condicionados a previsão de lei, enquanto que direitos absolutos seriam
os derivados diretamente da norma constitucional.
UADI BULOS também faz referência à relatividade dos direitos
fundamentais, admitida na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, e afirma ainda a existência de direitos que seriam absolutos e irrestritos, a exemplo da proibição à tortura e do tratamento desumano.16
14 Ibid., p. 31
15 MIRANDA, Pontes, Apud. SILVA, José Afonso da. Curso de direito Constitucional Positivo.
34. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 181.
16 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. rev. e atual. São Paulo:
17
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Clarissa Gomes - Príscila Ferreira
Enfim, após verificar o que foi disposto, poderemos tentar compreender, mais adiante, a partir do conceito e da relação de liberdades
públicas como estrutura primordial do ordenamento jurídico, o que
vem a ser a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, na prevalência
dos direitos da personalidade, e de que forma a doutrina e a jurisprudência vem tratando o tema.
2. Constitucionalização dos Direitos
Um ponto que deve ser tratado mais detidamente é o chamado
fenômeno da Constitucionalização dos Direitos, que está ligado intrinsecamente a denominada Era da Descodificação, expressão determinada
por Natalino Irti.
A priori, vemos que após as grandes modificações da ordem jurídica, resultantes das vitórias conquistadas com as lutas sociais, a Constituição, enfaticamente após a segunda metade do século XX, passou a
ser o núcleo dos ordenamentos jurídicos. Este fato que trazia os direitos
fundamentais como estrutura ideológica primordial aos ordenamentos,
fez com que todo o direito fosse constituído sob uma base principiológica única, representada pela Constituição e conectada diretamente à
ideia de soberania popular e à visão humanística do Direito.
Quando, em meados dos séculos XVIII e XIX, originou-se o movimento de codificação, principalmente no território europeu, a intenção primeira era justamente o embasamento do Direito sobre estruturas
seguras e unitárias, como afirma Daniel Sarmento. Neste caso, o Direito deveria ser sustentado por um código de aspecto geral e abstrato
que teria a finalidade de modificar a ordem jurídica do Antigo Regime,
dotado de uma multiplicidade de ordenamentos. Essa “necessidade” de
codificação pode ser entendida, nas palavras do supracitado autor, da
seguinte forma:
A ideia de Código associa-se, por outro lado, à de sistema. Se a
sistematização favorece a clareza, a harmonia e a ordem no objeto
sistematizado, codificar o Direito significava revesti-lo com aqueles
mesmos predicados, tornando-o mais simples e seguro.17
Saraiva, 2011, p. 523-524.
17 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2010, p. 68.
18
1 • DIREITOS HUMANOS NA SEARA JUSPRIVATÍSTICA: A TUTELA DA PERSONALIDADE
Destarte, ressaltamos o fato de que o Estado proporcionado pela
codificação do Direito é de influência predominantemente Liberal, de
modo a evidenciar a autonomia das relações privadas, demonstrando
claramente uma sociedade de cunho individualista, característica da
primeira geração dos direitos fundamentais.
Entretanto, no século XX, todo esse ideal de que o Código era o
expoente único e perfeito da organização das relações jurídicas e sociais
caí por terra. A sociedade, antes fortemente apegada à perspectiva de
que a fixação dos direitos nos Códigos já seria o suficiente para elencar
a sociedade a um novo patamar, uma sociedade mais justa e livre, agora
visualiza um instrumento falho e que não acompanha a dinâmica da
própria sociedade. Fica clara a relação de que “o direito é produto da
cultura” 18 O Direito é, com o mundo, dinâmico e variável, e necessita
ser entendido como tal.
A sociedade pós-moderna frustrada com tais visões passa a buscar uma maior eficiência dos ordenamentos, gerando a Era da Descodificação de Natalino, um período em que há um aumento irrestrito de
novas espécies normativas. Há uma fragmentação do Direito, ao ponto
de que quase todas as matérias jurídicas de relevante interesse social,
econômico e político possuem seu próprio conjunto de determinações
normativas.
É possível, então, compreender a ordem jurídica não mais dotada
de uma estrutura hierárquica de normas, mas agora como uma rede
crescente de informações, que sistematiza o direito sem deformá-lo ou
dividi-lo em sua essência. Ao mesmo tempo em que o direito se fragmenta ele permanecer unido. O que significa dizer que há uma busca
pela eficiência e organização e não pela divisão do direito em si.
O pensamento anterior, voltado à codificação, defendia a ideia de
um Estado Liberal cominando na defesa, prevalência e autonomia das
relações particulares assim, tinha como principal instrumento o Código
Civil. Entretanto, quando se passou a compreender as vantagens de uma
sistematização das matérias jurídicas, o Código Civil, outrora pilar principal dos ordenamentos jurídicos, passou a ser destituído da exclusividade que detinha em relação a várias matérias, que passam a ser melhor
dispostas em outra espécie normativa.
18 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais,
políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 56.
19
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Clarissa Gomes - Príscila Ferreira
A Constituição, a partir da Segunda Grande Guerra, assumiu o
papel outrora do Código Civil como núcleo dos ordenamentos jurídicos. Por já haver uma íntima conexão da ordem jurídica pós-moderna
com os princípios e normas constitucionais – relação de atendimento
aos direitos fundamentais em predominância com os valores derivados do princípio da dignidade humana. Toda essa expansão do direito constitucional em relação às normas infraconstitucionais teve como
resultado a chamada constitucionalização dos direitos. Essa expressão
é resultado do fato de que os direitos infraconstitucionais devam ser
compreendidos e analisados a partir das determinações e princípios
presentes na Carta Magna.
Os direitos infraconstitucionais devem respeitar os direitos fundamentais erigidos na Constituição de modo a destacar os aspectos sociais das relações jurídicas, a fim de que se possa entender, analisar e
verificar os fenômenos jurídicos ao mesmo tempo de forma individualizada e ampla. Esse modo de atuação permite a utilização da Constituição como complemento ou suplemento, quando, diante de determinada
situação jurídica, a norma infraconstitucional se verificar insuficiente.
Por fim, podemos compreender constitucionalização dos direitos como o fenômeno que permite tanto a introdução de matéria infraconstitucional no corpo constitucional – a partir da ideia de unidade
do direito e de vinculação do legislador aos princípios constitucionais
– como também a vinculação direta de todas as espécies normativas a
própria constituição.
3. Tutela dos Direitos da Personalidade
3.1. Personalidade e Direitos da Personalidade
3.1.1. Princípio da dignidade da pessoa humana
Antes de qualquer coisa, é importante sinalizar como premissa fundamental no estudo de qualquer tema do Direito o princípio da
dignidade da pessoa humana. Esse princípio representa o valor fundamental sobre o qual foi erigido todo o sistema jurídico brasileiro, essencialmente a partir da promulgação da Carta Constitucional de 1988. É
20
1 • DIREITOS HUMANOS NA SEARA JUSPRIVATÍSTICA: A TUTELA DA PERSONALIDADE
a proposição basilar posta na Lei Fundamental que exprime o ser humano como centro do ordenamento jurídico a fim de lhe reconhecer a
importância perante as normas jurídicas.
Dessa forma, a dignidade da pessoa humana transfigura-se no fator essencial para o entendimento correto do que vem a ser a personalidade jurídica e qual o alcance dos direitos da personalidade. Entende-se
que o ordenamento jurídico não intentará apenas a proteção do direito
à vida; mas sim, a tutela do direito à vida digna.
Trazendo para o âmbito especificamente civil, a utilização desse
princípio como norte e fundamento das interpretações das normas faz
com que se tenha uma maior humanização das ações jurídicas, espelho
da Constituição de 1988, ao mesmo tempo em que se colocam as premissas constitucionais relativas aos princípios fundamentais e direitos sociais, individuais e coletivos como postulados essenciais a órbita privada.
Assim, visando ao reconhecimento do princípio da dignidade da
pessoa humana como fundamental ao entendimento da personalidade
e dos direitos da personalidade, compreende-se como fator pungente o
reconhecimento de um mínimo ético, para que se tenha uma correlação
harmoniosa das esferas pública e privada. Isso significa dizer que deve
haver um mínimo de direitos garantidos para que se viva dignamente,
ao mesmo tempo em que se faz a reaproximação da ética e do Direito,
como é explicado por Luis Roberto Barroso.19
3.1.2. Pessoa e Personalidade Jurídica
Acerca dos direitos da personalidade devemos tratar ainda de
dois elementos básicos antes de abordar esses direitos em específico, ou
seja, devemos apresentar, ainda que sinteticamente, a pessoa e a personalidade.
Primeiramente, no que se refere à pessoa, podemos dizer acertadamente que é todo aquele sujeito de direitos. Contudo, não é assim tão
simples. Nesse caso, seguindo o dicionário Aurélio, o vocábulo “pessoa”
pode ser entendido como “o ser humano em seus aspectos biológico, es-
19 BARROSO, Luís Roberto. A Constitucionalização do Direito e o Direito Civil. In: TEPEDINO,
Gustavo (org). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade
constitucional. São Paulo: Editora Atlas, 2008, p. 241.
21
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Clarissa Gomes - Príscila Ferreira
piritual e social”20, enquanto que Maria Helena Diniz o conceitua como
“ente físico ou coletivo susceptível de direitos e obrigações”21.
Ainda assim, como fica evidente após a explanação sobre a influência do princípio da dignidade humana, pessoa não será apenas
aquele que detêm a possibilidade de figurar nas relações jurídicas, mas,
como afirmam Farias e Rosenvald:
Pessoa, enfim, é o sujeito das relações jurídicas que traz consigo
um mínimo de proteção fundamental, necessária para realizar tais
atividades, compatível e adequada às suas características (que são os
direitos da personalidade).22
Ao tentar significar da forma mais prática possível o que se entende por pessoa, juridicamente falando, retira-se também o que pode ser
compreendido como personalidade.
Sílvio de Sávio Venosa, indica que personalidade “é a própria capacidade jurídica, a possibilidade de figurar nos polos da relação jurídica”23. Já Farias e R afirmam que é o reconhecimento da pessoa para atuar
nas relações jurídicas “e reclamar uma proteção jurídica mínima, básica,
reconhecida pelos direitos da personalidade”24.
Vale acrescentar, também, que embora a personalidade e a capacidade estejam constantemente atreladas, elas não constituem sinônimos, mas podem ser entendidas como complementos, na qual a personalidade será o aspecto geral (o valor jurídico que atinge a todos os seres
humanos) e a capacidade o aspecto mais afunilado, sendo concernente
aos seres dotados de personalidade, que podem ser sujeitos de direito
em relações jurídicas patrimoniais.
20 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1995.
21 DINIZ, Maria Helena. Curso se direito civil brasileiro: Teoria Geral do Direito Civil. São
Paulo: Saraiva, 2011, p. 115ª. v.1
22 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. 9. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 142.
23 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. Parte geral. São Paulo: Atlas, 2010, p. 134.
24 FARIAS, op.cit.,p. 144.
22
1 • DIREITOS HUMANOS NA SEARA JUSPRIVATÍSTICA: A TUTELA DA PERSONALIDADE
3.1.3. Os Direitos da Personalidade: conceito, evolução e
características
Em se tratando da origem dos direitos da personalidade podemos constituí-los como elementos jurídicos relativamente novos. O Direito Romano e os gregos pouco falam de tal categoria jurídica, e foi
apenas como elemento fortalecedor do Cristianismo que os direitos da
personalidade começaram a ter alguma relevância. Porém, apenas com
o Iluminismo os direitos da personalidade passaram a ganhar corpo,
tendo como finalidade, inicialmente, ir de encontro ao domínio absoluto do Estado sobre o indivíduo. Somente após a II Guerra Mundial
que se passou a finalmente reconhecer a importância da existência de
direitos que resguardassem e protegessem a pessoa humana, os direitos
da personalidade.
Após a promulgação da Declaração Universal dos Direitos do
Homem é que os Estados passaram a buscar especificamente a inclusão
desses direitos em seus ordenamentos. Em especial os códigos civis, que
passaram a ser reformulados paulatinamente a fim de incluir a proteção
aos direitos da personalidade de forma expressa e ampla. Todavia, só
com a Constituição de 1988 é que se acrescentou de forma premente os
direitos da personalidade na legislação brasileira, seguida alguns anos
depois, de modo acanhado, do Código Civil.
Esse acréscimo na legislação civilista tem grande relevância, pois
propiciou ao próprio direito civil um aumento considerável de instrumentos à sua disposição para acolher mais amplamente os valores constitucionais e assim proporcionar melhor atendimento as necessidades
dos indivíduos nas relações jurídico-privadas.
Em termos simples podemos conceituar direitos da personalidade como àqueles direitos da pessoa sobre ela mesma, desde que não
possam ser avaliados de forma patrimonial – em dinheiro.
Diversos doutrinadores formularam suas próprias definições,
como por exemplo, Rubens Limongi França ao afirmar que os “direitos da personalidade dizem-se as faculdades jurídicas cujo objeto são
os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim as suas
emanações e prolongamento”25 e Orlando Gomes, ao alegar que “sob a
25 FRANÇA, Rubens Limongi. Manual de direito civil. Apud STOCO, Rui. Constitucionalização
dos Direitos da Personalidade (Intimidade, Vida Privada e Imagem) In: (ORGs.) BONAVIDES,
23
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Clarissa Gomes - Príscila Ferreira
denominação de direitos da personalidade compreendem-se os direitos
personalíssimos e os direitos sobre o próprio corpo [...] Destinam-se a
resguardar a eminente dignidade da pessoa humana, preservando-a dos
atentados que pode sofrer por parte dos outros indivíduos”26.
Mesmo com vários conceitos e definições pode-se resumir e assumir, como base fundamental, o que Adriano de Cupis disse: “os direitos
da personalidade são aqueles sem os quais todos os outros direitos subjetivos perderiam o interesse”27.
É importante reiterar o papel dos direitos da personalidade como
garantidores do princípio da dignidade humana, ou seja, de uma perspectiva Civil-Constitucional, que são entendidos como expressões gerais da tutela da pessoa humana, a fim de defender/proteger a personalidade, ou de certa forma, a individualidade da pessoa.
Constam nas fontes dos direitos da personalidade duas correntes
em evidência, a corrente jusnaturalista e a corrente positivista. Os defensores da concepção jusnaturalista dos direitos da personalidade os
entendem como direitos inatos, anteriores a criação do ordenamento
jurídico e como atributos ligados à condição da pessoa humana. Essa
corrente fundamenta os direitos em fatores éticos, religiosos, ideológicos e políticos. Com efeito, é a corrente majoritária no Brasil e no resto
do Mundo.28
Em oposição à corrente anterior os positivistas entendem os
direitos da personalidade como aqueles que só adquirem relevância
jurídica por meio do reconhecimento do Estado. Afirmam que esses
direitos serão fundamentados na norma jurídica e que só podem ser
Paulo; Moraes, Germana e ROSAS, Roberto. Estudos de Direito Constitucional em homenagem
a Cesar Asfor Rocha (teoria da Constituição, direitos fundamentais e jurisdição). Rio de Janeiro:
Renovar, 2009, p. 323.
26 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito civil. Apud STOCO, Rui. Constitucionalização dos
Direitos da Personalidade (Intimidade, Vida Privada e Imagem) In: (ORGs.) BONAVIDES, Paulo;
Moraes, Germana e ROSAS, Roberto. Estudos de Direito Constitucional em homenagem a
Cesar Asfor Rocha (teoria da Constituição, direitos fundamentais e jurisdição). Rio de Janeiro:
Renovar, 2009, p. 324.
27 CUPIS, Adriano de. I dirittidellapersonalità. Apud STOCO, Rui. Constitucionalização dos
Direitos da Personalidade (Intimidade, Vida Privada e Imagem) In: (ORGs.) BONAVIDES, Paulo;
Moraes, Germana e ROSAS, Roberto. Estudos de Direito Constitucional em homenagem a
Cesar Asfor Rocha (teoria da Constituição, direitos fundamentais e jurisdição). Rio de Janeiro:
Renovar, 2009, p. 323.
28 FARIAS, 2011, p. 151.
24
1 • DIREITOS HUMANOS NA SEARA JUSPRIVATÍSTICA: A TUTELA DA PERSONALIDADE
considerados inatos no sentido de que todos pertencem e partilham
da mesma condição/situação jurídico-existencial, como indica um dos
maiores expoentes defensores dessa corrente, GUSTAVO TEPEDINO.29
Entende-se que a natureza jurídica dos direitos da personalidade
é de direito subjetivo, ainda acrescenta que eles são direitos subjetivos de
natureza privada. Explicando esse caráter de direito subjetivo, Adriano
de Cupis afirma que “são aqueles direitos subjetivos cuja função, relativamente à personalidade, é especial, constituindo o mínimo necessário
e imprescindível ao seu conteúdo”30.
Podemos apontar algumas características principais dos direitos
da personalidade, sendo, em geral, encontradas na doutrina as seguintes: são inatos ou originais; vitalícios; extrapatrimoniais; relativamente indisponíveis; inalienáveis; irrenunciáveis; intransferíveis; inexecutáveis; impenhoráveis; imprescritíveis; absolutos (sentido em que são
oponíveis erga omnes).
No caso de ameaça ou lesão, a forma pela qual a legislação instituiu, ou melhor, tutelou tais direitos, foi seguindo o disposto no artigo
12 do Código Civil, em que atribui a essas violações a sanção de perdas e
danos, sem prejuízo de outras sanções. A sanção a violação dos direitos
da personalidade é caracterizada principalmente pela indenização por
danos morais. E no que tange a legitimidade para a tutela dos direitos
da personalidade, como diz Venosa, é, a princípio, própria da pessoa
atingida, tendo como exceção a possibilidade dos parentes requererem
a tutela desses direitos em se tratando de morto.
3.1.4. Os Direitos da Personalidade no Novo Código Civil
Com a crescente valorização dos direitos da personalidade tornou-se sumariamente importante a inclusão desses nos ordenamentos
jurídicos vigentes. Desse modo o Brasil também acrescentou à sua legislação os direitos da personalidade, inicialmente na Constituição de 1988.
Contudo, não foi apenas na Carta Magna que se tratou desses direitos.
Outras leis e normas distribuídas por todo o ordenamento também discorreram sobre os direitos da personalidade todavia, foi no Có29 Ibid., p. 152.
30 CUPIS, 2009, p. 325.
25
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Clarissa Gomes - Príscila Ferreira
digo Civil que esses direitos foram tratados mais especificamente, embora de forma pouco profunda e tímida.
O Código Civil trouxe em seus artigos 11 a 21 alguns dos direitos da personalidade, fato esse que representa um grande avanço em
relação ao Código revogado. Porém, o Estatuto aqui mencionado não
traz nenhuma conceituação dos direitos da personalidade, tendo apenas
disposto regras limitadoras de direito, e tratando-os de forma genérica.
Mesmo que o Código Civil tenha tratado de maneira tão limitada
esses direitos, é importante salientar que ainda assim a Constituição assegurou expressamente, e de forma mais detida, esses mesmos direitos
da personalidade (dentre vários outros), o que se pode intuir que dá
maior garantia na utilização dos mesmos, além de permitir uma maior
aproximação entre os ordenamentos, a fim de ampliar os horizontes interpretativo-analíticos e melhor assegurar os interesses individuais, ao
mesmo tempo em que introduz efetivamente o princípio da dignidade
da pessoa humana como base elementar dotada de eficácia plena, no
sentido de atingir todas as relações jurídicas.
3.2. Direitos Fundamentais, Direitos Humanos e Direitos
da Personalidade
Sabemos que os direitos inerentes à pessoa humana são aqueles
que não podem ser destacados do homem. Dentre esses direitos tidos
como subjetivos, estão os direitos da personalidade que se encaixam na
esfera pessoal dos indivíduos. Como esses direitos gozam de atributos
físicos, psíquicos e morais da pessoa, são na sua base direitos humanos.
São direitos comuns da existência enquanto homem, que foram
sendo ampliados a partir das conquistas históricas e sociais. Os direitos
da personalidade caracterizam-se, principalmente, por serem intransmissíveis, nascem e se extinguem com os seus titulares; são indisponíveis relativamente, em regra são insuscetíveis de disposições, direitos
irrenunciáveis, impenhoráveis. A sua defesa não se encerra nem pelo
seu uso, nem pela sua inércia, visto que são imprescritíveis, são inexpropriáveis, não sendo possível sua retirada da pessoa enquanto viva ela
estiver, em regra não aferível economicamente, salvo os direitos tidos
como autorais.
26
1 • DIREITOS HUMANOS NA SEARA JUSPRIVATÍSTICA: A TUTELA DA PERSONALIDADE
Com relação aos direitos humanos podemos extrair as seguintes
características dos direitos da personalidade: são transcendentais, supra
estatais, cujo desenvolvimento decorre de posições ideológicas e políticas, carecendo cada vez mais, para sua efetividade, um reconhecimento
maior por parte do Estado. Os direitos da pessoa começam a ter uma
nova perspectiva, enlaçando-se ao Direito Público, com a teoria dos direitos humanos e fundamentais, e o Direito Privado, com os chamados
direitos da personalidade.
Pode-se afirmar que os ditos direitos da personalidade surgiram
nos textos fundamentais como direitos naturais, inatos, conhecidos num
primeiro momento como direitos humanos, tendo em vista serem inerentes ao homem. Alguns desses direitos foram inseridos nas constituições,
ficando conhecidos como direitos fundamentais, devendo ser garantidos
pelo Estado. Dentro destes direitos fundamentais há um conjunto de direitos subjetivos que se distinguem ou se caracterizam pelo objeto – a
personalidade humana – chamado de direitos da personalidade.
Entretanto, não será adequada uma visão puramente privada dos
direitos da personalidade que os divorcie da categoria ampla dos direitos do homem, devendo a ordem jurídica ser entendida como um todo,
dentro de uma hierarquia de valores, de maneira a entender o homem
enquanto ser de inalienável e inviolável dignidade. Adentrando na classificação podemos afirmar que os direitos humanos pertencem a três
gerações, não significando um rol taxativo, uma vez que a complexidade
das relações humanas faz surgir novos atores e com eles novos direitos,
devido à dinamicidade do direito.
Desse modo, sabendo que os direitos da personalidade integram
os direitos humanos, poderíamos classificá-los em três partes. Seguindo
GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, os direitos da personalidade estão
de acordo com a proteção à: a) vida e integridade física, o que implica
tutelar o corpo vivo, o cadáver, a voz; b) integridade psíquica e criações
intelectuais, o que inclui a liberdade, as obras intelectuais, a privacidade
e o segredo; c) integridade moral, abrangendo a honra, o nome, a fama,
a imagem, a intimidade, a identidade pessoal.31
Fazendo uma distinção mais crítica, podemos dizer que uma coisa é reconhecer a primazia da pessoa humana, outra coisa é elencar os
31 GAGLIANO Pablo Stolze, FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil. São
Paulo: Saraiva, 200, p. 157. v.1
27
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Clarissa Gomes - Príscila Ferreira
direitos da personalidade. Esses são objeto de um ramo especial dentro
do Direito Civil.
Primeiramente é preciso saber que direitos fundamentais e direitos da personalidade não são terminologias idênticas. Os direitos da
personalidade necessitam de uma absoluta proteção, pois entram em
aspectos que afetam a própria condição de homem. Ao passo que os
direitos fundamentais referem-se à posição dos indivíduos perante o
Estado, ou seja, seria preciso enquadrá-los na condição de cidadão ou
súdito, melhor explicitando. Refletindo desse modo, podemos afirmar
que há muitos direitos fundamentais que não são direitos da personalidade e vice-versa.
4. Qual o alcance dos Direitos Humanos na seara
jusprivatística
A fim de estruturar e fundamentar o tema central do seguinte
estudo, expomos anteriormente, de forma sucinta, as ideias de Direitos
Humanos e Fundamentais, Constitucionalização do Direito e Direitos
da Personalidade. Já neste ponto, enfim, será explanada a relação da eficácia horizontal entre os Direitos Humanos e Fundamentais de forma
bastante abrangente, embora não taxativamente, na Carta Magna de
1988 e os Direitos dos Particulares.
Em outros termos, buscaremos explanar a influência dos direitos
fundamentais no Direito Privado Brasileiro com especial ressalva aos
Direitos da Personalidade já constituídos, mesmo que de forma tímida,
no novo Código Civil. Primeiramente, devemos entender à que influência ou eficácia estamos nos referindo
Como explicado no ponto sobre Direitos Fundamentais, a inclusão desses direitos no ordenamento jurídico dos Estados se deu em
momentos históricos vultosos, que demonstraram às sociedades a importância da defesa dos direitos dos indivíduos. Tais direitos, primordialmente, seguiram a linha de que deveriam reger a relação entre os
indivíduos e o Poder Público, a fim de proteger o primeiro dos abusos
que poderiam advir das ações Estatais devido ao aspecto de desigualdade desta relação.
Essa defesa, finalidade dos direitos fundamentais, diante do Poder Público o caracterizou, então, como sujeito passivo “que arcará com
28
1 • DIREITOS HUMANOS NA SEARA JUSPRIVATÍSTICA: A TUTELA DA PERSONALIDADE
a obrigação de satisfazer o direito do particular”32. Portanto, o sujeito
ativo, o titular dos direitos fundamentais, será o próprio particular. A
partir desse entendimento diz-se dessa relação como de eficácia vertical,
por tratar-se de entidades dispostas em patamares distintos, desiguais
(Estado/Poder Público x Particulares).
Reiterando, a ideia que se admite na “relação de eficácia vertical” é que o Poder Público será o ofensor fundamental dos direitos individuais, e devido a sua superioridade em relação ao particular, deve
responder objetivamente caso haja, omissivamente ou comissivamente,
uma ofensa a esses direitos. Assim, parte-se da ideia de que só o Estado
pode ferir os direitos fundamentais.
Entretanto, com o passar do tempo, ao se observarem as transações entre os próprios particulares, relações firmadas em um mesmo
plano (Particular – Particular), viu-se que em determinados casos haveria, não só a possibilidade, mas a ocorrência de fato, de ofensas diretas
aos direitos fundamentais pelos próprios particulares.
Dessa forma, surge a ideia de eficácia horizontal dos direitos humanos. Baseia-se no princípio da incidência das liberdades públicas
sobre as relações entre particulares, não mais apenas no plano vertical, Estado x Particular. Será possível a ofensa por particular a direitos
individuais.
Há diversas controvérsias sobre a possibilidade real da eficácia
direta dos direitos fundamentais sobre as relações privadas, principalmente no que se refere ao princípio da autonomia privada, a ideia de
atribuição excessiva de poderes aos juízes e no que consta a insegurança
jurídica, fatores esses que foram apontados e devidamente ponderados
por Daniel Sarmento.33
Todavia, no que se refere à aplicação da teoria da eficácia horizontal, vale salientar dois aspectos de importância clara: a influência
direta ou indireta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. São esses os aspectos que causam maior problematização referente a este assunto, pois a teoria em si da aplicação das liberdades
públicas no âmbito privado é comumente mais aceita. Nesse sentido,
32 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 201, p. 530.
33 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006, p. 239.
29
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Clarissa Gomes - Príscila Ferreira
Ingo Wolfgang Sarlet demonstra que o problema não é quanto “ao ‘se’
de uma eficácia dos direitos fundamentais na esfera das relações particulares”, mas quanto “a influência da Constituição sobre os atos normativos infraconstitucionais de Direito Privado e sua aplicação judicial”34,
ou seja, o problema é quanto ao “como” se desenvolve a aplicação das
liberdades públicas.
No que conta, especificamente o Ordenamento Jurídico Brasileiro, a esfera que realmente nos interessa, há a incidência de uma eficácia
horizontal direta em detrimento de uma eficácia indireta – predominante no direito germânico, que condiciona a aplicação dos direitos
fundamentais nas relações privadas à “vontade do legislador ordinário,
ou os confina ao modesto papel de meros vetores interpretativos das
cláusulas gerais do Direito Privado” 35.
Quanto à eficácia direta, ela não é prevista expressamente na
Constituição da República, contudo, não há nenhuma disposição que
indique a vinculação das liberdades pública só aos poderes públicos;
desse modo, é cabível a interpretação de que a mesma (CF de 1988)
também não faz nenhuma limitação a quem poderia figurar no polo
passivo da relação sobre os direitos fundamentais, abrindo espaço a
uma hermenêutica mais abrangente no que consta a influência desses
direitos, a ponto de compreender uma vinculação passiva universal.
Ora, não é preciso apenas da Constituição Federal para que possamos compreender a eficácia horizontal direta dos direitos fundamentais. A própria condição da sociedade brasileira permite essa interpretação extensiva. Batemos alguns recordes, que não são nem remotamente
para nos orgulharmos, sobre níveis de desigualdade social, e isso faz
com que, nas palavras de Sarmento: “não hesitamos em afirmar que a
eficácia dos direitos individuais na esfera privada é direta e imediata no
ordenamento jurídico brasileiro. Esta, para nós, não é só uma questão
de direito, mas também de ética e justiça.”36
Desse modo, entendemos que está aberta a possibilidade de utilização dos princípios constitucionais diante dos problemas privados,
34 SARLET, Ingo Wolfgang. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso
brasileiro. In: MONTEIRO, Antônio Pinto (org.). Direitos fundamentais e direito privado: uma
perspectiva de direito comparado. Portugal: Almedina, 2007, p. 122.
35 SARMENTO, op.cit.,p. 237.
36 SARMENTO, 2006, p, 239.
30
1 • DIREITOS HUMANOS NA SEARA JUSPRIVATÍSTICA: A TUTELA DA PERSONALIDADE
a proteção dos próprios fundamentos do Estado brasileiro será mais
proeminente, e sua amplitude permitirá uma atuação mais protetiva
dos direitos, com fundamento em ações mais combativas e de cunho
corretivo educacional.
Outro fato que podemos retirar dessa hermenêutica constitucional é quanto à presença de direitos fundamentais em normas infraconstitucionais, em especial os Direitos da Personalidade que não apenas são
aplicados fundamentados na Constituição como diretamente do Código Civil, exemplificando a ideia primordial da constitucionalização do
direito. Ambas as premissas (direitos da personalidade e constitucionalização do direito) foram apresentadas anteriormente.
Nesse fim, no que se sucede sobre a influência, ou alcance dos
direitos fundamentais quanto à esfera jusprivatística, é premente concluir que há uma ampla disposição desses direitos, de modo a permitir
a resolução de lides anteriormente barradas devido a normas infraconstitucionais inexistentes ou insuficientes para atingir, no mínimo, uma
solução razoável do conflito.
É efetivamente no sentido de buscar “uma solução razoável do
conflito” que verificamos que, embora abertamente declarada a ideia
de eficácia direta como fator interpretativo e fundamental à realização
da busca da efetividade das normas de direito fundamental, é importantíssimo salientar que essa eficácia não é de vinculação absoluta, mas
sim dotada de razoabilidade e bom-senso, a fim de não por em xeque a
própria ideia de direitos fundamentais, nem o princípio da autonomia
privada. Assim, Sarlet, em texto referente a influência dos direitos fundamentais no direito privado afirma:
Por outro lado, ao se afirmar uma eficácia direta prima facie não se está
a sustentar uma eficácia necessariamente forte ou mesmo absoluta, mas
uma eficácia e vinculação flexível e gradual37.
O essencial seria, então, conferir a máxima eficácia ao mesmo
tempo em que se baliza os interesse privados em si, formando, ou melhor, caracterizando uma técnica de Ponderação de Interesses.
37 SARLET, Ingo Wolfgang. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso
brasileiro. In: MONTEIRO, Antônio Pinto (org.). Direitos fundamentais e direito privado: uma
perspectiva de direito comparado. Portugal: Almedina, 2007, p. 133.
31
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Clarissa Gomes - Príscila Ferreira
Em resumo, pode se dizer que no direito brasileiro o alcance dos
direitos fundamentais é máximo, do ponto de vista de se utilizar diretamente desses preceitos a fim de alcançar uma solução ética e justa.
Todavia, no que consta aos aspectos relativos aos interesses dos particulares, a eficácia deve ser dotada de proporcionalidade e razoabilidade,
a fim de propiciar uma harmonia entre os Direitos Fundamentais e os
Direitos dos Particulares.
Conclusões
Os direitos da personalidade, por não serem patrimoniais foram,
de certo modo, renegados em um sistema jurídico outrora patrimonialista. Só para ilustrar esse fato, o Código Civil brasileiro de 1916 não
dispõe de tratamento específico sobre a personalidade.
Essa categoria de direitos ganha fôlego na escala da repersonalização quando o patrimônio cede lugar ao ser humano no centro do
ordenamento jurídico. Passa-se, então, a valorizar o indivíduo e suas
necessidades intrínsecas. Os direitos da personalidade ganham campo próprio no Código Civil de 2002 – artigos 11 a 21 – bem como na
CF/88, citados, por exemplo, no art. 5º, como parte do rol de direitos
fundamentais.
É mister, ainda, reconhecer que os direitos da personalidade estão
relacionados à própria concepção de dignidade humana. Nesse sentido,
deve-se concordar quando se fala que os direitos da personalidade são
uma cláusula aberta, no sentido de que todo o conjunto de valores inerentes à pessoa e necessários à dignidade são direitos da personalidade e
merecedores de tutela, ainda que não estejam explicitamente tipificados.
Nesse sentido, há tipos mais gerais de direitos da personalidade,
já reconhecidos como tais explicitamente e divididos em três grupos: direitos físicos, psíquicos e morais; bem como a possibilidade de se reconhecer como direitos inatos tudo aquilo que for necessário à dignidade
humana ao mesmo tempo em que intrínsecos ao ser existencial.
Os direitos da personalidade não são sinônimos de direitos fundamentais, mas nos atrevemos a dizer que são espécies destes. Todavia,
por não serem patrimoniais, encontrava-se dificuldade na forma específica de tutela jurídica em caso de lesão. Observa-se, entretanto, que
32
1 • DIREITOS HUMANOS NA SEARA JUSPRIVATÍSTICA: A TUTELA DA PERSONALIDADE
a reparação por danos morais se apresentaria como apta a constituir
sanção que responda a esse tipo de violação.
Ao mesmo tempo, a configuração do dano moral carecia de parâmetros objetivos, ficando sua configuração ao arbítrio da análise subjetiva do julgador sobre a existência da dor moral.
Acredita-se que, ao se visualizar a existência de lesão ao direito
da personalidade, desnecessária se demonstra a comprovação do dano
moral. Como atributos intrínsecos à personalidade humana, uma agressão a essa categoria de direitos daria subsídios claros e objetivos para a
determinação do dano moral. A certificação dessa relação será tomada
a partir da continuidade da presente pesquisa.
Referências
BARROSO, Luís Roberto. A constitucionalização do Direito e o Direito
Civil. In: BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7. ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São
Paulo: Malheiros, 1993.
_______. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros,
1997.
_______. Moraes, Germana e ROSAS, Roberto (Org.). Estudos de
Direito Constitucional em homenagem a Cesar Asfor Rocha (teoria
da Constituição, direitos fundamentais e jurisdição). Rio de Janeiro:
Renovar, 2009.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São
Paulo: Saraiva, 2011.
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo:
direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário.
São Paulo: RT, 2009.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra:
Livraria Almedina, 1993.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos
Humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
33
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Clarissa Gomes - Príscila Ferreira
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro: teoria geral
do Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2011.v.1
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil:
teoria geral. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
GAGLIANO Pablo Stolze, FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de
Direito Civil .. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 1
RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos Direitos Humanos na
ordem internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
SARLET, Ingo Wolfgang. A influência dos direitos fundamentais no
direito privado: o caso brasileiro. In: MONTEIRO, Antônio Pinto (org.).
Direitos fundamentais e direito privado: uma perspectiva de direito
comparado. Portugal: Almedina, 2007.
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2.
ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 13.
ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
SILVA, Luiz Fernando Martins da. A incidência e eficácia dos direitos
fundamentais nas relações com particulares. Jus Navigandi, Teresina,
ano 7, n. 60, nov. 2002. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/
texto.asp?id=3460. Acesso em: 28 jun. 2007.
TEPEDINO, Gustavo (coord.). A parte geral do novo Código Civil:
estudos na perspectiva civil-constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003.
_______. A pessoa jurídica e os direitos da personalidade. In: Temas de
direito civil. Rio de Janeiro, Renovar, 1999.
_______ (coord). Direito Civil contemporâneo: novos problemas à
luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008.
_______. Normas constitucionais e Direito Civil. Revista da Faculdade
de Direito de Campos, a. IV, n. 4 e a. V, n. 5, 2003-2004.
_______. Premissas metodológicas para a constitucionalização do
Direito Civil. In: Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2004.
34
1 • DIREITOS HUMANOS NA SEARA JUSPRIVATÍSTICA: A TUTELA DA PERSONALIDADE
TORRES, Ricardo Lobo. Arquivos de direitos humanos. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos
direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São
Paulo: Saraiva, 1991.
_______. A interação entre o direito internacional e do direito
interno na proteção dos direitos humanos. Arquivos do Ministério da
Justiça, Brasília, v. 46, n. 182, jul./dez. 1993.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. São Paulo: Atlas,
2010.
35
2
A CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉTICA À LUZ
DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
Robson Antão de Medeiros1
- Suênia Oliveira Vasconcelos2
Sumário: Introdução - 1. Cirurgia Plástica: breve narrativa - 3.
Inovações tecnológicas no campo da Medicina - 4. As implicações
da Bioética e do Biodireito no campo da cirurgia plástica - 4.1.
Algumas considerações sobre a importância do “Consentimento”
no caso de intervenções médicas - 5. Implicações jurídicas em
caso de erro médico em cirurgia plástica à luz do direito civil
constitucional - 6. Conclusões - 7. Referências
Introdução
Os avanços tecnológicos revolucionários, não apenas no universo
da robótica, da computação, das máquinas, mas, também, da biologia e
da medicina moderna, contribuem para o surgimento de uma gama de
possibilidades na área da saúde. Dentro desse contexto, surgem, quase
1 Professor dos Cursos de graduação e pós-graduação em Ciências Jurídicas da Universidade
Federal da Paraíba. Doutor em Ciências da Saúde pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Vice-Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB. robson.antao@gmail.com..
2 Mestranda em Direito Econômico pela UFPB. sueniav06@yahoo.com.br
37
Robson Antão de Medeiros - Suênia Oliveira Vasconcelos
que diariamente, novas técnicas no âmbito das cirurgias plásticas que
possibilitam mudanças praticamente totais no corpo humano: Lipoescultura, Gluteoplastia, Lifting de pescoço, ou seja, são várias as possibilidades colocadas à disposição daqueles que buscam incessantemente um
corpo com aparência juvenil, saudável e esteticamente perfeito.
A mídia e a sociedade impõem padrões de beleza que querem
ser alcançados pelas pessoas o mais rápido possível e com o mínimo de
esforço físico. Porém, a evolução tecnológica, principalmente no âmbito das ciências médicas e biológicas, gerou questionamentos filosóficos, éticos e jurídicos que impulsionaram o surgimento da Bioética e do
Biodireito, com vistas a estabelecer limites em tais avanços e garantir a
dignidade humana, buscando, ainda, conciliar a evolução científica da
biomedicina com os valores humanos.
O presente estudo objetiva problematizar a vulgarização da prática de cirurgias plásticas embelezadoras no Brasil, bem como analisar
a responsabilidade do profissional e das instituições de saúde no caso
de erro médico nesse tipo de cirurgia, de acordo com a lei e a doutrina.
Pretende-se, também, analisar a conduta do cirurgião plástico à luz do
direito civil constitucional, dos princípios Bioéticos, que objetivam o
respeito à vida humana.
1. Cirurgia Plástica: breve narrativa
A cirurgia plástica nasceu na antiguidade, tendo os indianos
como responsáveis pelos transplantes de pele e reconstruções nasais no
século VIII a.C, quando as pessoas tinham o nariz amputado, enquanto
castigo para determinados crimes. Por sua vez, os romanos, no século I
a. C, desenvolveram técnicas na reparação de orelhas danificadas.
Para MARINA SARTORI3 [...] somente no século XV a cirurgia
plástica começou a evoluir novamente, com os estudos de Heinrich Von
Pfolspeundt, que conseguiu realizar a construção completa do nariz,
utilizando a pele em excesso do braço. A rinoplastia foi, então, a mãe
das cirurgias plásticas reconstrutoras, ganhando enorme repercussão na
Europa do século XVIII. Por sua vez, os inúmeros combatentes de guer-
3 SARTORI, Marina. Disponível em: <http://www.plasticamontenegro.com.br/artigos/historiada-cirurgia-plastica.html. Acesso em: 12 jun. 2013.
38
2 • A CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉTICA À LUZ DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
ra se submeteram à cirurgia para melhorar a aparência de seus narizes,
que sofreram impactos na luta armada.
Nota-se que a cirurgia plástica como especialidade médica oficial surgiu na Primeira Guerra Mundial. Além dos milhares de soldados
que morreram, milhões foram mutilados ou deformados, gerando uma
demanda enorme por procedimentos de reconstrução e reparação estéticas, complementa Sartori4.
Pode-se perguntar qual o padrão de beleza desta geração. Muitos
responderiam que como representantes femininas são Gisele Bündchen,
Juliana Paes, Débora Secco e Angelina Jolie. Como representantes da ala
masculina citam-se Brad Pitt, Rodrigo Santoro e Cristiano Ronaldo.
Há, portanto, uma supervalorização por parte da sociedade de um
padrão estético perfeito. Todos (as) esses (as) representantes possuem
um aval midiático. Sem dúvida, a mídia, quer seja rádio, jornal, televisão
ou internet, é a principal responsável por essa supervalorização, ditando
padrões estéticos que muitas vezes são impossíveis de serem alcançados
naturalmente. Os recursos tecnológicos de melhoramento de imagens remodelam corpos, retiram qualquer tipo de imperfeição, principalmente
via fotoshop, enfim, “criam” homens e mulheres esteticamente “perfeitos”,
causando angustia naqueles que não conseguem atingir aquele padrão de
beleza. Tal situação resulta numa busca incessante por mecanismos que
tragam resultados o mais rápido possível. É nesse contexto que se insere
a busca desenfreada pela cirurgia plástica estética.
A noção de beleza é um conceito abstrato e extremamente mutável, mas uma coisa é certa: o belo é algo valorizado e buscado em todas as épocas. Há uma incessante busca pela perfeição por parte das
pessoas. A noção do belo é construída dentro de padrões socioculturais de cada época. Percebe-se a mutação do padrão de beleza por meio
das obras de artes, que ao longo da história nos apresentam as formas
estéticas mais variadas possíveis: de padrões mais “cheinhos” aos mais
esbeltos. Ora, por mais enigmática que seja a Monalisa, de Leonardo Da
Vinci, certamente ela não constaria no rol das 100 mulheres mais lindas
do mundo de 2013.
A beleza não é medida apenas por padrões corporais, mas, também, por adornos utilizados pelos sujeitos. Pode-se citar como exemplo
4 Ibidem
39
Robson Antão de Medeiros - Suênia Oliveira Vasconcelos
as mulheres girafas da Tailândia, que usam argolas para alongar o pescoço com o intuito de ficarem mais belas. Temos também o caso das
noivas muçulmanas que pintam as mãos e os pés de henna para ficarem
mais bonitas. As mulheres da comunidade Djerma, em Níger, país da
África Ocidental, se preparam para o casamento fazendo um regime
para engordar.
Percebe-se, portanto, que o ser humano é o único animal que
busca mudar violentamente seu corpo, transformando-o num verdadeiro artefato cultural. Para tanto, o ser humano perfura, tatua, pinta,
enfim, realiza uma série de mudanças, as quais funcionam como sinais
de identidade cultural ou mesmo grupal.
Percebe-se, ainda, que não há um padrão universal de beleza,
mas, sem dúvida, o padrão ocidental se sobressai em relação aos demais,
qual seja, da pessoa magra, com abdômen definido e, para os padrões
brasileiros, mulheres com seios e traseiros fartos e homens musculosos. Porém, a questão que mais impulsiona o aumento do número de
cirurgias plásticas em todo o mundo é o fato de o ser humano nunca
estar satisfeito com seu corpo. Essa é uma realidade de hoje, de ontem,
de muito tempo atrás. E não há dúvidas de que os avanços tecnológicos
influenciaram sobremaneira o aumento pela procura de cirurgias plásticas. É como se a tecnologia, cada vez mais, trouxesse uma sensação
de que tudo é possível, de que não há limites em relação ao que se pode
fazer com o corpo humano.
Mas, quais seriam as implicações desses avanços na vida do ser
humano, tanto em termos físicos, como psicológicos? Teriam os avanços tecnológicos criado uma falsa sensação de infalibilidade médica? O
que a ética e o direito têm a nos dizer em termos de responsabilidade
médica diante do aumento cada vez maior da realização de cirurgias
plásticas no Brasil à luz do direito civil constitucional? Qual o comportamento ético que se espera do médico diante de tantas possibilidades
trazidas ao campo da medicina pela tecnologia? Pretende-se trazer esta
discussão nesse artigo.
3. Inovações tecnológicas no campo da Medicina
A cirurgia plástica não é uma prática recente em medicina. Aliás,
o nascimento da medicina ocidental como ciência deu-se na Grécia An40
2 • A CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉTICA À LUZ DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
tiga. Para MARTIRE JUNIOR5, existem quatro fatores determinantes da
evolução da cirurgia em geral e, naturalmente, da Cirurgia Plástica. São
eles: necessidade, aspectos culturais, conhecimento anatômico e sucesso.
Dentre os fatores determinantes destaca-se a necessidade, uma
vez que sempre ocorreu o trauma e a lesão corporal. Os aspectos culturais, por sua vez, sempre foram importantes para a permissão ou não
da realização de cirurgias. Os conhecimentos anatômicos, sem dúvida,
foram de vital importância para o desenvolvimento de procedimentos
cirúrgicos cada vez mais seguros, sendo que seu impulso maior deu-se
a partir do Renascimento, principalmente devido aos estudos de Leonardo da Vinci e os estudos de Andreas Vesalius, cuja obra “De Humani
Corporis Fabrica”, publicada em 1543, foi o marco inicial da anatomia
moderna. O sucesso, por fim, possibilitou à cirurgia ser vista como meio
de tratamento e não mais como última opção do paciente.
MARTIRE JUNIOR6 ainda destaca que, entre permissões e proibições da prática de dissecções ao longo da história, foram surgindo
importantes procedimentos relacionados à cirurgia plástica. Porém,
com o advento da Idade Média, período marcado por profunda religiosidade, as descobertas científicas ficaram praticamente estagnadas por
quase dez séculos. As pesquisas científicas em seres humanos só foram
retomadas livremente em pleno Renascimento, quando o Papa Sixto V,
em meados do século XVI, autoriza a realização de estudos anatômicos,
fato que propicia o avanço da medicina.
Porém, é a partir do uso frequente de armas de fogo que surge a
maior necessidade de reparação nos corpos humanos. Ora, com as atrocidades ocorridas nas duas grandes guerras do século XX constata-se a
necessidade de formar profissionais que se especializassem em reparações corporais. A Cirurgia Plástica surge, portanto, como especialidade
médica a partir da I Guerra Mundial.
Apesar de a cirurgia plástica ter por finalidade proporcionar
bem-estar aos indivíduos, percebe-se que sua finalidade principal até
o século XX, aproximadamente, não era eminentemente estética, mas
reconstrutiva, reparadora, com vistas a devolver dignidade àqueles que
tiveram seus corpos deformados ou mutilados por algum motivo.
5 MARTIRE JUNIOR, Lybio. A História da Cirurgia Plástica. Disponível em: <http://www.
sbhm.org.br/index.asp?p=especialidades_view&codigo=48>. Acesso em: 27 jul. 2012.
6 Idem.
41
Robson Antão de Medeiros - Suênia Oliveira Vasconcelos
No que se refere ao uso de instrumentos mais sofisticados para
realização de exames, segundo COSTA e COSTA7, foi a partir do século XIX que os médicos começaram a conquistar o instrumental básico
para o exercício de suas tarefas, porém de forma bastante lenta, levando
quase um século inteiro para que fosse constituído um arsenal mínimo,
dentre eles o estetoscópio (1819), o oftalmoscópio (1850), o termômetro
(1867) e, por fim, o esfigmanômetro (1896).
Visto que o termo tecnologia é entendido como sinônimo do
conjunto de aparelhos utilizados em qualquer área científica, os autores
supracitados destacam que são consideradas tecnologias no campo da
saúde, medicamentos e vacinas, próteses e equipamentos, bem como os
procedimentos clínicos e cirúrgicos utilizados em condutas preventivas,
em diagnósticos e em tratamentos dos indivíduos.8
DRUMOND, por sua vez, destaca que as pesquisas realizadas
na Alemanha fizeram do século XIX o mais reluzente para o desenvolvimento de uma medicina com bases científicas. Dentre os nomes de
destaque da época, o referido autor cita o do médico Rudolf Virchow,
“considerado fundador da moderna patologia por ter sido o primeiro a
utilizar o microscópio com a finalidade precípua de diagnosticar uma
doença pelo exame de células e tecidos lesados”.9 Ele cita também o cientista Robert Koch, que dividiu com Louis Pasteur o título de fundador
da moderna bacteriologia, a qual consistiu numa revolução de suma importância para a ciência moderna.10
Salienta-se que nesse período os médicos realizavam a maioria
dos atendimentos nas casas dos pacientes, sendo muito forte a figura do
médico da família. Além disso, COSTA e COSTA destacam que os hospitais tinham poucos recursos materiais, bem como poucos pacientes.
Foram, portanto, sofisticando o seu instrumental tecnológico a partir
de meados do século XX, passando a utilizar equipamentos capazes de
7 COSTA, Sérgio Ibiapina F. COSTA; Maurício Ribeiro. A ética profissional e a rapidez dos
avanços tecnológicos. In.: GARRAFA, Volnei; PESSINI, Leo (Orgs.). Bioética: poder e injustiça. 2
ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 471.
8 Ibid., 2004, p. 470.
9 DRUMOND, José Geraldo de Freitas. Ética e inovação tecnológica em medicina. Bioethikos,
Centro Universitário São Camilo, São Paulo, 2007, p. 26. Disponível em: <http://www.saocamilosp.
br/ pdf/bioethikos/54/Etica_ e_inovacao. pdf>. Acesso em: 27 maio 2012.
10 DRUMOND, op. cit., p.26.
42
2 • A CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉTICA À LUZ DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
proporcionar a sustentação/manutenção da vida, como, por exemplo, as
máquinas de hemodiálise.11
DRUMOND observa que sem dúvida o século XX foi o mais notável em termos de desenvolvimento científico, sendo denominado de
século da tecnologia. Foram inauguradas outras áreas científicas, dentre
elas a biotecnologia, que teve como marco decisivo para o nascimento
da biotecnologia moderna a descoberta da estrutura duplamente helicoidal do DNA, feita por James Watson e Francis Crick, em 1953.12
No campo da cirurgia plástica, por sua vez, são inúmeras as possibilidades para a realização de mudanças no corpo inteiro. Simples mudanças no nariz, nas orelhas ou nos lábios são coisas já antigas. Segundo
MARTIRE JUNIOR, tais procedimentos já eram realizados desde a Antiguidade.13 Atualmente, o ser humano tem à sua disposição técnicas capazes de remodelar o corpo inteiro. Há procedimentos cirúrgicos para
aumentar glúteos, coxas, seios, músculos.
Tem-se, também, a possibilidade de remodelar todo o abdômen
por meio da cirurgia plástica abdominal ou a abdominoplastia, que é
um procedimento cirúrgico complexo que leva ao achatamento do abdômen, à eliminação do excesso de gordura e de pele e ao reforço dos
músculos da parede abdominal. Também é possível afilar a cintura, o
rosto, modificar o queixo, as sobrancelhas. Há, ainda, a Blefaroplastia
(cirurgia das pálpebras), ritidoplastia (levantar a pele do rosto), lifting
de pescoço (retirar a flacidez do pescoço). Enfim, o vocabulário é extenso. Quando se trata de lipoaspiração, por exemplo, há uma diversidade
de novas técnicas (hidrolipo, lipoaspiração não invasiva, lipoaspiração
tumescente, dentre outras) e, cada vez mais, surgem cirurgiões, mesmo
não especializados em cirurgia plástica, oferecendo novas tecnologias
nessa área.
A sociedade globalizada, por sua vez, possibilita e aguça ainda
mais o consumo em massa, o desejo dos consumidores. A medicina,
nesse contexto, torna-se também uma medicina de massa. A moda e a
mídia são poderosos instrumentos de convencimento, sempre em busca
de convencer que “é possível”, que “podemos” conseguir realizar todos
11 COSTA e COSTA, op. cit., p. 471.
12 DRUMOND, op. cit., p. 27.
13 MARTIRE JUNIOR, 2012..
43
Robson Antão de Medeiros - Suênia Oliveira Vasconcelos
os desejos. E a constante oferta de crédito nos diz que pode-se “parcelar
os nossos sonhos” em várias e “suaves” prestações. Além disso, vivemos
na sociedade da “pressa”, da rapidez, da velocidade!
Para completar esse quadro, de um lado, têm-se as “indústrias da
beleza”, compostas por médicos que se especializam cada vez mais em
cirurgias plásticas. De outro, os pacientes/consumidores, que não ficam
satisfeitos com apenas uma cirurgia plástica, que querem sempre mais,
o mais rápido possível.
COSTA e COSTA14 chamam a atenção para o fato de que se deve
ter cautela em relação ao uso desenfreado dos avanços tecnológicos.
Ora, nesse modelo de sociedade em que vivemos há uma cobrança excessiva para que os médicos se “modernizem”. Portanto, destacam que
as inovações tecnológicas têm provado sua contribuição para o prolongamento da vida, bem como têm melhorado outros setores da vida
humana. Mas, a natureza dessas inovações cria falsas expectativas e demandas mal controladas, pois não basta que o clínico tenha à sua disposição as tecnologias mais avançadas do mundo se não as souber utilizar,
e de forma ética e responsável, saliente-se.
DRUMOND, por sua vez, no que se refere ao deslumbramento
que a tecnologia cria, destaca que os avanços científicos no campo da
medicina criaram três utopias, a saber, a da eternidade (devido ao aumento da longevidade), a da beleza (decorrente das mudanças de padrões cosméticos) e do prazer (devido à criação de novas drogas que
aliviam a dor, proporcionando prazer físico e psíquico). Acrescenta, ainda, uma quarta utopia, citada por LUCIAN SFEZ, a da saúde e do corpo
perfeito, a nova obsessão humana.15
Tais utopias muitas vezes não respeitam limites na busca de sua
concretização. A ciência passa a ideia de que tudo é possível, e isso se
torna extremamente perigoso pelo fato de correr o risco de transformar
os seres humanos em máquinas manipuláveis e os médicos em manipuladores da vida humana. Segundo DRUMOND:
O mais terrível para a humanidade - que obteve na ciência a
desmistificação dos fenômenos naturais - é exatamente a perda dos
valores espirituais provocada pelo poder fascinantemente corrosivo
14 COSTA e COSTA, op. cit., p. 476-479.
15 DRUMOND, op. cit., p. 30.
44
2 • A CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉTICA À LUZ DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
que a tecnologia exerce sobre o pensamento humano, principalmente
devido à luta desigual entre a velocidade das descobertas e a capacidade
de reflexão moral sobre elas.16
É preciso fomentar uma responsabilidade ética individual e, também, coletiva, que seja partilhada por todos os sujeitos envolvidos com
a área biomédica. Mas, por outro lado, caso a ética falhe ou mostre-se
insuficiente, o direito deve atuar na defesa da dignidade humana e da
valorização da pessoa humana e da vida em sua plenitude.
4. As implicações da Bioética e do Biodireito no
campo da cirurgia plástica
A Bioética surgiu devido às preocupações humanistas ante o
avanço das biociências. Trata-se, pois, literalmente, de uma ética da
vida. BARCHIFONTAINE conceitua a bioética como sendo “um mecanismo de coordenação e instrumento de reflexão para orientar o saber
biomédico e tecnológico, em função de uma proteção cada vez mais
responsável da vida humana.” 17
Mediante a exigência de limites éticos à conduta dos médicos, em
face dos avanços tecnológicos cada vez mais rápidos, a Bioética, que se
pautava em códigos deontológicos (como o código de ética médica, por
exemplo), passou a se orientar a partir do final da década de 1970 e início da década de 1980, por quatro princípios básicos: não maleficência,
beneficência, autonomia e justiça.
O princípio da beneficência significa “fazer o bem”. Sendo assim,
o médico deve evitar, na medida do possível, quaisquer danos ao paciente, zelando pelo seu bem-estar. Fundamenta-se, tal princípio, no
Juramento de Hipócrates, que determina que os profissionais da saúde
devem utilizar seus conhecimentos apenas para a realização do bem.
O princípio da não maleficência é um desdobramento do da beneficência. Ele “determina a obrigação de não infringir dano intencional”. Na ética médica está associado à expressão “primum non nocere”
(acima de tudo, não causar dano).
16 DRUMOND, op. cit., p. 31.
17 BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. ______. Bioética: contextualização. Origem,
conceituação e abrangência. In: Bioética e início da vida: alguns desafios. Aparecida: Ideias e
Letras; São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2004, p. 33.
45
Robson Antão de Medeiros - Suênia Oliveira Vasconcelos
O princípio da justiça obriga a garantir a distribuição justa, equitativa e universal dos benefícios dos serviços de saúde, referindo-se à
obrigação de igualdade de tratamento e, em relação ao Estado, de justa
distribuição das verbas para a saúde, para a pesquisa etc., de acordo com
as diferenças clínicas e sociais.
Por fim, o princípio da autonomia exige que o profissional da
saúde respeite a vontade do paciente ou de seu representante, levando
em conta, em certa medida, seus valores morais e crenças religiosas.18
Sendo assim, deve ser ressaltado o respeito à pessoa, as suas convicções,
opções e escolhas, que devem ser resguardadas. Salienta-se que, desse princípio decorre a exigência do consentimento livre e informado, o
qual é de suma importância na relação médico-paciente.
A Bioética, portanto, examina a conduta humana à luz de valores
e princípios morais. SÉGUIN destaca que, “a Bioética despontou como a
dimensão moral da medicina. Posteriormente, quando começam a surgir os princípios e as regras jurídicas, ela se transforma em Biodireito.”19
Cabe ao Biodireito, por sua vez, a elaboração de normas que visem à
garantia da dignidade humana. Sendo assim, diante das repercussões
sociais trazidas pelos avanços tecnológicos, ele objetiva traçar limites
éticos e jurídicos em face de abusos contra a vida.20
As inovações biotecnológicas trazem ao direito difíceis questões
ético-jurídicas, perante às quais ele não pode permanecer inerte. DINIZ21 analisa a problemática acerca do conflito entre as limitações que
devem ser impostas pelo direito aos abusos biomédicos versus a liberdade científica, constitucionalmente garantida (artigo 5o, inciso IX, da
CF/88). A referida autora destaca que a liberdade prelecionada na Constituição Federal Brasileira não pode ser entendida como absoluta, pois
há outros valores e bens jurídicos igualmente protegidos pela Constituição, como, por exemplo, a vida, a integridade física e psíquica, dentre
outros, que poderiam ser gravemente afetados pelo mau uso da liberdade científica. Cabe, portanto, ao direito sopesar valores e bens jurídicos
18 DINIZ, op. cit., p. 14.
19 SÉGUIN, Elida. Biodireito. 4 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, p. 45.
20 Ibid., p. 7-8.
21 DINIZ, Maria Helena. Bioética e Biodireito. In.: ______. O estado atual do biodireito. 6 ed.
rev., aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 6-7.
46
2 • A CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉTICA À LUZ DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
e impor limites às condutas que, porventura, venham colocar em risco
a vida e a dignidade humana. Este, sem dúvida, é o papel do Biodireito.
4.1. Algumas considerações sobre a importância do
“Consentimento” no caso de intervenções médicas
Sem dúvida, o “Consentimento” é um dos mais importantes paradigmas da Bioética na atualidade. Designa, pois, a anuência explícita
de um indivíduo a um tratamento biomédico com vistas ao restabelecimento de sua saúde.
A noção de “consentimento” atualmente utilizada no domínio da
biomedicina é originária do campo jurídico. Tem sua gênese, pois, no
caso conhecido como Schloendorff vs. Society of N.Y. Ao ser admitida
no Hospital de Nova York, em janeiro de 1908, queixando-se de dores
abdominais, o médico declarou que Mary Schloendorff deveria submeter-se a um procedimento cirúrgico para a retirada de um tumor.
Segundo Mary, ela não desejava ser cirurgiada, e ao acordar de
uma anestesia geral que fora proposta pelo médico para que fosse possível a realização de exames, percebeu que fora submetida a um procedimento cirúrgico de histerectomia. Mary, indignada, processou o médico e o hospital e a ação foi julgada procedente pela Corte Suprema do
Estado de Nova York, em 1914. O juiz responsável pela causa declarou
que todo ser humano adulto e são tem direito sobre seu próprio corpo
e, por sua vez, o médico que realiza procedimentos cirúrgicos sem o
consentimento do paciente comete uma violência, devendo ser responsabilizado. Apesar de essa decisão judicial ter representado um avanço
significativo para o respeito à dignidade humana, a efetiva participação
dos pacientes nas decisões médicas só foi possível através de constantes
batalhas judiciais, afirmam DINIZ e COSTA.22
Durante séculos, a postura do médico foi paternalista, autoritária
e absolutista. Os autores supracitados destacam, em relação à imagem
do médico na sociedade, o seguinte:
Assim, durante quase dois milênios a interação entre médico e paciente
foi mantida tendo como alicerce a perpetuação de três crenças. A
22 DINIZ, Débora; COSTA, Sérgio. Ensaios: Bioética. São Paulo: Brasiliense; Brasília: Letras
Livres, 2006, p. 43-44.
47
Robson Antão de Medeiros - Suênia Oliveira Vasconcelos
primeira delas tinha como premissa a obrigação dos pacientes de
reverenciarem os médicos, pois estes eram dotados de um poder
sobrenatural de curar, uma dádiva ofertada pela divindade. Uma
segunda premissa recomendava aos pacientes manter a fé em seus
doutores. Por último, a obediência que todo paciente deveria ter ao seu
médico. Fé e obediência foram também os princípios impostos a todos
os pacientes na Idade Média.23
Segundo NEVES24, a ideia de “consentimento” internacionalizase devido às atrocidades cometidas pelos médicos nazistas nas experimentações feitas com seres humanos. O Código de Nuremberg, de
1947, determina ser essencial o consentimento informado do paciente.
A Declaração de Helsinque, de 1954, por sua vez, além de ratificar a
exigência do consentimento, determina que este deva ser por escrito.
Mas, o debate em torno da questão do consentimento só se intensifica a
partir da década de1970.
SÉGUIN25 destaca, ainda, que o consentimento informado tratase de uma decisão voluntária e revogável de pessoa capaz, a qual deve
ser manifestada de forma verbal ou por escrito. Sendo assim, faz-se necessário haver um processo de esclarecimento para o paciente, em que
fique claro o diagnóstico, o prognóstico, as opções de tratamento com
os respectivos riscos, benefícios, bem como as possíveis consequências.
Ora, em pleno século XXI, ainda vê-se a sonegação de informações aos pacientes, tanto por parte dos médicos, como dos hospitais. O
médico ainda parece ser uma figura inalcançável, inatingível para o paciente. Porém, os códigos deontológicos determinam que a informação
é um dever na medicina que deve ser obedecido pelo médico.
Cumpre trazer à baila, portanto, os dispositivos do Código de
Ética Médica brasileiro26, especialmente os artigos 22 e 24, inseridos no
capítulo IV, “Direitos Humanos”, que proíbem o médico de:
23 DINIZ E COSTA, op. cit., p. 46.
24 NEVES, M. Patrão. Contexto cultural e consentimento: uma perspectiva antropológica. In.:
GARRAFA, Volnei; PESSINI, Leo (Orgs.). Bioética: poder e injustiça. 2 ed. São Paulo: Edições
Loyola, 2004, p. 488-489.
25 SÉGUIN, op. cit., p. 52.
26 Código de Ética Médica (Resolução 1931/2009/2010). Disponível em: < http://www.
portalmedico.org.br/novocodigo/integra_4.asp>. Acesso em: 02 nov. 2013.
48
2 • A CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉTICA À LUZ DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu
representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser
realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.
Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir
livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua
autoridade para limitá-lo.
É, portanto, dever do médico e direito do paciente e de seus responsáveis, caso haja, a informação sobre seu estado de saúde, os tratamentos que estão à sua disposição e os benefícios e riscos que daí decorrem.
Segundo DINIZ27, todos os avanços biotecnológicos geraram
uma renovação no modo de agir e decidir daqueles que se encontram
envolvidos com as ciências biomédicas. Sem dúvida, uma mudança de
paradigmas ocorrida na relação médico-paciente, fundamentada em
padrões ético-morais, propagados por diversas instituições de pesquisa (nacionais ou internacionais) governamentais e não governamentais,
bem como pelas discussões no campo da filosofia e teologia sobre temas
relacionados à vida e a morte do ser humano, delimitou novos lugares para ambos os sujeitos. Sendo assim, tais mudanças exigem que o
paciente torne-se sujeito emancipado, com seus direitos fundamentais
reconhecidos, bem como sua autonomia da vontade respeitada. E o médico, por sua vez, deixe de ser o “senhor” supremo das decisões sobre
a vida e a morte, somente podendo iniciar o tratamento médico após
o consentimento livre e esclarecido do paciente acerca do diagnóstico,
prognóstico e o processo terapêutico a que será submetido.
5. Implicações jurídicas em caso de erro médico em
cirurgia plástica à luz do direito civil constitucional
A cirurgia plástica objetiva reparar ou corrigir um defeito corporal, com a finalidade de recuperar ou melhorar a aparência do corpo
humano. Tais cirurgias, por sua vez, são classificadas de dois tipos: a cirurgia reparadora, realizada para corrigir deformidades físicas congênitas ou traumáticas que nasceram com a pessoa ou surgiram no curso da
27 DINIZ, op. cit., p. 1-4.
49
Robson Antão de Medeiros - Suênia Oliveira Vasconcelos
vida, e a cirurgia estética, que objetiva melhorar a aparência ou atenuar
as imperfeições do corpo.
O Brasil é o segundo país onde mais se realizam cirurgias plásticas, contabilizaram 1.094.146 cirurgias no mesmo período, ficando
atrás apenas dos Estados Unidos, segundo pesquisas realizadas pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) e pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica (ISAPS)28.
Objetivava-se conhecer a situação atual da cirurgia plástica no
Brasil, mais especificamente a atuação médica dos membros especialistas e titulares da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Por tal razão,
foi realizada pela SBCP, em parceria com o Datafolha, uma pesquisa29
quantitativa entre seus membros, com vistas a identificar o número de
cirurgias plásticas realizadas entre setembro de 2007 e agosto de 2008.
Num universo de 3.533 nomes cadastrados no banco de dados da SBCP,
366 profissionais responderam o questionário. Foi apurado que, nesse
período, 73% das cirurgias plásticas realizadas no Brasil foram estéticas.
Em média 132 cirurgias estéticas por ano (o que corresponderia a 11
cirurgias por mês e 3 por semana), contra 58 cirurgias reparadoras por
ano (o que corresponderia a 5 cirurgias por mês e 1 por semana). Apesar
de os homens estarem, cada vez mais, preocupando-se com a aparência,
a maioria das intervenções estéticas é realizada nas mulheres.
Segundo a pesquisa da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS) em conjunto com a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) e outras entidades, o Brasil realizou 905.124 procedimentos cirúrgicos estéticos em 2011, ocupando o 2° lugar do ranking
mundial de países que mais realizam cirurgias plásticas estéticas. Temse em primeiro lugar a Lipoaspiração, apresentando um crescimento de
129% nos últimos quatro anos e contabilizando 211.108 procedimentos
realizados. O Brasil ocupa o segundo lugar nos casos de mamoplastia
(aumento de mama), com cerca de 148.962 procedimentos e de terceiro
lugar com a abdominoplastia (95.004). A grande novidade ficou por con-
28 Pesquisa diz que cirurgia plástica estética cresce 97% nos últimos quatro anos. 26 Jan
2013. Disponível em: http://www.d24am.com/noticias/saude/pesquisa-diz-que-cirurgia-plasticaestetica-cresce-97-nos-ultimos-quatro-anos/79035>. Acesso em: 12 jun. 2013.
29 Cirurgia Plástica no Brasil. Disponível em: <http://www2.cirurgiaplastica.org.br/images/
Docs/pesquisa2009.pdf>. Acesso em: 02 jun. 2012.
50
2 • A CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉTICA À LUZ DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
ta da Blefaroplastia que apesar de ocupar o 4° lugar no ranking teve um
aumento de 120% no período, crescimento similar ao da lipoaspiração30.
Além disso, segundo um levantamento da Sociedade Brasileira
de Cirurgia Plástica (SBCP), o Brasil possui cerca de um cirurgião plástico para cada 44 mil habitantes, número que já supera o de cirurgiões
plásticos por habitante nos Estados Unidos31.
Percebe-se, portanto, que no Brasil há uma verdadeira produção
em massa quando se trata de cirurgias plásticas estéticas. Porém, como
fica a situação do paciente quando há um erro médico? Quais as implicações jurídicas para os médicos e as empresas que cometem erros?
Passa-se a discutir essas questões a partir de agora.
Conforme a regra geral, a responsabilidade civil decorrente de
erro médico é subjetiva. Porém, nos casos de cirurgia plástica estética
a responsabilidade passa a ser, de modo geral, objetiva, pois se entende
que a obrigação do médico é de resultado (o médico tem a obrigação de
atingir o resultado prometido), enquanto que na primeira, é de meio (o
médico não está comprometido a um resultado específico).32
O médico não pode garantir a cura ao paciente. Sendo assim, a
culpa no erro médico é presumida, sendo o entendimento mais lógico.
Porém, no caso de cirurgia plástica estética, não se trata, a priori, de
busca pela cura de uma doença. O médico, ao ser contratado, está empenhado a atingir o resultado prometido.
No entanto, segundo VENOSA33, é importante destacar que nem
toda cirurgia estética resulta em obrigação de resultado, como, por
exemplo, os casos de cirurgias urgentes, realizadas em pessoas acidentadas com o fito de evitar danos irreversíveis.
Mas, uma questão fundamental a ser discutida é o fato de que o
tratamento médico atualmente, além de ser regulado pelo Código Civil
Brasileiro34, também é alcançado pelos princípios do Código de Defesa
30 Pesquisa diz que cirurgia plástica estética cresce 97% nos últimos quatro anos. 26 Jan 2013.
Op. Cit.
31 Ibidem
32 DINIZ, op. cit., p. 278-280.
33 VENOSA, Silvio de Salvo. Responsabilidade Profissional: Responsabilidade Médica e
Odontológica. In.: ______. Direito Civil: responsabilidade civil. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 102.
34 BRASIL. Código Civil Brasileiro. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 02 jul. 2012.
51
Robson Antão de Medeiros - Suênia Oliveira Vasconcelos
do Consumidor35. O paciente, portanto, coloca-se na posição de consumidor e o médico (ou a pessoa jurídica), por sua vez, de fornecedor.
No tocante à responsabilidade dos hospitais e empresas de medicina de grupo, o Código de Defesa do Consumidor preleciona em seu
artigo 14 o seguinte:
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente
da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos
consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como
por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
[...]
§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada
mediante a verificação de culpa.
Sendo assim, a responsabilidade da pessoa jurídica na prestação
de serviços médicos, nos termos do referido código, é objetiva, ou seja,
independe da aferição de culpa. Porém, quando se trata de profissionais
liberais individuais, no caso dos médicos, a responsabilidade é subjetiva.
Os hospitais ou os operadores de planos de saúde enquadram-se
como fornecedores de serviços. Estão submetidos ao CDC, bem como
ao artigo 932, do Código Civil, que em seu inciso III, dispõe:
Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:
[...]
III – o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e
prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele.
Sobre a responsabilidade das pessoas jurídicas, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, §6o, determina que:
Art. 37 [...]
§6o- As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado
prestadores de serviços públicos responderão pelos danos que seus
agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de
regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Percebe-se que, a atividade do estabelecimento absorve a do médico. Portanto, pelo fato de no Brasil, além de haver diversos médicos
35 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/ L8078. htm>. Acesso em: 02 jul. 2012.
52
2 • A CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉTICA À LUZ DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
profissionais liberais realizando cirurgias plásticas, também há diversas
clínicas de cirurgias, com equipes numerosas, sendo mais prudente que
o paciente acione judicialmente, de forma conjunta, a clínica e o médico
responsável pelo dano.
Venosa ressalta, ainda, que no contexto da relação consumerista
médico-paciente, sobressai-se o dever de informação que, além de ser
inerente à atividade médica, é um dos princípios básicos do consumidor.36
É importante ressaltar que, o consentimento informado do paciente, bem como o caso fortuito e a força maior podem possibilitar o
afastamento da responsabilidade médica nos casos de erro em cirurgia
plástica estética.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, acórdão em recurso de apelação nº 00026119-83.2006.8.19.0001, proferido pelo Des.
José Carlos Paes, Julgamento: 18/05/2011 – Décima Quarta Câmara:
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO.
COMPROVAÇÃO. DANO MORAL. OCORRÊNCIA. 1. Evidente
que a relação travada entre as partes é de consumo, enquadrando-se
a autora no conceito de consumidor descrito no caput do artigo 2º do
Código de Proteção e Defesa do Consumidor, bem como o demandado
na máxima contida no caput do artigo 3º do citado diploma legal. 2.
Responsabilidade civil médica que enseja a incidência do artigo 14,
§4º, do CPDC, segundo o qual é subjetiva a responsabilidade dos
profissionais liberais. Precedente do TJ/RJ e doutrina.3. Cirurgia de
mamoplastia, de natureza estética, e não reparadora, tratando-se, assim,
de obrigação de resultado, incumbindo ao profissional comprovar que a
insatisfação de quem esteve sob seus cuidados
provém de fatos alheios a sua atuação. 4. Prova nos autos que demonstra
ter o médico obrado com culpa, no que toca à correção dos seios.
Resultado indesejado pela paciente.5. A alegada impossibilidade de
simetria perfeita e a ocorrência de álea nas cirurgias de redução de mamas
não eximem o médico da responsabilidade pelo descontentamento da
paciente frente ao resultado indesejável, haja vista que não há prova
nos autos de que a autora tenha sido previamente informada da
possibilidade de seus seios não ficarem como almejava.6. Dentre os
deveres de segurança, encontram-se presentes os deveres de informação
e de boa-fé, bem como, implicitamente, a garantia de assegurar a
legítima expectativa do consumidor, que se submete a procedimento
36 VENOSA, op. cit., p. 92.
53
Robson Antão de Medeiros - Suênia Oliveira Vasconcelos
cirúrgico e, após todos os procedimentos pré e pós-operatórios, vê-se
frustrada diante do resultado da cirurgia plástica realizada.7. Assim,
caracterizado erro médico passível de correção, deve o causador do
dano suportar o custo de procedimento cirúrgico reparatório, cujo valor
deverá ser apurado em liquidação de sentença.8. Dano moral in re ipsa
e fixados em R$ 5.000,00, por atender aos princípios da razoabilidade e
proporcionalidade. 9. Recurso parcialmente provido. Íntegra do
Acórdão - Data de Julgamento: 18/05/2011.
Outro julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, acórdão em recurso de apelação nº 0051380-46.2003.8.19.0004
(2007.001.08531, proferido pelo Des. Maria Inês Gaspar, Julgamento:
21/03/2007 – Décima Sétima Câmara:
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. CIRURGIA
PLÁSTICA. OBRIGAÇÃO DE RESULTADO. DANOS MATERIAIS E
MORAIS. Ação ordinária em que objetiva a autora reparação por danos
morais e materiais que teria sofrido, em virtude de alegado erro médico
em cirurgia plástica de mamas a que se submeteu perante o réu. Preliminar
de nulidade da sentença afastada. A responsabilidade dos profissionais
liberais, em princípio, é baseada na culpa (art. 14, § 4º do Código de
Defesa do Consumidor), mas, nos casos de cirurgia estética ou plástica,
o cirurgião assume obrigação de resultado. Conjunto probatório dos
autos que permite concluir ter sido insatisfatório o resultado obtido pela
autora através da cirurgia plástica de mamas realizada pelo cirurgiãoréu, o que lhe acarretou, inclusive, cicatrizes irregulares e assimetria
mamária, consoante apontado pela prova técnica. Serviço mal prestado.
Obrigação de indenizar caracterizada. Danos materiais demonstrados.
Dano moral e estético igualmente configurados. Quantificações dotadas
de proporcionalidade e razoabilidade, diante das circunstâncias do
caso concreto, a não merecer modificação. Os juros moratórios devem
incidir a partir da citação, por versar a
hipótese ilícito contratual. Sentença mantida. Desprovimento dos
recursos.
Íntegra do Acórdão - Data de Julgamento: 21/03/2007.
Porém, não se pode esquecer que cabe, em caso de dano por erro
médico, tanto reparação moral, material, como também, estética. A última, por sua vez, trata-se de um prejuízo que consiste em alteração,
deformidade ou aleijão. Sobre esse assunto, preleciona a Súmula 387, do
54
2 • A CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉTICA À LUZ DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
Superior Tribunal de Justiça - STJ, que: “É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral”.
6. Conclusões
A beleza, sem dúvida, é algo buscado por todos, apesar de cada
um possuir seu próprio conceito de belo. Na busca para alcançar o sonho de um corpo definido, musculoso, mamas fartas, pele sempre jovem etc., muitos, atualmente, guardam o dinheiro de uma vida toda de
trabalho, ou mesmo endividam-se por longo período. Porém, quando o
sonho torna-se pesadelo, é extremamente frustrante. Ora, o corpo humano não é uma máquina que pode ser montada, desmontada, mexida
e remexida ao bel-prazer, apesar de muitos pensarem o contrário. Determinados procedimentos cirúrgicos podem ser irreversíveis e causadores de danos psíquicos extremos.
Basta um rápido passeio pela internet para detectar diversos sites
de cirurgiões plásticos oferecendo os mais variados tratamentos. E, pior,
com literais promessas de beleza que facilmente poderiam ser atingidas.
Há um verdadeiro bombardeio midiático em torno desse assunto, principalmente pelo fato de todos os dias as “estrelas” surgirem na televisão
e nas fotografias com aparência de vinte anos a menos.
Atualmente, a “febre” da cirurgia embelezadora não atinge apenas as mulheres. Cada vez mais há homens que se submetem a tais procedimentos em busca de músculos, de melhorar o aspecto do rosto, enfim. Porém, o mais preocupante é a euforia dos jovens, que ainda nem
tiveram o corpo completamente definido pelo curso normal da natureza
e já desejam se submeter aos mais variados procedimentos cirúrgicos.
Hoje, as meninas não pedem mais aos pais um celular ou um computador de presente, mas “novas mamas com silicones”.
Os cirurgiões plásticos, por sua vez, se não incentivam a prática
desenfreada de cirurgias plásticas, ao menos, não desestimulam.
Sem dúvida, faz-se necessária uma maior conscientização ética
no que se refere à prática de cirurgias plásticas, uma maior fiscalização
por partes dos conselhos de medicina com vistas a analisar a conduta
ética dos profissionais, bem como o acompanhamento prévio de psicólogos e psiquiatras, tanto para as pessoas que desejam se submeter a esse
tipo de cirurgia, quanto na formação dos jovens. Além disso, deve haver
55
Robson Antão de Medeiros - Suênia Oliveira Vasconcelos
investimentos na área da saúde preventiva, com vistas a diminuir problemas que resultem na busca de cirurgias plásticas, como a obesidade,
por exemplo. A reeducação alimentar, o incentivo aos esportes e a uma
vida mais saudável, além de favorecer a saúde, sem dúvida, deixa a pele,
o corpo e o psicológico do sujeito melhor, deixa-o de bem com a vida.
Assim, a Carta Magna tem por objetivo, na sua essência, à dignidade da pessoa humana e à pacificação social. Por sua vez, o direito civil
deve ser interpretado a partir desses preceitos, qual seja, parafraseando
Busnello e Weinrich (2013) permitindo que os elementos presentes nas
situações que geram responsabilidade civil sejam valorados de forma a
se ter a completa dimensão do ato ilícito e suas consequências, o que
vem a contribuir para que a justiça seja alcançada de forma mais efetiva
no caso concreto.
7. Referências
BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. ______. Bioética:
contextualização. Origem, conceituação e abrangência. In: Bioética e
início da vida: alguns desafios. Aparecida: Ideias e Letras; São Paulo:
Centro Universitário São Camilo, 2004.
BRASIL. Código Civil Brasileiro. Disponível em: < http://www.
planalto.gov.br/ccivil_ 03/leis /2002 /l10406.htm>. Acesso em: 02 jul.
2012.
________. Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: <http://
www. planalto.gov.br/ccivil _03/leis/L8078. htm>. Acesso em: 02 jul.
2012.
________. Código de Ética Médica (Resolução 1931/2009/2010).
Disponível
em:
<http://www.portalmedico.org.br/novocodigo/
integra_4.asp>. Acesso em: 02 nov. 2013.
BUSNELLO, Saul José; WEINRICH, Jair. Responsabilidade civil
pela perda de uma chance: uma análise doutrinária. Jus Navigandi,
Teresina, ano 18, n. 3655, 4 jul. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.
br/revista/texto/24875>. Acesso em: 10 jul. 2013.
56
2 • A CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉTICA À LUZ DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
Cirurgia Plástica no Brasil. Disponível em: <http://www2.
cirurgiaplastica.org.br/images/Docs/pesquisa2009.pdf>. Acesso em: 02
jun. 2012.
COSTA, Sérgio Ibiapina; COSTA, Maurício Ribeiro Ferreira. A ética
profissional e a rapidez dos avanços tecnológicos. In: GARRAFA,
Volnei; PESSINI, Leo (Org.). Bioética: poder e injustiça. 2. ed. São
Paulo: Edições Loyola, 2004.
DINIZ, Maria Helena. Bioética e Biodireito. In.: ______. O estado atual
do biodireito. 6. ed. rev., aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.
DINIZ, Débora; COSTA, Sérgio. Ensaios: Bioética. São Paulo:
Brasiliense; Brasília: Letras Livres, 2006.
DRUMOND, José Geraldo de Freitas. Ética e inovação tecnológica
em medicina. Bioethikos, Centro Universitário São Camilo, São Paulo,
2007, p. 24-33. Disponível em: <http://www.saocamilosp.br/ pdf/
bioethikos/54/Etica_ e_inovacao. pdf>. Acesso em: 27 mai. 2012.
MARTIRE JUNIOR, Lybio. A história da cirurgia plástica.
Disponível em: <http://www.sbhm.org.br/index.asp?p=especialidades_
view&codigo=48>. Acesso em: 27 jul. 2012.
NEVES, M. Patrão. Contexto cultural e consentimento: uma
perspectiva antropológica. In: GARRAFA, Volnei; PESSINI, Leo (Orgs.).
Bioética: poder e injustiça. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
Pesquisa diz que cirurgia plástica estética cresce 97% nos últimos
quatro anos. 26 Jan 2013. Disponível em: http://www.d24am.com/
noticias/saude/pesquisa-diz-que-cirurgia-plastica-estetica-cresce-97nos-ultimos-quatro-anos/79035>. Acesso em: 12 jun. 2013.
SARTORI, Marina. Disponível em: <http://www.plasticamontenegro.
com.br/artigos/historia-da-cirurgia-plastica.html>. Acesso em: 12 jun.
2013.
SÉGUIN, Elida. Biodireito. 4 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,
2005.
VENOSA, Silvio de Salvo. Responsabilidade profissional:
responsabilidade médica e odontológica. In.: ______. Direito Civil:
responsabilidade civil. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
57
3
A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E AS
FUNÇÕES DA BOA-FÉ
Marcos Ehrhardt Júnior1
Sumário: Introdução: os diversos sentidos da boa-fé - 1.
A função integrativa da boa-fé objetiva - 2. Os deveres que
decorrem da boa-fé objetiva - 3. A função de controle da boafé objetiva: considerações sobre o exercício disfuncional de
uma posição jurídica - 3.1. Venire contra factumproprium - 3.2.
Supressio (Verwirkung) - 3.3. Surrectio (Erwirkung) - 3.4. Tu
quoque - 4. Conclusões - 5. Referências
Introdução: os diversos sentidos da boa-fé
É fácil perceber que a boa-fé está relacionada aos fatores socioculturais de um determinado lugar e momento, refletindo a realidade que
informa a ordem jurídica em que está inserida. No entanto, tal consta-
1 Advogado. Doutor pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre pela Universidade
Federal de Alagoas (UFAL). Professor de Direito Civil da UFAL; dos Cursos de Pós-Graduação da
UFPE; do Centro Universitário CESMAC e da Escola Superior da Magistratura em Pernambuco
(ESMAPE). Coordenador da Revista Fórum de Direito Civil. Integrante do Grupo de Pesquisa
Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE).
59
Marcos Ehrhardt Júnior
tação dificulta sua análise e, sobretudo, a comparação de sua utilização
nos diversos ordenamentos jurídicos2.
ANDRÉ COMTE-SPONVILLE denominou de “boa-fé” a palavra
para designar, entre todas as virtudes, nossas relações com a verdade.
Tratando da questão num âmbito puramente subjetivo, sustenta que
a boa-fé seria “um fato, que é psicológico, e uma virtude, que é moral”.
Enquanto fato considera a boa-fé como “conformidade dos atos e das
palavras com a vida interior, ou desta consigo mesma”, enquanto virtude,
a relaciona com o “amor ou o respeito à verdade”3.
Segundo PABLO STOLZE GAGLIANO e RODOLFO PAMPLONA FILHO, a boa-fé pode ser entendida como “uma diretriz principiológica de fundo ético e espectro eficacial jurídico. Vale dizer, a boa-fé se
2 Se se analisar a experiência italiana, ver-se-á que a boa-fé é tratada em diversos dispositivos
legais ao longo do código, merecendo destaque o disposto nos arts. 1.375 (“Il contratto deve
essereeseguitosecondobuona fede), art. 1.366 (“Ilcontratto deve essereinterpretatosecondobuona
fede”), e sobretudo no art. 1.358, assim redigido: “Coluiche si è obbligato o che ha
alienatoundirittosottocondizionesospensiva, ovverolo ha acquistatosottocondizionerisolutiva, deve,
in pendenzadellacondizione, comportarsisecondobuona fede per conservare integre leragionidell’altra
parte (1175, 1375)”. No sistema francês o tema vem disciplinado no capítulo relativo aos efeitos das
obrigações, especificamente no art. 1.134: “Lesconventionslégalementforméestiennentlieu de loi
à ceuxquilesontfaites. Elles ne peuventêtrerévoquées que de leurconsentementmutuel, ou pourles
causes que laloiautorise. Ellesdoiventêtreexécutées de bonne foi”. O Código de Quebec trata da
boa-fé em seu art. 6º (“Toutepersonne est tenue d’exercer sesdroitscivilsselonlesexigences de labonne
foi” e art. 7º (“Aucundroit ne peutêtreexercéenvue de nuire à autrui ou d’une manièreexcessive et
déraisonnable, allantainsi à l’encontredesexigences de labonne foi”).
3 COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Tradução de Eduardo
Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Versão digital obtida em http://www.pfilosofia.pop.com.
br/03_filosofia/03_03_pequeno_tratado_das_grandes_virtudes/ pequeno_tratado_das_grandes_
virtudes.htm, p. 105 e seguintes. Acesso em 12.12.2011. O autor prossegue afirmando que “não,
claro, que a boa-fé valha como certeza, nem mesmo como verdade (ela exclui a mentira, não o
erro), mas que o homem de boa-fé tanto diz o que acredita, mesmo que esteja enganado, como
acredita no que diz. É por isso que a boa-fé é uma fé, no duplo sentido do termo, isto é, uma
crença ao mesmo tempo em que uma fidelidade. É crença fiel, e fidelidade no que se crê. Pelo
menos enquanto se crê que seja verdade. Vimos, a propósito da fidelidade, que ela devia ser fiel
antes de tudo ao verdadeiro: isso define muito bem a boa-fé. Ser de boa-fé não é sempre dizer a
verdade, pois podemos nos enganar, mas é pelo menos dizer a verdade sobre o que cremos, e essa
verdade, ainda que a crença seja falsa, nem por isso seria menos verdadeira. É o que se chama
também de sinceridade (ou veracidade, ou franqueza), e o contrário da mentira, da hipocrisia,
da duplicidade, em suma, de todas as formas, privadas ou públicas, da má-fé. (...) A boa-fé é uma
sinceridade ao mesmo tempo transitiva e reflexiva. Ela rege, ou deveria reger, nossas relações tanto
com outrem como conosco mesmos. Ela quer, entre os homens como dentro de cada um deles, o
máximo de verdade possível, de autenticidade possível, e o mínimo, em consequência, de artifícios
ou dissimulações. Não há sinceridade absoluta, mas tampouco há amor ou justiça absolutos: isso
não nos impede de tender a elas, de nos esforçar para alcançá-las, de às vezes nos aproximarmos
delas um pouco. A boa-fé é esse esforço, e esse esforço já é uma virtude” (p. 106-7).
60
3 • A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ
traduz em um princípio de substrato moral, que ganhou contornos e matiz
de natureza jurídica cogente”4
Já se tornou lugar-comum distinguir a forma objetiva da boa-fé
de sua tradicional versão subjetiva. Pode-se definir a boa-fé objetiva
(TreuundGlauben) como um modelo ético de comportamento que se
exige de todos os integrantes da relação obrigacional, em contraposição
com a noção subjetiva de boa-fé (GutenGlauben), que significa o estado
de crença de um sujeito de estar agindo em conformidade com as normas do ordenamento.
Desse modo, a boa-fé subjetiva (“boa-fé crença”) relaciona-se ao
desconhecimento de determinada circunstância e difere da boa-fé em
sua dimensão normativa, a boa-fé objetiva, que diz respeito à confiança
e à legítima expectativa do sujeito (“boa-fé lealdade”). RUY ROSADO
DE AGUIAR JÚNIOR5 aponta a boa-fé subjetiva como qualidade do
sujeito, relativa ao estado de consciência da pessoa6, servindo à proteção
daquele que tem a consciência de estar agindo conforme o Direito, apesar de ser outra a realidade.
Nas palavras de DANIEL USTÁRROZ, “aquele que age de acordo
com a boa-fé subjetiva não tem consciência e não deseja que, de seu agir,
decorra prejuízo a outrem. A ação, ainda que seja contrária ao direito, é
4 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil;
Contratos.. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 72. v. IV.
5 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor.
Rio de Janeiro: Aide, 2004, p. 243. Nesse sentido, dispõe o art. 1.201 do CC/02: “É de boa-fé a posse,
se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa”. Como consequência,
o possuidor de boa-fé tem direito, enquanto ela durar, aos frutos percebidos (art. 1.214), além
de não responder pela perda ou deterioração da coisa, a que não der causa (art. 1.217). Outros
exemplos de positivação da boa-fé subjetiva no Código Civil podem ser encontrados nos arts. 1.242
e 1.561, dentre outros.
6 Em relação à boa-fé subjetiva existe dissenso doutrinário sobre os requisitos necessários a sua
configuração. Para os partidários de uma concepção puramente psicológica, basta a ignorância de
determinado fato ou estado de coisas, abstraindo-se qualquer aferição de diligência do sujeito como
dado relevante. Já na concepção ética, “o desconhecimento do vício que torna ilegítimo o exercício
da posição jurídica ou a aquisição do direito não pode ser culposo”. DUARTE, RonniePreuss. A
cláusula geral da boa-fé no novo código civil brasileiro. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones
Figueiredo. Novo Código Civil: Questões controvertidas. São Paulo: Método, 2004, p. 414 v.
2. Sem dúvida, é mais fácil perquirir as circunstâncias fáticas que permitiriam ao figurante do
contrato ter ciência do vício que tornava ilegítimo o exercício de sua posição jurídica do que saber
o que se passou em seu íntimo. Resta saber qual o grau de diligência a ser exigido, sendo a melhor
alternativa aquela que leva em consideração as condições pessoais do agente, como, por exemplo,
seu nível econômico-social, educação, experiência profissional etc.
61
Marcos Ehrhardt Júnior
tida pelo agente como lícita, e esse sentimento o anima para determinar
sua conduta”7.
A dificuldade para se buscar uma melhor precisão técnica que
facilite à compreensão da noção da boa-fé subjetiva pode ser bem ilustrada na lúcida ponderação de ANDRÉ COMTE-SPONVILLE:
Dir-se-á que a boa-fé não prova nada; estou de acordo. Quantos
canalhas sinceros, quantos horrores consumados de boa-fé? (...) Um
canalha autêntico é um canalha: de que adianta sua autenticidade?
Como a fidelidade ou a coragem, a boa-fé tampouco é uma virtude
suficiente ou completa. Ela não substitui a justiça, nem a generosidade,
nem o amor. Mas que seria uma justiça de má-fé? Que seriam um
amor ou uma generosidade de má-fé? Já não seriam justiça, nem amor,
nem generosidade, a não ser que corrompidos à força de hipocrisia,
de cegueira, de mentira. Nenhuma virtude é verdadeira, ou não é
verdadeiramente virtuosa sem essa virtude de verdade. Virtude sem
boa-fé é má-fé, não é virtude8.
Embora seja possível distinguir as espécies, deve-se anotar que
não existe independência entre elas, pois “divergem entre si na mesma
medida em que se complementam”9.
O Código Civil pátrio tratou da boa-fé em diversos dispositivos,
merecendo, todavia, destaque para o tratamento a ela conferido nos
arts. 113, 187 e 422, que espelham a diversidade de funções que esta
exerce em nosso ordenamento10.
7 USTÁRROZ, Daniel. Responsabilidade Contratual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2007, p. 71.
8 COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Tradução de Eduardo
Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Versão digital obtida em http://www.pfilosofia.pop.com.
br/03_filosofia/03_03_pequeno_tratado_das_grandes_virtudes/ pequeno_tratado_das_grandes_
virtudes.htm, p. 106.
9 LEWICKI, Bruno. Panorama da boa-fé objetiva. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas
de Direito Civil-Constitucional, p. 57. Aldemiro Rezende Danas Júnior afirma que a boa-fé
objetiva engloba a subjetiva, uma vez que “se o sujeito não desconhece a circunstância, nem ao
menos chegou a criar a justa expectativa, não se formou em seu interior a confiança” (Op. cit. p. 28,
nota de rodapé 3).
10 Há quem sustente também uma quarta função para a boa-fé, relacionando-a como “autorização
para decisão por equidade”. Sobre o tema ver MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de
Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 6. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011, p. 221.
62
3 • A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ
Ainda na Parte Geral do CC/0211, merece destaque a função interpretativa da boa-fé, prescrevendo o legislador que os negócios jurídicos devem ser interpretados “conforme a boa-fé e os usos do lugar
de sua celebração”12, como também a função de controle, servindo de
standard, arquétipo social adequado, para limitação do exercício abusivo ou disfuncional de direitos, conforme determina o art. 18713 do
referido diploma14.
No campo do direito obrigacional15, surge mais uma das funções
comumente atribuídas à boa-fé, desta vez relacionada à criação de novos deveres no tráfego jurídico. Trata-se da função integrativa (art. 422),
que para ENZO ROPPO, permite determinar a medida e a qualidade
das obrigações que resultam do próprio contrato, numa lógica de respeito da autonomia privada16.
11 O Código Civil Suíço também trata da boa-fé em sua parte geral, não havendo
dúvidas de sua aplicação a todos os demais dispositivos previstos na parte especial da
mencionada lei. Vale aqui transcrever o teor dos arts. 2.º(Chacun est tenu d’exercer sesdroits et
d’exécutersesobligationsselonlesrègles de labonne foi) e art. 3º (La bonne foi est présumée, lorsquelaloien
fait dépendrelanaissance ou leseffets d’undroit).
12 No Código Civil Alemão (BGB), pode-se identificar idêntica função em seu § 242, que
trata do tema da seguinte forma: “Der Schuldneristverpflichtet, die Leistungsozubewirken,
wieTreuundGlaubenmitRücksichtauf die Verkehrssitte es erforder”. Numa tradução livre, o referido
dispositivo pode ser assim compreendido: “Um devedor tem o dever de agir (ou de se comportar)
de acordo com as exigências da boa-fé, tendo em consideração as práticas correntes”. Vale destacar o
teor do Enunciado 409 da V Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal,
relativo ao art. 113 do CC/02: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados não só conforme a
boa-fé e os usos do lugar de sua celebração, mas também de acordo com as práticas habitualmente
adotadas entre as partes”.
13 Art. 187: “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes”. Vale destacar o teor do Enunciado 413 da V Jornada de Direito Civil, promovida pelo
Conselho da Justiça Federal, relativo ao art. 187 do CC/02: “Os bons costumes previstos no art. 187
do CC possuem natureza subjetiva, destinada ao controle da moralidade social de determinada época,
e objetiva, para permitir a sindicância da violação dos negócios jurídicos em questões não abrangidas
pela função social e pela boa-fé objetiva”.
14 Em sentido semelhante, no Código Civil Argentino, o tema é tratado no art. 1.071 da seguinte
forma: “El ejercicio regular de underechopropio o elcumplimiento de una obligación legal no puede
constituir como ilícito ningúnacto. La ley no ampara elejercicio abusivo de losderechos. Se considerará
tal al que contraríelos fines que aquéllatuvoen mira al reconocerlos o al que exceda loslímitesimpuestos
por labuenafe, la moral y lasbuenascostumbres”.
15 No Código Civil Espanhol, a exigência da boa-fé no campo obrigacional está disposta no
art. 1.258: “Los contratos se perfeccionan por el mero consentimiento, y desde entoncesobligan,
no sólo al cumplimiento de loexpresamentepactado, sino también a todas lasconsecuencias que,
segúnsunaturaleza, sean conformes a labuenafe, al uso y a laley”.
16 ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 2009, p. 290.
63
Marcos Ehrhardt Júnior
1. A função integrativa da boa-fé objetiva
Para CLÓVIS DO COUTO E SILVA, o princípio da boa-fé revela-se como delineador do campo a ser preenchido pela interpretação
integradora, no qual serão investigados os propósitos e intenções dos
contratantes17, razão pela qual não indica qual a conduta a ser adotada
pelas partes de uma relação negocial, mas como estas devem se comportar. É nesse sentido que TERESA NEGREIROS anota que
[...] o princípio da boa-fé, como resultante necessária de uma ordenação
solidária das relações intersubjetivas, patrimoniais ou não, projetada
pela Constituição, configura-se muito mais do que como fator de
compreensão da autonomia privada, como um parâmetro para a sua
funcionalização à dignidade da pessoa humana, em todas as suas
dimensões18.
Noutras palavras, o dever geral de boa-fé é atendido quando as
partes desempenham suas condutas de modo honesto, leal e correto,
evitando causar danos ao outro (dever de proteção) e garantindo o conhecimento de todas as circunstâncias relevantes para a negociação
(dever de informação) – comportamento que faz florescer laços de confiança entre os contratantes19. A boa-fé, por conseguinte, exige a adoção
de uma postura proativa, traduzida em esmero, dedicação e cooperação
na relação obrigacional; enfim, tudo o que se espera de uma fraterna
convivência.
17 COUTO E SILVA, Clóvis V. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 36.
18 NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da
Boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 222-3.
19 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações, p. 81/83, onde o autor faz referências
ao pensamento de Antônio Menezes Cordeiro. Neste ponto, é interessante destacar que a noção
de boa-fé exprime um imperativo ético, ou seja, encerra a ideia de um comportamento ideal a ser
atingido, não se confundindo com a noção de bons costumes, muito mais próxima do campo da
moral que é extraída da realidade social. Neste particular, Clóvis do Couto e Silva sustenta que
“os bons costumes referem-se a valores morais indispensáveis ao convívio social, enquanto a boa-fé
tem atinência com a conduta concreta dos figurantes na relação jurídica. Assim, quem convenciona
não cumprir determinado contrato age contra os bons costumes, decorrendo a nulidade do negócio
jurídico. De outro lado, quem deixar de indicar circunstância necessária ao fiel cumprimento da
obrigação terá apenas violado dever de cooperação para com o outro partícipe do vínculo, inexistindo,
porém, infringência à cláusula dos bons costumes” (In A obrigação como processo. Rio de Janeiro:
FGV, 2006, p. 35).
64
3 • A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ
A boa-fé requer um relacionamento particularizado entre dois
sujeitos, vale dizer, um contato social qualificado que se caracteriza pelo
estreitamento da relação, com as expectativas que cria e as vulnerabilidades que engendra, permitindo a interação comunicativa que gera a
confiança20.
A exata compreensão desse instituto não deve se limitar ao desenvolvimento de obrigações negativas. Dito de outro modo: não basta que
cada um dos figurantes da relação obrigacional se abstenha de praticar
atos que reduzam as possibilidades da outra parte de obter o máximo
de proveito da prestação; a boa-fé prescreve a obrigação de cada um dos
sujeitos realizar tudo quanto esteja ao seu alcance para assegurar à contraparte o resultado útil almejado, independentemente de tais condutas
estarem expressamente previstas no contrato.
Por isso, seu conceito não pode ser encontrado na análise do texto legal; mas sim, na decisão judicial que aprecia como deve ocorrer sua
aplicação, levando em consideração as circunstâncias do caso concreto,
exigindo, para sua compreensão, mais da análise da atividade judicial do
que da análise de textos doutrinários.
Para agravar tal dificuldade, está-se diante de uma categoria da
teoria geral do direito, que não se limita apenas ao campo do direito
obrigacional, podendo ser utilizada no direito das coisas (v.g., arts. 1.201
e 1.826), no direito de família21 (art. 1.561), o que apenas demonstra sua
tendência expansionista22, uma vez que hoje ela também é largamente
utilizada no direito processual e no direito administrativo.
Apesar de escapar dos objetivos do presente trabalho, não se pode
deixar de registrar interessante precedente que demonstra a aplicação
20 RIBEIRO, Joaquim de Sousa. Direitos dos Contratos..Estudos. Coimbra: Coimbra, 2007, p.
217.
21 Sobre a aplicação da boa-fé no direito de família, interessante registrar recente decisão do
Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto: “Nas relações familiares, o princípio da boa-fé objetiva
deve ser observado e visto sob suas funções integrativas e limitadoras, traduzidas pela figura do
venire contra factumproprium (proibição de comportamento contraditório), que exige coerência
comportamental daqueles que buscam a tutela jurisdicional para a solução de conflitos no âmbito do
Direito de Família” (REsp 1087163/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA,
julgado em 18/8/2011, DJe 31/8/2011).
22 Vale destacar o teor do Enunciado 414 da V Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho
da Justiça Federal, relativo ao art. 187 do CC/02: “A cláusula geral do art. 187 do Código Civil
tem fundamento constitucional nos princípios da solidariedade, devido processo legal e proteção da
confiança e aplica-se a todos os ramos do direito”.
65
Marcos Ehrhardt Júnior
do princípio da boa-fé no campo do direito processual em relação às
condutas do próprio magistrado que conduzia o processo, preservando
o comportamento prévio que criou nas partes uma legítima expectativa:
RECURSO ESPECIAL - EMBARGOS À EXECUÇÃO - PRELIMINAR
DE INTEMPESTIVIDADE - INEXISTÊNCIA - ART. 244, DO CÓDIGO
DE PROCESSO CIVIL - PREQUESTIONAMENTO - AUSÊNCIA
- INCIDÊNCIA DA SÚMULA 211/STJ - PREPARO - AUSÊNCIA INTIMAÇÃO PESSOAL - DESNECESSIDADE - PRECEDENTES
DESTA CORTE SUPERIOR - PORÉM, DETERMINADA A
INTIMAÇÃO PARA RECOLHIMENTO DO PREPARO E
DEVIDAMENTE CUMPRIDO - VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA
CONFIANÇA (VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM) - DECISÃO
QUE EXTINGUE A DEMANDA, SEM JULGAMENTO DE MÉRITO
- PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA - OBSERVÂNCIA - RECURSO
ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO,
PROVIDO. (...) III - A jurisprudência desta Corte Superior proclama que,
na hipótese de oposição de embargos do devedor, sem a comprovação
do recolhimento de preparo, o Juiz deve determinar o cancelamento
da distribuição do processo e o arquivamento dos respectivos autos,
independentemente de intimação pessoal. IV - Todavia, na espécie,
a conduta do Juízo a quo revela-se contraditória e viola o princípio
insculpido na máxima nemopotestvenire contra factumproprium, na
medida em que anteriormente determinou - quando não precisava
fazê-lo - a intimação para recolhimento do preparo e, ato contínuo,
mesmo após o cumprimento de sua ordem, entendeu por bem
julgar extinta a demanda, sem julgamento de mérito. V - Tal atitude
viola o princípio da boa-fé objetiva porque criou, na parte autora, a
legítima expectativa de que, após o recolhimento do preparo, dentro
do prazo estabelecido pelo Magistrado, suas razões iniciais seriam
examinadas, observado-se o devido processo legal. VI - Determinada
a intimação para recolhimento do preparo e figurando este devidamente
cumprido, em tempo e modo oportunos, não é o caso de extinção dos
embargos à execução, com base no art. 267, IV, do CPC. VII - Recurso
especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido23.
De igual modo, desta feita no campo das relações entre o Estado e os particulares, é importante anotar a recente decisão do Superior
23 REsp 1116574/ES, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 14/4/2011, DJe
27/4/2011.
66
3 • A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ
Tribunal de Justiça, que ao apreciar a questão da possibilidade de devolução de valores recebidos indevidamente pelo servidor público, apresentou alguns critérios da aferição da boa-fé no caso concreto24.
Por conta disso, daqui em diante, utilizar-se-á sempre de decisões
recentes dos Tribunais, para melhor compreender o desenvolvimento
da boa-fé em nossa experiência jurídica.
À medida que as relações sociais e econômicas vão se mostrando cada vez mais complexas, os deveres relativos ao adimplemento dos
vínculos obrigacionais daí decorrentes ampliam-se, desdobrando-se em
diversas matizes, podendo surgir antes mesmo de vir a se concretizar a
obrigação ou mesmo em hipóteses nas quais a obrigação nem virá a se
concretizar25. Tais deveres também se manifestam ao longo de toda a
existência da relação, orientando-se sempre pela busca do melhor proveito possível, o que pode ensejar que alguns de seus aspectos perdurem
mesmo após o adimplemento das prestações principais.
Desse modo, a exigência de boa-fé no comportamento das partes
impõe limites objetivos ao tráfego jurídico, desde o período pré-contratual (in contraendo) até mesmo após o encerramento do negócio (deveres posfactumfinitum), ensejando uma verdadeira transeficácia da relação contratual, cuja intensidade é inversamente proporcional ao espaço
de autonomia privada reservado aos contratantes 26.
Em relação aos deveres e à exigência de boa-fé em todas as fases do desenvolvimento da relação jurídica obrigacional, vale destacar o
teor do Enunciado 170 da III Jornada de Direito Civil, promovida pelo
24 AgRg no REsp 1263480/CE, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em
01/9/2011, DJe 9/9/2011. Segundo o Relator: “A boa-fé não deve ser aferida no real estado anímico
do sujeito, mas sim naquilo que ele exterioriza. Em bom vernáculo, para concluir se o agente estava
ou não de boa-fé, torna-se necessário analisar se o seu comportamento foi leal, ético, ou se havia
justificativa amparada no direito. Busca-se, segundo a doutrina, a chamada boa-fé objetiva. 4. Na
análise de casos similares, o Superior Tribunal de Justiça tem considerado, ainda que implicitamente,
um elemento fático como decisivo na identificação da boa-fé do servidor. Trata-se da legítima
confiança ou justificada expectativa, que o beneficiário adquire, de que valores recebidos são legais e
de que integraram em definitivo o seu patrimônio”.
25 DANTAS JUNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos Atos Próprios no Princípio da Boa-fé.
Curitiba: Juruá, 2008, p. 163.
26 Desse modo, “quanto maior o peso da horizontalidade, maior o espaço da autonomia privada e,
consequentemente, menor a intensidade da aplicação da boa-fé” (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria
Geral das Obrigações, p. 83). O que se busca explicar é que na aplicação do princípio da boa-fé
devem ser considerados o momento e o lugar em que se realiza a transação, para se quantificar o
nível de liberdade dos contratantes quando da realização do negócio.
67
Marcos Ehrhardt Júnior
Conselho da Justiça Federal: “A boa-fé objetiva deve ser observada pelas
partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato,
quando tal exigência decorrer da natureza do contrato”.
Justifica-se a importância da afirmação da aplicação do dever geral de boa-fé objetiva na fase pré-contratual27 e até mesmo após a execução do contrato pelo fato de o teor do art. 422 do Código Civil exigir que
se guarde a boa-fé “na conclusão do contrato, como em sua execução”.
O enunciado deixa claro que existe o dever de guardar a boa-fé desde o
início do contato social e até mesmo após a conclusão do negócio com
o seu regular adimplemento. No entanto, deve-se tomar cuidado para
que uma interpretação literal do enunciado (que se refere ao dever de
observar a boa-fé “quando tal exigência decorrer da natureza do contrato”) não restrinja sua utilização aos deveres principais e acessórios da
relação obrigacional.
Nesse sentido, é clara a disciplina da matéria da responsabilidade
pré-contratual no Código Civil Italiano, que em seu artigo 1.337 assegura que a boa-fé é exigível desde o desenvolvimento das negociações
preliminares28.
Como visto no item anterior, a relação obrigacional complexa
exige a observância de deveres laterais justamente hauridos, por construção doutrinária e jurisprudencial, do disposto no art. 422 do Código
Civil, cuja importância reside no fato de ter positivado o dever geral de
boa-fé, facilitando o trabalho do intérprete quando de sua concretização. Para ilustrar o afirmado acima, vale transcrever a decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre a responsabilidade civil pós-contratual:
CIVIL E PROCESSO CIVIL. CONTRATOS. DISTRIBUIÇÃO.
CELEBRAÇÃO VERBAL. POSSIBILIDADE. LIMITES. RESCISÃO
IMOTIVADA. BOA-FÉ OBJETIVA, FUNÇÃO SOCIAL DO
CONTRATO E RESPONSABILIDADE PÓS-CONTRATUAL.
VIOLAÇÃO. INDENIZAÇÃO. CABIMENTO. DANOS MORAIS
27 Para Sérgio Cavalieri Filho, “o espaço da responsabilidade pré-contratual é aquele em que os
contatos já se iniciaram, mas o contrato ainda não se realizou”. (In: Programa de Responsabilidade
Civil. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 300).
28 Eis o texto do art. 1.337 do Código Civil Italiano: “Le parti, nellosvolgimentodelletrattative e
nellaformazionedelcontratto, devonocomportarsisecondobuona fede”. Do mesmo modo, o Código
Civil Português (art. 227) assim dispõe: “1. Quem negoceia com outrem para conclusão de um
contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa
fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”.
68
3 • A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ
E HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. REVISÃO. POSSIBILIDADE,
DESDE QUE FIXADOS EM VALOR IRRISÓRIO OU
EXORBITANTE. SUCUMBÊNCIA. DISTRIBUIÇÃO. CRITÉRIOS.
(...)3. A complexidade da relação de distribuição torna, via de regra,
impraticável a sua contratação verbal. Todavia, sendo possível, a partir
das provas carreadas aos autos, extrair todos os elementos necessários à
análise da relação comercial estabelecida entre as partes, nada impede
que se reconheça a existência do contrato verbal de distribuição. 4. A
rescisão imotivada do contrato, em especial quando efetivada por
meio de conduta desleal e abusiva - violadora dos princípios da
boa-fé objetiva, da função social do contrato e da responsabilidade
pós-contratual - confere à parte prejudicada o direito à indenização
por danos materiais e morais. 5. Os valores fixados a título de danos
morais e de honorários advocatícios somente comportam revisão em
sede de recurso especial nas hipóteses em que se mostrarem exagerados
ou irrisórios. Precedentes. (...) 7. Recurso especial não provido. (REsp
1255315/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA,
julgado em 13/9/2011, DJe 27/9/2011).
Vale esclarecer que em relação à pós-eficácia da relação jurídica
obrigacional, devem-se afastar aqueles deveres ajustados previamente
pelas partes, ainda que tenham sua execução exigida após o cumprimento da obrigação principal, pois nesta hipótese ainda permanecem
vinculados à vontade das partes. Para caracterizar a pós-eficácia da relação obrigacional basta avaliar se o escopo contratual foi frustrado a
pretexto de que a obrigação se extinguiu29.
No campo da pós-eficácia comumente se verifica a tentativa de
evitar a ocorrência de dano tão logo detectado um problema (recall), o
dever de prestar assistência técnica, o dever de prestar contas e o dever
de fornecer peças de reposição.
2. Os deveres que decorrem da boa-fé objetiva
Nos tópicos anteriores enfatizou-se a necessidade de as partes se
comportarem segundo leregole dela correttezza, anotando-se que o tratamento dogmático dos deveres gerais de conduta ultrapassou a mera
exigência de proteção dos figurantes e do seu patrimônio para exigir um
29 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Da Boa-fé no Direito Civil. Coimbra:
Almedina, 2011, p. 630.
69
Marcos Ehrhardt Júnior
comportamento voltado à obtenção da plena satisfação da obrigação,
abrangendo deveres de informação (esclarecimento) e de lealdade, em
cuja base de sustentação está a boa-fé.
Decorreriam da boa-fé os seguintes deveres30:
Dever de proteção, que impõe às partes a obrigação de prevenir danos31, tanto em relação ao objeto da prestação como também em
relação às esferas jurídicas das partes e eventualmente de terceiros,
e se desdobra na exigência da manutenção de um comportamento
diligente; exigência de velar pelo adequado fluxo da relação jurídica
obrigacional com cuidado, previdência e segurança;
b) Dever de informação, que impõe às partes a obrigação de advertir,
explicar, esclarecer, avisar, prestar contas, sempre que se fizer necessário, em especial quando da ocorrência de circunstância ainda desconhecida da outra parte, mas necessária ao pleno desenvolvimento
da relação jurídica obrigacional na direção do mesmo adimplemento possível;
c) Dever de cooperação, que impõe às partes a obrigação de mútuo
auxílio na superação de eventuais obstáculos surgidos em qualquer
fase do desenvolvimento da relação jurídica obrigacional, por vezes confundindo-se com a exigência de fidelidade e lealdade entre
as partes contratantes, que dentre outras condutas pode ensejar o
dever de omissão e segredos de informações obtidas no iter obrigacional para preservação de interesses comuns ou específicos de um
dos figurantes.
a)
Ainda em referência à exigência de lealdade, resta destacar sua
íntima relação com a confiança depositada no outro contratante, originada de comportamentos anteriormente adotados pelos sujeitos, que em
razão de tal postura passaram a acreditar em um determinado desdobra-
30 O tema é retratado por diversos autores, dentre os quais cumpre citar MENEZES CORDEIRO,
António Manuel da Rocha. Da Boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2011, p. 546-564
e 648-9; COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações, p. 65-7; DANTAS JUNIOR,
Aldemiro Rezende. Teoria dos Atos Próprios no Princípio da Boa-fé. Curitiba: Juruá, 2008, p.
165-7; COUTO E SILVA, Clóvis V. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 30-8;
JALUZOT, Béatrice. La bonne foi danslescontrats, p. 511-5.
31 A lisura negocial que o princípio impõe traduz-se, neste contexto, “no dever de não se prevalecer
oportunisticamente de um conteúdo contratual que, em face das novas e imprevistas circunstâncias, se
tornou excessivamente oneroso ou inútil para a outra parte” (RIBEIRO, Joaquim de Sousa. Direito
Dos Contratos; Estudos. Coimbra: Coimbra, 2007, p. 211). Por esta razão, o não cumprimento
desse dever de proteção justifica uma decisão judicial corretiva (ou extintiva) da situação concreta.
70
3 • A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ
mento da situação, não podendo a expectativa fundada em elementos
fáticos aferíveis objetivamente ser violada sem qualquer justificativa32.
Um claro exemplo do reconhecimento judicial da obrigatoriedade dos deveres laterais (rectius gerais) da relação obrigacional pode ser
visto no caso abaixo transcrito:
RECURSO ESPECIAL. CONTRATO INTERNACIONAL DE
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PARA A AMPLIAÇÃO DE USINA
TERMELÉTRICA NACIONAL. PAGAMENTO EM LIRAS
ITALIANAS. REMESSA VIA BANCO CENTRAL. VIOLAÇÃO
DO DEVER DE COOPERAÇÃO. MORA DA PRESTADORA DE
SERVIÇOS ITALIANA RECONHECIDA (MORA “CREDITORIS”).
I - Contratação, por concessionária de energia elétrica nacional, de
sociedade italiana para a prestação de serviços relacionados à ampliação
de Usina Termelétrica no Estado de Santa Catarina. II - Remuneração
convencionada em liras italianas nos termos do art.2º do Decreto-lei
857/69, remetida via Banco Central do Brasil. III - Não-pagamento, pela
concessionária, de notas e faturas de serviço em razão da impossibilidade
de remessa dos valores à Itália ante a não-regularização da situação
da prestadora dos serviços junto ao Banco Central do Brasil.( ...) V Exigidos documentos relativos aos seus funcionários, pertence à
prestadora de serviços italiana, em que pese a omissão contratual, a
obrigação acessória, derivada do princípio da boa-fé objetiva, de, em
cooperação com a concessionária, regularizar a situação, permitindo
a remessa dos valores. (...) (REsp 857.299/SC, Rel. Ministro PAULO DE
32 Sobre o tema vale transcrever a ementa de recente decisão do Superior Tribunal de Justiça
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. FUNGIBILIDADE RECURSAL. RECURSO RECEBIDO COMO
AGRAVO REGIMENTAL. SEGURO DE VIDA. NÃO RENOVAÇÃO. FATOR DE IDADE.
OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ OBJETIVA, DA COOPERAÇÃO, DA CONFIANÇA
E DA LEALDADE. AUMENTO. EQUILÍBRIO CONTRATUAL. CIENTIFICAÇÃO PRÉVIA DO
SEGURADO. 1. Em nome dos princípios da economia processual e da fungibilidade, admitem-se
como agravo regimental os embargos de declaração opostos a decisão monocrática proferida pelo
relator do feito no Tribunal. 2. Na hipótese em que o contrato de seguro de vida é renovado
ano a ano, por longo período, não pode a seguradora modificar subitamente as condições
da avença nem deixar de renová-la em razão do fator de idade, sem que ofenda os princípios
da boa-fé objetiva, da cooperação, da confiança e da lealdade. 3. A alteração consistente em
aumentos necessários ao equilíbrio contratual deve ser efetuada de maneira gradual, da qual o
segurado tem de ser previamente cientificado. 4. Embargos de declaração recebidos como agravo
regimental, ao qual se nega provimento. (EDcl no REsp 1159632/RJ, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO
DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 9/8/2011, DJe 19/8/2011). Sobre o assunto, ver
também REsp 866.840/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Rel. p/ Acórdão Ministro
RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 7/6/2011, DJe 17/8/2011.
71
Marcos Ehrhardt Júnior
TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 3/5/2011,
DJe 13/6/2011).
Tratando da boa-fé como norma de validade, JOAQUIM DE
SOUSA RIBEIRO afirma que ela constitui um fator de determinação,
em concreto, dos efeitos do vínculo obrigacional, destacando ainda que
em qualquer de suas modalidades operativas a boa-fé está relacionada à
prevenção de danos, tanto daqueles que poderiam resultar da violação
de bens já integrantes da esfera jurídica de qualquer dos participantes da
relação, como daqueles relacionados a não consecução (ou consecução
imperfeita) dos fins que justificaram a constituição da relação jurídica33.
Nesse contexto, seria possível vislumbrar mais um dever decorrente da boa-fé: a obrigação de mitigação. Ao tratar da doutrina da mitigação, Ruy Rosado de Aguiar Júnior anota que deve o credor colaborar, apesar da inexecução do contrato, para que não se agrave, pela
sua ação ou omissão, o resultado danoso resultante do incumprimento,
pois não é possível pretender o ressarcimento de perda que teria podido
evitar, mas que não evitou por injustificada ação ou omissão34.
Sobre o dever de mitigar o prejuízo, aduz JOSÉ JAIRO GOMES que:
Feita a ponderação de valores, no momento em que se estabelece a
indenização deve-se ter em conta se o autor do dano adotou atitude
indiscutivelmente solidária e cooperativa para com a vítima. Não
bastam meras exteriorizações de boas intenções; é fundamental que
estas se materializem em atos concretos, efetivos e relevantes, no sentido
de minorar os efeitos maléficos do próprio comportamento danoso.
Cabe igualmente cogitar do agravamento da indenização se o causador
do dano não tiver se solidarizado com a vítima, no sentido indicado35.
Dentro dessa linha de raciocínio pode-se destacar o teor do
Enunciado 169, redigido na III Jornada de Direito Civil, promovida pelo
Conselho da Justiça Federal: “o princípio da boa-fé objetiva deve levar o
credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”. Apesar da importância prática do tema, é possível enquadrar tal dever dentro da obrigação
33 RIBEIRO, Joaquim de Sousa. Direito dos Contratos; Estudos. Coimbra: Coimbra, 2007, p. 208.
34 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor.
Rio de Janeiro: Aide, 2004, p. 136.
35 GOMES, José Jairo. Responsabilidade Civil e Eticidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 294.
72
3 • A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ
de cooperação, numa perspectiva mais ampla, que exige a adoção de
uma conduta positiva dirigida à proteção dos interesses do outro.
Aqui se pode destacar outra questão de fundamental importância
para a correta delimitação da extensão dos deveres exigíveis numa relação obrigacional: até que ponto podem ser exigidos sacrifícios do sujeito da relação jurídica obrigacional para que não seja violado o mencionado dever de cooperação?
O limite pode ser encontrado na preservação dos próprios interesses do sujeito, ou seja, a pretexto de atendimento do dever de cooperação não se pode exigir sacrifício desmesurado, causando nítido desequilíbrio entre as partes36.
Analisando o tema, DANIEL USTÁRROZ adverte que:
[...] o comportamento segundo a boa-fé deverá ser pensado a partir
das circunstâncias concretas de ambos os contratantes, pois nada
adiantaria salvar o interesse de um para comprometer o do outro
parceiro. Portanto, não se afigura razoável exigir determinada conduta,
ao pretexto de adimplir deveres laterais oriundos da boa-fé, se esse fato
importar sensível prejuízo, de modo que a própria causa do negócio
jurídico seja afetada. Deve estar presente uma ponderação entre os
interesses em jogo, a fim de que o intérprete conclua até que medida é
conveniente e legal exigir-se do contraente um comportamento que lhe
causará prejuízo37.
36 DANTAS JUNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos Atos Próprios no Princípio da Boafé. Curitiba: Juruá, 2008, p. 168-170. Ainda sobre o tema vale transcrever o § 275/2 do Código
Civil Alemão: “Der Schuldnerkann die Leistungverweigern, soweit diese einenAufwanderfordert,
der unterBeachtungdesInhaltsdesSchuldverhältnissesund der GebotevonTreuundGlauben in
einemgrobenMissverhältniszudemLeistungsinteressedesGläubigerssteht. Bei der Bestimmung
der demSchuldnerzuzumutendenAnstrengungenistauchzuberücksichtigen, ob der Schuldner das
Leistungshinderniszuvertreten hat”.Numa tradução livre, o referido dispositivo poderia ser assim
compreendido: “o devedor pode recusar o cumprimento na medida em que o seu desempenho
(prestação) exige despesa e esforço que, tendo em conta a natureza da obrigação e as exigências
da boa-fé, é totalmente desproporcional ao interesse do credor. Quando é determinado que os
esforços podem ser razoavelmente exigido do devedor, deve também ser tida em conta se ele é
responsável pelo obstáculo ao desempenho”.
37 USTÁRROZ, Daniel. Responsabilidade Contratual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2007, p. 85. Prosseguindo o raciocínio, aduz o autor: “Cumpre não perder de vista que, quanto
maiores os deveres decorrentes da aplicação do princípio da boa-fé objetiva, mais cautela as partes
irão tomar antes de entabular qualquer relação. E este fenômeno se mal administrado [concretizado
desvinculado do caso concreto e do paradigma do sistema calcado em princípios], poderá inibir
o tráfego jurídico, fato que traria nefasta consequência para a comunidade. (...) de nada adiantaria
que uma parte assumisse um comportamento que lhe ofertasse prejuízos, ainda que salvaguardasse
73
Marcos Ehrhardt Júnior
O objetivo neste ponto do trabalho é tentar apresentar uma possível classificação dos deveres que decorrem da boa-fé objetiva, destacando, desde logo, que qualquer divisão ou classificação de tais deveres
serve apenas para fins didáticos, buscando uma melhor sistematização
do assunto, uma vez que a linha divisória de cada uma das espécies a
seguir apresentadas é tênue e marcada pela imprecisão, pois não raro a
dinâmica da relação obrigacional exige a combinação de deveres diversos na direção do melhor adimplemento possível38.
Que anote-se, entretanto, uma característica comum a todos os
deveres gerais aqui analisados: sua independência ante as prestações
principais, pois o fato de ser impossível o cumprimento da prestação
principal não impede o surgimento dos demais efeitos que podem decorrer da relação jurídica obrigacional.
Registra-se um exemplo extremo para corroborar tal afirmação.
Imagine que alguém privado de discernimento em face de doença mental – e, portanto, absolutamente incapaz nos termos do disposto no inciso II do art. 3º do CC/02 – contratasse os serviços de uma empresa de
mudanças pelo telefone. Chegado o dia combinado, os funcionários da
empresa iniciam a remoção do mobiliário do referido contratante para
o caminhão antes que o gerente detecte a causa da invalidade do contrato. Mesmo tendo sido reconhecida a nulidade do negócio pactuado,
se durante a movimentação das peças algumas foram danificadas pelos
funcionários da empresa, persiste o dever de indenizar pela violação do
dever geral de proteção ao patrimônio do outro figurante.
Analisada a função integrativa da boa-fé objetiva, resta abordar a
função de controle, em especial o exercício disfuncional de uma posição
jurídica39.
o interesse alheio. A complexidade da obrigação estaria sendo atingida da mesma forma, apenas
alterando o patrimônio lesado (...) a boa-fé , assim como os demais princípios nunca podem ser
lidos isoladamente, e cada solução deve, dentro das contingências e particularidades do problema
analisado, salvaguardar todos os direitos envolvidos, conciliando a importância do elemento vontade
com a confiança” (p. 86-7).
38 Aldemiro Rezende Dantas Júnior cita um bom exemplo da dificuldade de precisar os limites de
tais deveres: “a colocação de um aviso, indicando que o piso está molhado, e, por isso, escorregadio,
atende não apenas ao dever de informação, mas também ao dever de proteção aos clientes, ainda
que estes ainda não tenham comprado qualquer produto ou que, já tendo pago o preço e recebido a
mercadoria, seus contratos já tenham sido extintos” (In: Teoria dos Atos Próprios no Princípio da
Boa-fé. Curitiba: Juruá, 2008, p. 172).
39 Vale destacar o teor do Enunciado 412 da V Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho
74
3 • A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ
3. A função de controle da boa-fé objetiva: considerações
sobre o exercício disfuncional de uma posição jurídica
3.1. Venire contra factumproprium
O exercício de direitos subjetivos apresenta limites, pois não pode
ofender os interesses da comunhão social40. Do dever geral de boa-fé objetiva derivam, por exemplo, o dever de não agir contra os atos próprios
(venire contra factumproprium) e o dever de informar, que influenciam
quando do controle judicial de cláusulas penais, sobretudo nas relações
de consumo, uma vez que “contribui para determinar o ‘que’ e o ‘como’ da
prestação e, ao relacionar ambos os figurantes do vínculo, fixa, também,
os limites da prestação”41.
Explica ANTÔNIO MENEZES CORDEIRO que a locução venire contra factumproprium tem origem canônica e representa a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assume comportamento
contraditório42. Com vasto campo de atuação, seu estudo configura a
denominada “Teoria dos Atos Próprios”, através da qual se analisam
dois comportamentos de uma mesma pessoa, lícitos em si e diferidos
no tempo. O primeiro (factumproprium) é contrariado pelo segundo
(venire)43.
O fundamento da proibição do exercício de uma posição jurídica
em contradição com o comportamento anteriormente assumido pelo
exercente é a confiança44. Trata-se de um abuso de direito (art. 187) por
violação à boa-fé45, que enseja duas consequências: além de impedir o
da Justiça Federal, relativo ao art. 187 do CC/02: “As diversas hipóteses de exercício inadmissível
de uma situação jurídica subjetiva, tais como supressio, tu quoque, surrectio e venire contra
factumproprium, são concreções da boa-fé objetiva”.
40 LIMA, Alvino. Culpa e Risco, p. 217.
41 COUTO E SILVA, Clóvis V. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 34.
42 MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de direito civil português, v.1, tomo 1, p. 250-1.
43 NANNI, Giovanni Ettore. Abuso de Direito, p. 764. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni
Ettore (coord.).Teoria Geral do Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2008, p. 738- 772.
44 Nesse sentido o Enunciado nº 362 das Jornadas de Direito Privado do Conselho da Justiça
Federal: “Art. 422. A vedação do comportamento contraditório (venire contra factumproprium)
funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil”.
45 SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança
e venire contra factumproprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 114.
75
Marcos Ehrhardt Júnior
exercício do comportamento posterior, também gera o dever de reparar
eventuais prejuízos provocados pela contradição46.
Assim, a noção de confiança aqui empregada visa à proteção
de interesses que transcendem o indivíduo. Não se trata de proteger o
destinatário, mas sim a segurança do tráfico47. Cuida, portanto, de salvaguardar as expectativas contratuais dos que se aproximam e contratam48, valorizando o caráter social do negócio jurídico.
A expressão em análise, portanto, denota uma evidente contradição, não sendo admitido pelo sistema “comportar-se contra os seus próprios atos”, em face da falta de coerência, não obstante este não seja o seu
único elemento característico49. Um ponto decisivo é a demonstração da
deslealdade, uma vez que a finalidade aqui perseguida é a proteção de
quem confiou, em termos justificados, na primeira conduta50.
46 Vale aqui a lição de Ricardo Luís Lorenzetti: “como principio jurídico y regla hermenêutica tanto
laconfianza como laaparienciasignifican que se da primacía a lo objetivamente declarado; quiencrea
uma apariencia, se hace prisioneiro de ella” (LORENZETTI, Ricardo. La oferta como apariencia y
laaceptaciónbasadaenlaconfianza. Revista de Direito do Consumidor, nº. 35, p. 23, jul/set 2000).
47 ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. A tutela da confiança e seus reflexos na responsabilidade civil.
In: Frederico Viegas. (Org.). Direito Civil Contemporâneo. Brasília: Obcursos, 2009, p. 61-74.
48 NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno. Curitiba: Juruá, 2001, p. 154.
49 Aldemiro Rezende Dantas Júnior anota que em muitas ocasiões a falta de coerência do sujeito
não é proibida nem gera consequências jurídicas quando ocorre. No Código Civil encontramos
dispositivos que permitem a retratação de uma proposta formulada entre ausentes, a revogação de
um testamento que exprime situações nas quais a contrariedade, em si mesma, não é sancionada(In
Teoria dos Atos Próprios no Princípio da Boa-fé. Curitiba: Juruá, 2008, p. 294-5).
50 ADMINISTRATIVO. CONTRATO DE GARANTIA CELEBRADO POR PARTES DISTINTAS
DAQUELAS QUE AJUSTARAM O CONTRATO PRINCIPAL. COMPORTAMENTO
INICIAL QUE VINCULOU O ATUAR NO MESMO SENTIDO OUTRORA APONTADO.
QUEBRA DA CONFIANÇA. RESPONSABILIDADE. PROIBIÇÃO DE COMPORTAMENTO
CONTRADITÓRIO (NEMO POTEST VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM). (...) 4.
Contudo, o presente caso apresenta uma peculiaridade que não pode ser ignorada. É que, como bem
destacado pela Corte a quo, o ajuste entre a recorrente e o Banco Banorte S.A., tinha exatamente
por fim dar garantia ao acordo entabulado entre a Universidade Federal do Paraná e a IBM WTC
para o fornecimento de microcomputadores. 5. Deste modo, entender pela irresponsabilidade
da IBM BRASIL resultaria em desprover de qualquer eficácia o contrato celebrado entre esta e a
mencionada instituição bancária. Adotar um entendimento contrário à legitimidade da recorrente
levar-nos-ia a uma questão indecifrável, a um verdadeiro paradoxo: para que serviria o contrato
de garantia ante o inadimplemento do contrato principal? 6. Deve-se, portanto, atribuir função
econômico-individual ao ajuste, sobretudo diante da redação do art. 422 e do parágrafo
único do art. 2.035 do Código Civil de 2002, os quais impõe aos negócios jurídicos - mesmo
àqueles constituídos antes da entrada em vigor deste diploma, a obediência à cláusula geral
de ordem pública da boa-fé objetiva, a qual, por sua vez, sujeita ambos os contratantes à
recíproca cooperação a fim de alcançar o efeito prático que justifica a própria existência do
contrato. Sobretudo, também, porque a ninguém é dado vir contra o próprio ato, proibindo-
76
3 • A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ
JUDITH MARTINS-COSTA expõe com clareza seus elementos
constitutivos:
O seu fundamento técnico-jurídico – e daí a conexão com a boafé objetiva – reside na proteção da confiança da contraparte, a qual
se concretiza, neste específico terreno, mediante a configuração dos
seguintes elementos, objetivos e subjetivos: (a) a atuação de um fato
gerador de confiança, nos termos em que esta é tutelada pela ordem
jurídica; (b) a adesão da contraparte – porque confiou – neste fato; (c)
o fato de a contraparte exercer alguma atividade posterior em razão da
confiança que nela foi gerada; (d) o fato de ocorrer, em razão de conduta
contraditória do autor do fato gerador da confiança, a supressão do fato
no qual fora assentada a confiança, gerando prejuízo ou iniquidade
insuportável para quem confiara51.
Anota-se que quando isoladamente considerado, nenhum dos
comportamentos em análise se mostra ilícito, razão pela qual somente
é possível delimitar o campo de incidência do instituto se a conduta
for considerada como o conjunto dos dois comportamentos mencionados. Apesar disso, faz-se necessário que o segundo comportamento
não corresponda à violação de uma obrigação decorrente do primeiro
(senão haveria hipótese de mero inadimplemento), que exige do intérprete considerar, no conjunto da obra, dois comportamentos que são
autônomos, vinculados entre si apenas pelo contexto da situação.
Tal entendimento pode ser bem evidenciado no julgamento abaixo transcrito, no qual restou definido que não existe pretensão indenizatória para aquele que adquire bem tendo conhecimento prévio das
limitações impostas à propriedade. Ei-lo:
ADMINISTRATIVO. PARQUE ESTADUAL DA SERRA DO MAR.
AQUISIÇÃO DE IMÓVEL APÓS IMPOSIÇÃO DE LIMITAÇÃO
ADMINISTRATIVA. DIREITO À INDENIZAÇÃO. INEXISTÊNCIA.
1. Não cabe indenização pela limitação administrativa decorrente da
criação do Parque Estadual da Serra do Mar, se o imóvel foi adquirido
quando já incidiam as restrições impostas pelo Estado de São Paulo.
se o comportamento contraditório (nemopotestvenire contra factumproprium). (...) (REsp
1217951/PR, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em
17/2/2011, DJe 10/3/2011).
51 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo
obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 471.
77
Marcos Ehrhardt Júnior
2. Viola o princípio da boa-fé objetiva o particular que adquire,
por sua conta e risco, imóvel dentro de Unidade de Conservação
(Parque Estadual), ciente das limitações impostas à propriedade, e,
posteriormente, vem exigir indenização do Estado a pretexto dessas
mesmas limitações. 3. Recurso Especial provido. (REsp 686.410/SP,
Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em
6/11/2007, DJe 11/11/2009)52.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça apreciou um caso
no qual uma instituição financeira manejou embargos à execução movida por terceiro em desfavor de devedor comum, arguindo que o imóvel
penhorado – o único de propriedade do devedor – era bem de família,
insuscetível, portanto, de constrição judicial. Nada obstante, o objetivo
com a adoção de tal demanda tinha finalidade bem diversa do que a
proteção do patrimônio mínimo do devedor. Pretendia a instituição financeira livrar o imóvel da constrição alheia, para que sobre ele recaísse
apenas o ônus imposto por ela própria.
Explica-se. Ao contrário do débito contraído junto a terceiro, o
devedor tomou empréstimo à instituição financeira para construção
da própria casa objeto da constrição judicial. Nesta hipótese, apesar de
oponível contra o terceiro credor, a impenhorabilidade do bem de família não é eficaz perante a instituição financeira, que está protegida pelo
rol das exceções previstas na Lei 8.009/90.
Os ministros repeliram a pretensão da instituição financeira anotando ser abusivo o comportamento do credor que:
[...] esgrime contra terceiro o instituto do bem de família, sabedor que
contra ele próprio não será possível articular a mesma objeção, vendo-se
livre, portanto, para excutir o mesmo imóvel que deveria estar a salvo,
servindo de proteção ao direito de moradia constitucionalmente garantido.
Como consequência de tal entendimento, julgou-se que:
52 No mesmo sentido: MEMORANDO DE ENTENDIMENTO. BOA-FÉ. SUSPENSÃO DO
PROCESSO. O compromisso público assumido pelo Ministro da Fazenda, através de ‘memorando
de entendimento’, para suspensão da execução judicial de divida bancária de devedor que se
apresentasse para acerto de contas, gera no mutuário a justa expectativa de que essa suspensão
ocorrera, preenchida a condição. Direito de obter a suspensão fundado no principio da boa-fé
objetiva, que privilegia o respeito à lealdade. Deferimento da liminar, que garantiu a suspensão
pleiteada. Recurso improvido. (RMS6.183/MG, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR,
QUARTA TURMA, julgado em 14/11/1995, DJ 18/12/1995, p. 44.573).
78
3 • A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ
[...] dispondo de outros meios para a satisfação de seu crédito, tal como
a habilitação na execução alheia, comete abuso processual o credor
que impede que terceiro execute imóvel, sob a alegação de constituir
bem de família, para depois, em futura execução, frustrar, ele próprio,
a finalidade do instituto, excutindo o mesmo bem pretensamente
defendido53.
Da análise do caso acima comentado pode-se extrair mais uma
das características do instituto venire contra factumproprium, qual seja,
a exigência de que o comportamento repercuta numa esfera jurídica
alheia, provocando consequências jurídicas indesejáveis para o outro
figurante da relação obrigacional. Em suma, o segundo comportamento
deve piorar a situação do outro sujeito.
Do reconhecimento do venire contra factumproprium podem advir diversas consequências jurídicas, que assim como a conduta das partes, somente poderão ser aferidas no caso concreto. No entanto, pode-se
vislumbrar, dentre outras possibilidades, (a) a manutenção do primeiro
comportamento adotado pelo sujeito, (b) o afastamento de determinadas consequências dos atos praticados e (c) a indenização pelos danos
causados ao sujeito em virtude da quebra de confiança verificada.
Anote-se, ainda, que é possível reconhecer a vedação de comportamento contraditório com uma das espécies de abuso do direito, não
guardando, entretanto, ligação com a figura do estoppel, instituto que
pertence ao direito anglo-saxão e apresenta natureza processual, estando relacionado à distribuição do ônus da prova.
Mas o exercício disfuncional de uma posição jurídica54 não se limita à figura do venire contra factumproprium. Deve-se aqui destacar a
53 AgRg no REsp 709.372/RJ, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA
TURMA, julgado em 24/5/2011, DJe 3/6/2011.
54 DIREITO CIVIL. CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL PARA AQUISIÇÃO
DE VEÍCULO (LEASING). PAGAMENTO DE TRINTA E UMA DAS TRINTA E SEIS
PARCELAS DEVIDAS. RESOLUÇÃO DO CONTRATO. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE
POSSE. DESCABIMENTO. MEDIDAS DESPROPORCIONAIS DIANTE DO DÉBITO
REMANESCENTE. APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. 1. É pela
lente das cláusulas gerais previstas no Código Civil de 2002, sobretudo a da boa-fé objetiva e da
função social, que deve ser lido o art. 475, segundo o qual “[a] parte lesada pelo inadimplemento
pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em
qualquer dos casos, indenização por perdas e danos”. 2. Nessa linha de entendimento, a teoria
do substancial adimplemento visa a impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por
parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença,
79
Marcos Ehrhardt Júnior
figura da exceptio doli uma forma indireta de defesa processual por meio
da qual a parte demandada tem a possibilidade de afastar a pretensão
do demandante – mesmo sem negar a existência do direito do autor –
demonstrando que tal direito foi exercido de modo doloso, mediante
comportamento que não observou o dever geral de boa-fé.
No entanto, em que pese sua relevante importância histórica,
tal instituto encerra a noção demasiadamente ampla, razão pela qual,
atualmente, cedeu espaço para violações mais específicas que serão tratadas a seguir. Deve-se consignar, apenas, que a exceção de dolo não se
confunde com figura do venire contra factumproprium, que não pressupõe o dolo do sujeito para sua configuração.
3.2. Supressio (Verwirkung)
Supressio consiste na redução do conteúdo obrigacional pela
inércia de uma das partes em exercer direito ou faculdades, gerando na
outra legítima expectativa55. Trata-se, por conseguinte, da inadmissibilidade do exercício de um direito – sua supressão –, quando alguém deixa
de exercê-lo durante longo tempo.
Contudo, não basta à sua configuração o simples retardamento
no exercício do direito, não devendo tal instituto ser confundido com
a prescrição e decadência – relacionadas apenas aos efeitos do tempo
sobre as relações jurídicas56. Deve-se demonstrar, diante das circunstâncom vistas à realização dos princípios da boa-fé e da função social do contrato. 3. No caso
em apreço, é de se aplicar a da teoria do adimplemento substancial dos contratos, porquanto o
réu pagou: “31 das 36 prestações contratadas, 86% da obrigação total (contraprestação e VRG
parcelado) e mais R$ 10.500,44 de valor residual garantido”. O mencionado descumprimento
contratual é inapto a ensejar a reintegração de posse pretendida e, consequentemente, a resolução
do contrato de arrendamento mercantil, medidas desproporcionais diante do substancial
adimplemento da avença. 4. Não se está a afirmar que a dívida não paga desaparece, o que seria
um convite a toda sorte de fraudes. Apenas se afirma que o meio de realização do crédito por que
optou a instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de
resto, com os ventos do Código Civil de 2002. Pode, certamente, o credor valer-se de meios menos
gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por
exemplo, a execução do título. 5. Recurso especial não conhecido. (REsp 1051270/RS, Rel. Ministro
LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 4/8/2011, DJe 5/9/2011).
55 PINTO, Cristiano Vieira Sobral. Direito Civil Sistematizado. Rio de Janeiro: Forense, 2011,
p. 315.
56 “A demora de dez anos para ingressar com a ação de indenização não afasta a Súmula nº. 54 do
STJ, em relação ao termo inicial dos juros moratórios, sendo o presente caso de responsabilidade
extracontratual” (REsp 991.371/RS, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA
80
3 • A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ
cias do caso concreto, que a inércia teve como efeito gerar no outro figurante da relação obrigacional a confiança de que o direito em questão
não mais seria exercido.
Dito de outra maneira, o fato de uma posição jurídica não ser
exercida por certo tempo, e seu exercício atentar contra a boa-fé, pode
provocar uma supressão de certas faculdades jurídicas, ou seja, não se
permite mais o exercício, pois se pune o exercício de posição que tenha
sido deslealmente retardada57.
Como visto, a inatividade gera consequências que não se limitam
à prescrição e à decadência. O que dificulta a sua compreensão é que
não se pode definir a priori o lapso temporal suficiente para que a inatividade impeça o exercício do direito. Há de se analisar a deslealdade
a partir da necessidade de se tutelar a confiança gerada na outra parte.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça apreciou um caso
relativo a um contrato de trato sucessivo, no qual o credor, com o objetivo de evitar a majoração da parcela mensal do devedor, deixou de
realizar a correção monetária da dívida, para dessa forma garantir a manutenção do contrato. Decorridos seis anos de reiteração de tal conduta,
passou a exigir retroativamente valores a título de correção monetária,
que vinha regularmente dispensando. O tribunal entendeu pela impossibilidade de tal cobrança, suprimindo o correspondente direito à correção monetária para proteger a confiança estabelecida entre as partes 58.
3.3. Surrectio (Erwirkung)
A Surrectio corresponderia ao surgimento de direitos para aquele que está sendo protegido pelo instituto da supressio59. Traçando um
comparativo ente os dois institutos, MENEZES CORDEIRO afirma que:
TURMA, julgado em 4/3/2010, DJe 29/3/2010).
57 NANNI, Giovanni Ettore. Abuso de Direito, p. 765. In LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni
Ettore.(coord.) Teoria Geral do Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2008, p. 738- 772. SCHREIBER,
Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra
factumproprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 178.
58 REsp 1202514/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 21/6/2011, DJe
30/6/2011. Vale destacar o seguinte trecho da ementa do julgado: “A supressio indica a possibilidade
de redução do conteúdo obrigacional pela inércia qualificada de uma das partes, ao longo da execução
do contrato, em exercer direito ou faculdade, criando para a outra a legítima expectativa de ter havido
a renúncia àquela prerrogativa”.
59 DANTAS JUNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos Atos Próprios no Princípio da Boa-fé.
81
Marcos Ehrhardt Júnior
O fenômeno da supressio, traduzido no desaparecimento de posições
jurídicas que, não sendo exercidas, em certas condições, durante
determinado lapso de tempo, não mais podem sê-lo, sob pena de
contrariar a boa-fé, corresponde a uma forma invertida de apresentar
a realidade. A supressio é, apenas, o subproduto da formação, na esfera
do beneficiário, seja de um espaço de liberdade onde antes havia
adstrinção, seja de um direito incompatível com o do titular preterido,
seja, finalmente, de um direito que vai adstringir outra pessoa por, a
esse mesmo beneficiário, se ter permitido actuar desse modo, em
circunstâncias tais que a cessação superveniente da vantagem atentaria
contra a boa-fé. O verdadeiro fenômeno em jogo é o da surrectio,
entendida em sentido amplo. É nesta que devem ser procurados
requisitos... Assim, o beneficiário tem de integrar uma previsão
de confiança, ou seja, deve encontrar-se numa conjuntura tal que,
objetivamente, um sujeito normal acreditaria quer no não exercício
superveniente do direito da contraparte, quer na excelência do seu
próprio direito60.
Numa breve síntese pode-se afirmar que a surrectio seria o inverso da supressio. Por meio de tal instituto, em face das circunstâncias do
caso e da confiança estabelecida entre as partes, surge um direito que
não existia antes, ou seja, a partir da cristalização de uma situação de
repetida violação contratual ou legal, em circunstâncias objetivas, amplia-se o conteúdo obrigacional.
Há quem aponte o art. 330 do CC/02 como exemplo do instituto, uma vez que o pagamento reiteradamente feito em outro local faz
presumir a renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato.
No entanto, diante de texto expresso de lei afigura-se desnecessário fazer menção ao instituto, que deve ser esgrimido, em prestígio da boa-fé
objetiva, em circunstâncias bem definidas, nas quais se estabelece uma
posição jurídica pelo comportamento dos figurantes.
3.4. Tu quoque
Já o tu quoque (também tu) ocorre quando aquele que infringiu
uma regra de conduta pretende postular que se recrimine outrem pelo
Curitiba: Juruá, 2008, p. 405.
60 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Da Boa-fé no Direito Civil. Coimbra:
Almedina, 2011, p. 824.
82
3 • A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ
mesmo comportamento. O sistema jurídico não admite que alguém
pretenda exigir que terceiros acatem comento legal ou contratual por ele
mesmo desrespeitado61. Nas palavras de NELSON ROSENVALD, quem
não cumpre seus deveres também não pode exigir os seus direitos com
base na norma violada, sob pena de abuso62.
A noção pode ser melhor compreendida nas máximas turpitudinem suam allegans non auditur (ninguém pode alegar a própria torpeza
em seu benefício) ou equity must come with clean hands. Encontra-se
positivada em nosso código, dentre outros exemplos, a proibição de
o menor entre dezesseis e dezoito anos, que dolosamente ocultou sua
idade quando inquirido pela outra parte, eximir-se de uma obrigação
invocando sua própria incapacidade (art. 180).
No mesmo sentido, dispõe o art. 105 do Código Civil que a incapacidade relativa de uma das partes não pode ser invocada pela outra
em benefício próprio, nem aproveita aos cointeressados capazes, salvo
se, neste caso, for indivisível o objeto do direito ou da obrigação comum.
Diante das hipóteses acima apontadas de exercício disfuncional
de um direito, concorda-se com MENEZES CORDEIRO quando esse
afirma não ser possível, em termos abstratos, determinar áreas imunes à
boa-fé, lembrando que ela é “suceptível de colorir toda a zona de permissibilidade, actuando ou não consoante as circunstâncias”63.
Nada obstante, é necessário registrar preocupação sobre os limites da investigação do juiz na aferição de quais são os comportamentos
consentâneos com a boa-fé, diante da expansão dos deveres laterais de
conduta e sua crescente complexidade. Vale aqui a advertência de CLÓVIS DO COUTO E SILVA: “impõe-se, entretanto, cautela na aplicação
do princípio da boa-fé, pois, do contrário, poderia resultar verdadeira sub61 DANTAS JUNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos Atos Próprios no Princípio da Boa-fé.
Curitiba: Juruá, 2008, p. 378.
62 ROSENVALD, Nelson. Dignidade Humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva,
2005, p. 141.
63 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Da Boa-fé no Direito Civil. Coimbra:
Almedina, 2011, p. 649. Para o citado autor, “impõe-se, assim, à reflexão, um nível instrumental
da boa fé: ela reduz a margem de discricionariedade da actuação privada, em função de objectivos
externos (...) a boa fé não contemporiza, pois, com cumprimentos formais; exige, numa atitude
metodológica particular perante a realidade jurídica, a concretização material dos escopos visados.
Este aspecto relva no domínio dos deveres acessórios, em boa parte destinados a promover a realização
material das condutas devidas, sem frustrar o fim do credor e sem agravar a vinculação do devedor”
(p. 649).
83
Marcos Ehrhardt Júnior
versão dogmática, aluindo os conceitos fundamentais da relação jurídica,
dos direitos e dos deveres”64.
Anote-se, outrossim, que:
[...] o dever que se cumpre, ou se descumpre, é dever para com uma
pessoa determinada. As relações que se estabelecem com essa pessoa
são, também, determinadas. A conformidade ou desconformidade
do procedimento dos sujeitos da relação com a boa-fé é, por igual,
verificável apenas in concreto, examinando-se o fato sobre o qual o
princípio incide, e daí induzindo seu significado65.
Dirigindo-se aos juízes, o referido autor prossegue com suas advertências:
A relevância recentemente dada ao princípio da boa-fé, no campo do
direito das obrigações, expressa talvez a principal reação contra as ideias
e o sistema do positivismo jurídico, no plano da ciência do direito.
Como reação, entretanto, pode ser levado a extremos, ferindo-se, assim,
outros valores que o ordenamento jurídico consagra.(...) A aplicação do
princípio da boa-fé, tem, porém, função harmonizadora, conciliando
o rigorismo lógico-dedutivo da ciência do direito do século passado
com a vida e as exigências éticas atuais, abrindo, por assim dizer, no
hortusconclusus do sistema do positivismo jurídico, ‘janelas para o ético’.
Nessa conciliação, a atividade do juiz exerce tarefa de importância. Seu
arbítrio, no entanto (...) não é subjetivo, pois que limitado pelos demais
princípios jurídicos, os quais, igualmente, tem de aplicar. Nesse mútuo
condicionamento de regras, quais serão as relativações ditadas pela boafé? A resposta não pode ser dada a priori66.
Reitere-se que não se pretende afastar a possibilidade de controle do conteúdo convencional do negócio jurídico pelo magistrado,
pois, como bem adverte ANA PRATA, “a integração não se encontra
dependente da existência de lacunas”67; no entanto, há de se preservar o
64 COUTO E SILVA, Clóvis V. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 38.
65 Ibid., p. 37.
66 COUTO E SILVA, Clóvis V. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 41-2.
67 PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982, p.
56. Segundo a citada autora, “a utilização dos instrumentos correctivos dos efeitos pretendidos pelas
particulares por parte do juiz pode ir desde uma particular capacidade de intervenção na interpretação
e integração do regulamento contratual, à qualificação de uma situação não expressamente prevista
pela lei como ilícita, com o consequente declarar sua invalidadee/ou da existência de um direito a
84
3 • A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ
ajuste contratual quando as cláusulas negociais tiverem sido pactuadas
de modo válido e regular – observando-se os deveres que decorrem da
boa-fé –, desde que não tenha ocorrido alguma alteração significativa
nas circunstâncias que definiram a base do negócio e que tenham a capacidade de interferir no equilíbrio negocial preexistente68.
Sobre o tema, vale transcrever a decisão do Superior Tribunal de
Justiça que concluiu pela inexistência de violação ao dever geral de boafé na compra e venda de safra futura a preço certo, em face das peculiaridades do caso concreto:
DIREITO CIVIL E AGRÁRIO. COMPRA E VENDA DE SAFRA
FUTURA A PREÇO CERTO. ALTERAÇÃO DO VALOR DO
PRODUTO NO MERCADO. CIRCUNSTÂNCIA PREVISÍVEL.
ONEROSIDADE EXCESSIVA. INEXISTÊNCIA. VIOLAÇÃO AOS
PRINCÍPIOS DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO, BOA-FÉ
OBJETIVA E PROBIDADE. INEXISTÊNCIA. A compra e venda
de safra futura, a preço certo, obriga as partes se o fato que alterou o
valor do produto agrícola não era imprevisível. Na hipótese afigura-se
impossível admitir onerosidade excessiva, inclusive porque a alta do
dólar em virtude das eleições presidenciais e da iminência de guerra
no Oriente Médio – motivos alegados pelo recorrido para sustentar a
ocorrência de acontecimento extraordinário – porque são circunstâncias
previsíveis, que podem ser levadas em consideração quando se contrata
a venda para entrega futura com preço certo. O fato do comprador
obter maior margem de lucro na revenda, decorrente da majoração
do preço do produto no mercado após a celebração do negócio, não
indemnização, ou ainda à possibilidade de alterar o contrato ou, pura e simplesmente, resolvê-lo,
verificadas dadas circunstâncias. Das três formas que a intervenção judicial pode assumir, a segunda
enunciada reconduz-se ao estudo da identificação teórica dos deveres impostos pela ordem pública,
bons costumes e boa fé e das consequências jurídicas da ofensa destes” (p. 56).
68 CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DECISÃO CONCESSIVA DE LIMINAR. RECURSO ESPECIAL
RETIDO. ART. 542, § 3º, DO CPC. NÃO-INCIDÊNCIA. ROMPIMENTO CONTRATUAL
IMOTIVADO. LEI N.º 6.729/79 - “LEI FERRARI”. BOA-FÉ OBJETIVA. LIBERDADE
CONTRATUAL. MANUTENÇÃO FORÇADA DO CONTRATO.IMPOSSIBILIDADE. (...) 2. O
princípio da boa-fé objetiva impõe aos contratantes um padrão de conduta pautada na probidade,
“assim na conclusão do contrato, como em sua execução”, dispõe o art. 422 do Código Civil de 2002.
Nessa linha, muito embora o comportamento exigido dos contratantes deva pautar-se pela
boa-fé contratual, tal diretriz não obriga as partes a manterem-se vinculadas contratualmente
ad aeternum, mas indica que as controvérsias nas quais o direito ao rompimento contratual
tenha sido exercido de forma desmotivada, imoderada ou anormal, resolvem-se, se for o caso,
em perdas e danos.(...) (REsp 966.163/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA
TURMA, julgado em 26/10/2010, DJe 4/11/2010).
85
Marcos Ehrhardt Júnior
indica a existência de má-fé, improbidade ou tentativa de desvio da
função social do contrato. A função social infligida ao contrato não
pode desconsiderar seu papel primário e natural, que é o econômico. Ao
assegurar a venda de sua colheita futura, é de se esperar que o produtor
inclua nos seus cálculos todos os custos em que poderá incorrer, tanto os
decorrentes dos próprios termos do contrato, como aqueles derivados
das condições da lavoura. A boa-fé objetiva se apresenta como uma
exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social
pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria
conduta a esse modelo, agindo como agiria uma pessoa honesta,
escorreita e leal. Não tendo o comprador agido de forma contrária
a tais princípios, não há como inquinar seu comportamento de
violador da boa-fé objetiva. Recurso especial conhecido e provido69.
O fundamento último da possibilidade de intervenção no compromisso negocial dos contratantes repousa na constatação de que parte
do conteúdo obrigacional de uma relação jurídica negocial não depende
da vontade dos envolvidos, estando fora de seu controle, uma vez que
destinadas a compensar a desigualdade substancial entre os figurantes70.
Embora a enumeração dos deveres gerais de conduta não possa
ser considerada taxativa, deve-se atentar para a advertência de PABLO
STOLZE GAGLIANO e RODOLFO PAMPLONA FILHO que sustentam que na investigação da causa genética dos deveres anexos não se
poderia prescindir dos fatos materiais de que são originados, como por
exemplo, as negociações preliminares71.
No mesmo sentido, MENEZES CORDEIRO afirma que:
[...] a boa-fé apenas normatiza certos factos que, estes sim, são fonte:
mantenha-se o paralelo com a fenomenologia da eficácia negocial: a
sua fonte reside não na norma que mande respeitar os negócios, mas no
próprio negócio em si72
69 REsp 803.481/GO, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 28/6/2007, DJ
1/8/2007, p. 462.
70 DANTAS JUNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos Atos Próprios no Princípio da Boa-fé.
Curitiba: Juruá, 2008, p. 204-7.
71 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil.
Contratos.. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 77. v. IV
72 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Da Boa-fé no Direito Civil. Coimbra:
Almedina, 2011, p. 646. Prosseguindo com o raciocínio, o autor sustenta que “o Direito obriga,
então, a que, nessas circunstâncias, as pessoas não se desviem dos propósitos que, em ponderação
86
3 • A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ
4. Conclusões
Não é possível, em termos abstratos, determinar áreas imunes à
boa-fé. Entretanto, há de se analisar com cautela os limites da investigação do juiz na aferição de quais são os comportamentos que lhe são
consentâneos, diante da expansão dos deveres gerais de conduta e de
sua crescente complexidade.
A boa-fé está relacionada aos fatores socioculturais de um determinado lugar e momento. Seu conceito não pode ser encontrado na
análise do texto legal, mas sim, na decisão judicial que aprecia como
deve ocorrer sua aplicação, levando em consideração as circunstâncias
do caso concreto, exigindo, para sua compreensão, mais da análise da
atividade judicial do que da análise de textos doutrinários.
Não é tarefa fácil substituir uma aparelhagem jurídica tradicional. A solução, assim como os problemas aqui retratados, sem se perder de vista a perspectiva histórica e social da evolução da matéria,
não apresenta apenas uma única via. O debate em torno da utilidade e
oportunidade da readequação das categorias objeto desse trabalho deve
prosseguir mediante ponderação de princípios e valores nas relações
entre particulares, buscando eficiência funcional a um sistema plural e
complexo, em prol da coerência, da complementariedade e da coordenação das categorias.
5. Referências
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por
incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: Aide, 2004.
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. A tutela da confiança e seus reflexos
na responsabilidade civil. In: Frederico Viegas. (Org.). Direito Civil
contemporâneo. Brasília: Obcursos, 2009.
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 9.
ed. São Paulo: Atlas, 2010.
social, emerjam da situação em que se achem colocadas: não devem assumir comportamentos que a
contradigam – deveres de lealdade – nem calar ou falsear a atividade intelectual externa que informa
a convivência humana – deveres de informação. Embora as estruturas e teleologia básicas sejam as
mesmas, advinha-se a presença de concretizações diversas, consoante os fatos que lhes dêem origem”
(p. 646).
87
Marcos Ehrhardt Júnior
COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes.
Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Versão digital obtida em http://www.pfilosofia.pop.com.br/03_filosofia/
03_03_pequeno_tratado_das_grandes_virtudes/
pequeno_tratado_
das_grandes_virtudes.htm, p. 105 e seguintes. Acesso em: 12.12.2011.
COUTO E SILVA, Clóvis V. A obrigação como processo. Rio de Janeiro:
FGV, 2006.
DANTAS JUNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no
princípio da boa-fé. Curitiba: Juruá, 2008.
DEMOGUE, René. Traité des obligations en général. Paris: Librairie
Arthur Rosseau, 1923.
DIAS, José Aguiar. Da responsabilidade civil. 11. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006.
DUARTE, Ronnie Preuss. A cláusula geral da boa-fé no novo código
civil brasileiro. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo.
Novo Código Civil: Questões controvertidas. Vol. 2. São Paulo:
Método, 2004.
FRADERA, Véra Maria Jacob de. A boa-fé objetiva, uma noção
presente no conceito alemão, brasileiro e japonês de contrato. Revista
Brasileira de Direito Comparado. Rio de Janeiro, n. 24, p. 127-157, jan./
jun. 2003.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso
de Direito Civil: contratos. São Paulo: Saraiva, 2005. v. IV.
GOMES, José Jairo. Responsabilidade civil e eticidade. Belo Horizonte:
Del Rey, 2005.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes (org.). Ensaios sobre
responsabilidade civil na pós-modernidade. Porto Alegre: Magister,
2007.
ITURRASPE, Jorge Mosset. PIEDECASAS, Miguel A. Responsabilidad
contractual. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 2007.
JALUZOT, Béatrice. La bonne foi dans les contrats: étude comparative
de droit français, allemand et japonais. Paris: Dalloz, 2001.
88
3 • A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ
LEWICKI, Bruno. Panorama da boa-fé objetiva. In: TEPEDINO,
Gustavo (coord). Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2000.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria geral das obrigações. São Paulo:
Saraiva, 2005.
_______. Direito Civil: contratos. São Paulo: Saraiva, 2011.
_______. Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011.
LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do Direito Privado. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
______. La oferta como apariencia y la aceptación basada em la
confianza. Revista de Direito do Consumidor, n. 35, jul/set 2000.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do
Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 6. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado: sistema e
tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
MAYO, Jorge Alberto; PREVOT, Juan Manuel. Responsabilidad
contractual. Buenos Aires, La Ley, 2007.
MAZEAUD, Denis. Solidarisme Contractuel et réalisation du contrat.
In: GRYBAUM, Luc; NICOD, Marc. Le solidarisme Contratuel. Paris:
Economica, 2004.
MELLO, Heloisa Carpena Vieira de. A boa-fé como parâmetro da
abusividade no direito contratual. In: TEPEDINO, Gustavo (coord).
Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar,
2000.
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato Jurídico: plano de
eficácia. São Paulo: Saraiva, 2003.
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Da boa-fé no
Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2011.
MENEZES DIREITO, Carlos Alberto; CAVALIERI FILHO, Sérgio.
Comentários ao novo Código Civil: da responsabilidade civil. Das
89
Marcos Ehrhardt Júnior
preferências e privilégios creditórios (arts. 927 a 965), v. XIII. Rio de
Janeiro: Forense, 2004.
MESSINEO, Francesco. Derecho civil y comercial.. Buenos Aires:
EJEA, 1971. v. II
MORELLO, Augusto M. Indemnización del daño contractual. Buenos
Airres: Abeledo-Perrot, 2003.
MOTA PINTO, Paulo. Interesse contratual negativo e interesse
contratual positivo. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. v. 1
MOTA, Maurício; KLOH, Gustavo. Transformações contemporâneas
do direito das obrigações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno. Curitiba: Juruá,
2001.
NANNI, Giovanni Ettore. Abuso de direito. In LOTUFO, Renan;
NANNI, Giovanni Ettore (coord.). Teoria geral do Direito Civil. São
Paulo: Atlas, 2008.
NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação
constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
NERY, Rosa Maria de Andrade (coord.). Função do Direito Privado no
atual momento histórico. São Paulo: RT, 2006.
NONATO, Orozimbo. Reparação do dano causado por pessoa privada
de discernimento. In: Revista Forense comemorativa 100 anos, t. III,
Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 3. ed. São Paulo:
Saraiva, 2010.
PINTO, Cristiano Vieira Sobral. Direito Civil sistematizado. Rio de
Janeiro: Forense, 2011.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito
Privado.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1958. v. XXV
POTHIER, Robert Joseph. Tratado das obrigações. Campinas:
Servanda, 2002.
90
3 • A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ
PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra:
Almedina, 1982.
RÉMY, Philippe. La genèse du solidarisme. In: GRYBAUM, Luc;
NICOD, Marc. Le solidarisme contratuel. Paris: Economica, 2004.
RIBEIRO, Joaquim de Sousa. Direito dos contratos: estudos. Coimbra:
Coimbra, 2007.
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 2009, p. 290.
ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil.
São Paulo: Saraiva, 2005.
SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação
integral. São Paulo: Saraiva, 2010.
SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento
contraditório: tutela da confiança e venire contra factumproprium.
Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
TEPEDINO, Gustavo. Código Civil interpretado: parte geral e
obrigações. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. v.1 e 2
USTÁRROZ, Daniel. Responsabilidade contratual. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007.
VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice. Traité de Droit Civil: les effets
de la responsabilité. Paris: EJA, 1989.
91
4
O PAPEL DA BOA-FÉ NO CÓDIGO CIVIL
BRASILEIRO: ABUSO DE DIREITO,
TUTELA DA CONFIANÇA E SUA
CONCREÇÃO NA JURISPRUDÊNCIA
Adriano Marteleto Godinho1
- Ellen Imperiano de Amorim2
- Luana Cavalcanti Porto3
- Renato Braga Tavares4
Sumário: Introdução - 1. O abuso de direito no Código Civil
de 2002 e seus precedentes históricos - 2. A boa-fé objetiva
enquanto parâmetro para o exercício de posições jurídicas e
a tutela da confiança - 3. A caracterização do abuso de direito
como ato ilícito e a responsabilidade civil por danos - 4. Análise
do acórdão proferido pelo STJ no Recurso Especial n. 1190880RS - 5. Conclusões - 6. Referências
1 Professor da Universidade Federal da Paraíba. Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal
de Minas Gerais. Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa. Advogado.
2 Acadêmica do 7º período de Direito da Universidade Federal da Paraíba.
3 Acadêmica do 7º período de Direito da Universidade Federal da Paraíba.
4 Acadêmico do 7º período de Direito da Universidade Federal da Paraíba.
93
Adriano Marteleto Godinho - Ellen Imperiano de Amorim - Luana Cavalcanti Porto - Renato Braga Tavares
Introdução
O presente trabalho é fruto das investigações realizadas no âmbito do grupo de pesquisa intitulado “perspectivas e novos desafios de
humanização do Direito Civil-Constitucional”, compostos por docentes e discentes do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal
da Paraíba.
A escolha do tema teve como intuito demonstrar a relevância do
instituto sobre o abuso de direito e da tutela da confiança. Mais do que
simplesmente apresentar conceitual e teoricamente a temática eleita,
pretende-se demonstrar a maneira como a vedação ao exercício abusivo
das posições jurídicas vem sendo abordada na jurisprudência.
De início, será destacado o fato de o uso abusivo do direito como
ato ilícito não estar presente no Código Civil de 1916, vindo a se incorporar ao corpo da codificação de 2002, sendo necessária, portanto,
uma análise acurada sobre a função a ser desempenhada pelo referido
instituto.
Em seguida, demonstrar-se-á a tripla função desempenhada pelo
preceito da boa-fé objetiva, consoante os dispositivos do Código Civil
que versam sobre o tema, sucedida pela discussão sobre a ilicitude que
circunda o abuso de direito e a responsabilidade civil por danos gerados com o descumprimento das condutas esperadas pelas partes em um
contrato, com base no aludido princípio da boa-fé.
Por fim, será abordado o teor do julgado proferido pelo Superior
Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial n. 1190880-RS, em que se
reconheceu a abusividade da negativa de cobertura securitária médica
por parte de uma instituição que se recusava a custear o valor de uma
prótese, necessária para o êxito em uma cirurgia realizada em paciente
acometido de câncer.
Em breves linhas, é o que se propõe a investigar.
1. O abuso de direito no Código Civil de 2002 e seus
precedentes históricos
Para que se compreenda como se deu a incorporação da figura
tema do tópico ao Código Civil de 2002, é imprescindível conceituá-la
94
4 • O PAPEL DA BOA-FÉ NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO: ABUSO DE DIREITO, TUTELA DA CONFIANÇA E SUA CONCREÇÃO NA...
apontando os critérios que permitem a sua configuração e discorrendo
sobre sua perspectiva histórica e consequente evolução.
Incorre em abuso de direito (a origem da expressão é creditada ao
autor belga Laurent) a pessoa que exerce seus direitos subjetivos de forma irregular. Para que haja abuso do direito, é necessário que o agente,
ao se valer de posições jurídicas próprias, cometa excessos e, com eles,
venha a afrontar os pilares impostos pelo legislador como limites éticos
ao exercício dos direitos subjetivos: a finalidade econômica ou social do
direito que se exerce, a boa-fé – aqui, em seu viés objetivo – ou os bons
costumes. Daí se infere que o titular de um direito subjetivo, quando
vier a exercê-lo, será obrigado a respeitar as fronteiras impostas pelas
referidas cláusulas gerais.
Com efeito, nestes termos é que o instituto em apreço encontrou
espaço, no art. 187 do Código Civil: “também comete ato ilícito o titular
de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos
pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
O instituto do abuso de direito, por seu caráter genérico, pode ser
caracterizado em inúmeras circunstâncias e apresentar-se em variados
ramos jurídicos. Assim, por exemplo, a figura poderá se manifestar no
direito de família, mediante o exagero do exercício do poder de correção dos pais em relação aos filhos; no direito trabalhista, cabe conceber,
a depender das circunstâncias, o exercício abusivo do direito de greve
por parte dos empregados, sendo igualmente abusiva a conduta do empregador que pretenda dispensar o trabalhador por falta cometida há
tanto tempo que já se poderia infirmar a configuração do perdão tácito;
nos direitos de vizinhança, também cabe invocar o fenômeno, eis que o
texto do art. 1277 do Código Civil qualifica como anormal – e, portanto,
abusivo – o exercício do direito de propriedade que perturbe o sossego,
a segurança ou a saúde dos vizinhos; e, enfim, no direito de propriedade,
no qual haverá abuso de direito nos casos em que houver o desrespeito
à sua função social, o que pode se dar, por hipótese, quando não forem
preenchidos os requisitos do art. 186 da Constituição da República, em
se tratando da posse e da propriedade de imóveis rurais, ou do at. 182
do texto constitucional, referente aos imóveis situados em zona urbana.5
5 Os referidos dispositivos constitucionais contêm as seguintes previsões:
“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais
95
Adriano Marteleto Godinho - Ellen Imperiano de Amorim - Luana Cavalcanti Porto - Renato Braga Tavares
A propósito, quanto às categorias de exercícios abusivos do Direito, é possível dividi-las em três:6 1) o desleal exercício de direitos, ou
seja, quando o titular exerce o direito de forma contrária à legítima confiança depositada na contraparte; 2) o desleal não exercício de direitos,
para os casos em que o titular não efetiva o seu direito e gera na outra
parte uma confiança justificada na estabilidade da situação existente; e
3) a desleal constituição de direitos, que ocorre quando uma pessoa defrauda a confiança de outra e termina adquirindo contra ela um direito,
sendo este, no caso, sempre abusivo. Em qualquer destas modalidades,
todavia, o que importa é atestar o exercício abusivo de um direito subjetivo, potencialmente lesivo aos interesses de terceiros, a partir de um
comportamento comissivo ou omissivo do agente.
A consagração do abuso de direito na codificação civil em vigor
no Brasil é precedida de antecedentes históricos, tanto legislativos quanto jurisprudenciais. A origem da teoria do abuso de direito assenta na
decisão do célebre caso do francês Clément Bayard, proferida em 1915.
O Sr. Bayard, que mantinha em sua propriedade um hangar destinado à
decolagem e ao pouso de dirigíveis, se sentiu prejudicado quanto ao uso
que regularmente fazia de sua propriedade, ao notar que seu vizinho,
Jules Coquerel, havia construído em seu terreno enormes estacas com
da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.
§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte
mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de
ordenação da cidade expressas no plano diretor.
§ 3º - As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.
§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano
diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou
não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente
aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e
sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais”.
“Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo
critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”.
6 FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direito dos contratos. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011, p. 186-187.
96
4 • O PAPEL DA BOA-FÉ NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO: ABUSO DE DIREITO, TUTELA DA CONFIANÇA E SUA CONCREÇÃO NA...
pontas de ferro, objetivando causar prejuízo ao voo das aeronaves oriundas do terreno contíguo. Suscitada a questão no âmbito judicial, o réu,
Sr. Coquerel, foi condenado a desfazer as obras, sob o fundamento de
que sua edificação era derivada do exercício abusivo do direito de construir, ainda que o Código Napoleônico, em vigor na França a partir de
1804, não contivesse qualquer referência aos atos considerados abusivos.
Com efeito, não é necessário ponderar detidamente sobre a hipótese para
constatar que a edificação das estacas não acarretava qualquer benefício
ao proprietário do imóvel onde foram inseridas, e, ademais, geravam notório prejuízo ao proprietário vizinho. O ato, de cunho evidentemente
emulativo, foi considerado abusivo, em inédito precedente, que inaugurou as bases para a construção de uma teoria sobre o abuso de direito.
A noção de que a ninguém é dado se valer dos próprios direitos
de forma abusiva, contudo, remonta a períodos anteriores. No Direito
Romano, existia um cânone do qual se inferia que “a ninguém prejudica
aquele que age dentro de seu direito”; era o chamado “qui suo iure utitur
neminem laedit”. É certo que, entre os romanos, o abuso de direito não
possuiu consagração geral, ainda que naquele ordenamento existisse a
proibição dos atos emulativos (“aemulatio”), a “exceptio doli” e a regulação de balizas que regiam os conflitos de vizinhança. Apesar disso, as
primeiras manifestações jurisprudenciais sobre o abuso de direito não
se baseavam em disposições legais expressas, em antecedentes históricos ou no Direito Romano, mas na necessidade de respeitar os direitos
e expectativas de terceiros e na falta de eticidade por parte do exercente
de um direito. De início, o abuso de direito foi recebendo, no julgamento de casos concretos, seus primeiros matizes no espaço jurídico
ocidental, sem que houvesse, no entanto, um conjunto claro de normas
que regessem o tema.
O abuso de direito, após as discussões travadas na doutrina e jurisprudência francesas, estendeu-se para o espaço jurídico germânico.
Após significativas oscilações doutrinárias, que esboçavam uma tentativa de conferir adequado trato ao instituto, a teoria do exercício abusivo
de direitos subjetivos se desenvolveu definitivamente na Alemanha, a
partir da análise de grupos específicos típicos que compõem a noção de
abuso de direito, a saber, “exceptio doli”, “venire contra factum proprium”,
“supressio”, “surrectio”, inalegabilidades formais e “tu quoque”. Todos estes institutos, decorrentes do fenômeno geral do abuso de direito, são
97
Adriano Marteleto Godinho - Ellen Imperiano de Amorim - Luana Cavalcanti Porto - Renato Braga Tavares
sintetizados pela noção de boa-fé – que, neste trabalho, será, ao lado
da tutela da confiança, a trava mestra de sustentação das conclusões ao
final erigidas.
Já no Brasil, o Código Civil de 1916 apenas implicitamente admitiu a ideia do abuso de direito, o que se extrai da interpretação da parte
final do seu art. 160, inciso I, ao afirmar que o exercício regular de um
direito reconhecido não constitui ato ilícito. Uma leitura a “contrario
sensu” da norma permite concluir que o exercício irregular de um direito reconhecido configuraria a prática de um ato ilícito, entendimento
que prevaleceu em sede doutrinária, ainda que em manifestações esparsas, enquanto vigorou o diploma em apreço. Entretanto, a codificação
hoje revogada não contribuiu para firmar os alicerces para a construção
segura de uma teoria geral do abuso de direito.
Já o atual Código, consoante referido algures, prevê expressamente, em seu art. 187, a teoria do exercício abusivo dos direitos subjetivos.
Trata-se de uma norma que atua para estipular a passagem do exercício normal ou regular de um direito para os domínios da ilicitude, do
excesso, do desrespeito aos fins econômicos ou sociais e da quebra da
confiança. É precisamente este o ponto a tratar: o teor do art. 187 do Código Civil, os elementos que compõem o abuso de direito e, sobretudo, o
papel da boa-fé objetiva para a configuração deste instituto.
2. A boa-fé objetiva enquanto parâmetro para o
exercício de posições jurídicas e a tutela da confiança.
Consoante já se afirmou, o instituto do abuso de direito encontrou espaço no art. 187 do Código Civil, cujo teor enuncia que “também
comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela
boa-fé ou pelos bons costumes”. Dessa forma, quando o agente desrespeita os parâmetros previstos no supracitado artigo no exercício de algo
legítimo, estará presente o ilícito equiparado, como nos exemplos da
inscrição do devedor no cadastro negativo, como bem salienta FLÁVIO
TARTUCE:7
7 TARTUCE, Flávio. A construção do abuso de direito nos dez anos do Código Civil Brasileiro de
2002. In: Os 10 anos do Código Civil: evolução e perspectivas. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 94.
98
4 • O PAPEL DA BOA-FÉ NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO: ABUSO DE DIREITO, TUTELA DA CONFIANÇA E SUA CONCREÇÃO NA...
[...] o próprio Código de Defesa do Consumidor (CDC) reconhece a
possibilidade de inscrição, no seu art. 43. Trata-se, em regra, de um
exercício regular de direito. Porém, a inscrição indevida, sem justa
causa ou quando a dívida não existe, constitui um exercício irregular
de direito ou abuso de direito. Cite-se a hipótese em que não há a
comunicação prévia do devedor a respeito da inscrição, o que constitui
um desrespeito ao dever anexo de informação, decorrente da boa-fé
objetiva, a gerar o dever de reparar.
Vê-se, portanto, que o legislador estabeleceu os vetores que identificam os limites entre o exercício regular ou abusivo das posições jurídicas: os bons costumes, os fins econômico-sociais de um direito e a
boa-fé – esta, de feição objetiva (isto é, enquanto padrão de comportamento probo e transparente), observação de particular relevo para o
desenvolvimento destas notas.
Considerando-se que um contrato deriva de uma liberdade ou
um ato de vontade entre as partes e não de uma imposição de uma parte
sobre a outra, ocorrendo alterações da conduta esperada, o juiz deve
definir, caso a caso, em quais situações os contratantes se desviaram do
princípio da boa-fé e quais são as implicações jurídicas desse desvio.
A noção de boa-fé – que sempre prevaleceu como uma cláusula
geral, imanente ao Direito – apresenta dúplice faceta, conforme se disponha sobre o seu aspecto subjetivo ou objetivo. O primeiro refere-se ao
involuntário desconhecimento de um indivíduo acerca da existência do
direito de outrem, ou diz respeito à justificada crença de que alguém atua
em conformidade com o Direito.8 Já o derradeiro, imposto como norma
objetiva de conduta, estabelece a submissão dos contratantes a determinados padrões de comportamento, homogeneamente aceitos pela sociedade. Manifesta-se, assim, como objeto exterior ao sujeito. Situando-nos
no campo dos princípios fundamentais ínsitos à sistemática contratual
contemporânea, é a última espécie que nos interessa mais de perto.
A boa-fé objetiva leva em consideração os critérios da correção
e da honestidade, indispensáveis em qualquer convenção realizada, tutelando a justa expectativa de uma parte – isto é, a confiança que ela
deposita nos ajustes que celebra, por esperar que a contraparte aja em
respeito ao estrito cumprimento dos padrões negociais vigentes. Para
8 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Condições gerais dos contratos e cláusulas abusivas. São Paulo:
Saraiva, 1991, p. 145.
99
Adriano Marteleto Godinho - Ellen Imperiano de Amorim - Luana Cavalcanti Porto - Renato Braga Tavares
SÍLVIO DE SALVO VENOSA,9 a boa-fé objetiva deve ser traduzida pelo
intérprete como o padrão de conduta esperado do homem médio em
cada caso concreto, quando se deve levar em conta também os aspectos
sociais inerentes à questão envolvida.
Nessa perspectiva, ainda segundo SÍLVIO DE SALVO VENOSA,10
A ideia central é no sentido de que, em princípio, contratante algum
ingressa em um conteúdo contratual sem a necessária boa-fé. A máfé inicial ou interlocutória em um contrato pertencente à patologia do
negócio jurídico e como tal deve ser examinada e punida. Toda cláusula
geral remete o intérprete para um padrão de conduta geralmente aceito
no tempo e no espaço.
Nessa mesma linha de pensamento, NELSON ROSENVALD e
CRISTIANO CHAVES DE FARIAS11 asseveram que:
O grande desafio relacionado ao princípio da boa-fé concerne a sua
mais exata concreção. A sua valoração terá em conta as circunstâncias
objetivas do caso, plenamente apreciado em suas particularidades. Ao
aplicar a boa-fé, o magistrado não deve adotar um ‘sentimento jurídico’
segundo um ‘critério de equidade’. Onde existir um vínculo jurídico
especial, a boa fé alcançará as peculiaridades dos casos. Todavia, se
não houver essa especial relação entre as partes, a conduta humana
será avaliada pelo respeito aos bons costumes como exigência mínima,
derivada da condição social do homem, a ser observada em qualquer
atuação social.
No Código Civil brasileiro, o princípio da boa-fé objetiva exerce
três funções distintas, porém complementares, denominadas integrativa, interpretativa e controladora. Por meio da primeira transparecem
os deveres, poderes, faculdades e direitos inerentes aos contratos, ainda
que não haja sua previsão expressa, e que devem ser observados, assim
na conclusão do negócio, como em sua execução, consoante determina
o art. 422 do aludido diploma. Em todo negócio, exige-se que a conduta
de qualquer das partes seja pautada pelos critérios da lisura, da probi9 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos.
10. ed . São Paulo: Atlas, 2010, p. 387.
10 Ibid.., p. 387.
11 FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direito dos contratos. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011, p. 163.
100
4 • O PAPEL DA BOA-FÉ NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO: ABUSO DE DIREITO, TUTELA DA CONFIANÇA E SUA CONCREÇÃO NA...
dade, da cooperação e da tutela da confiança, o que impede a prática
de comportamentos abusivos e contraditórios que venham a frustrar as
legítimas expectativas geradas em favor do outro negociante.
Por sua sorte, a função interpretativa determina que os contratos
sejam considerados de acordo com seu sentido objetivo aparente, a não
ser que o destinatário conheça a verdadeira intenção do declarante.12
Nessa ordem de ideias, avulta a relevância do art. 113 do diploma civil
em vigor, que estabelece que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.
Finalmente, a derradeira função encontra previsão no já aludido
art. 187, a impedir que o indivíduo exceda os limites éticos impostos ao
exercício de seus direitos subjetivos – e aí emerge o papel controlador
da boa-fé, a impor limites ao comportamento dos contratantes, a quem
compete agir segundo os deveres de correção e decoro. Corolário destes
deveres, ínsitos ao agir das partes, entremostra-se ainda o subprincípio
da transparência, que determina a obrigação recíproca de informação
acerca de todos os elementos que envolvem a negociação, desde a sua
celebração até a execução,13 estendendo-se mesmo aos momentos que
a precedem ou a sucedem. Submetem-se os contraentes à prestação de
mútuo auxílio, para que sejam alcançados os objetivos traçados por ambos, consagrando-se o contrato, dessa forma, como um instrumento de
consecução dos interesses de todos os seus partícipes, aos quais compete
uma atuação ancorada no dever de atribuir exato cumprimento à confiança que seu comportamento gera nos indivíduos com quem negociam.
Para além do campo de abrangência do Direito Civil, no qual a
boa-fé se aplica a todos os contratantes, o instituto também opera ativamente em outros ramos do direito, tais como o Direito Processual, o
Direito Administrativo e o Direito Internacional. De forma específica
e mais acentuada, nas relações abarcadas pelo Direito do Consumidor,
no que diz respeito ao exame das cláusulas abusivas em relações de
consumo, percebe-se, claramente, a harmonização em torno do princípio da boa-fé.14
12 FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 6. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 313.
13 Ibid., p. 314.
14 VENOSA,. Op. cit., p. 388.
101
Adriano Marteleto Godinho - Ellen Imperiano de Amorim - Luana Cavalcanti Porto - Renato Braga Tavares
A boa-fé objetiva passa, pois, a consistir no termômetro do comportamento dos contratantes, mormente nos negócios de cunho civil:
toda e qualquer manifestação de vontade que venha a gerar na outra
parte a justa expectativa de que determinado ato será praticado deverá
ser levada a efeito tal como exteriorizada, evitando-se, assim, abusos
decorrentes da violação da confiança gerada em terceiros.
3. A caracterização do abuso de direito como ato
ilícito e a responsabilidade civil por danos
A conjugação de todas as situações descritas anteriormente como
modalidades de exercícios abusivos de direitos, derivados da cláusula
geral de boa-fé, busca fazer valer a teoria do abuso do direito no plano
das relações obrigacionais. Verificou-se que, nas hipóteses descritas, havendo a violação do dever de agir segundo a boa-fé objetiva, ocorre a
prática de um ato ilícito, tendo em vista que o comportamento do titular
é reprovável ao sentimento jurídico coletivamente considerado.
A caracterização do abuso de direito como ato ilícito, todavia,
não é recebida pacificamente pela doutrina, tendo em vista que existem
autores, a exemplo de JOSÉ HORÁCIO RIBEIRO,15 que defendem que o
abuso de direito consiste em uma categoria jurídica autônoma, não configurada, portanto, como espécie de ato ilícito, cabendo seu enquadramento no universo mais genérico do ato antijurídico. Nessa perspectiva,
defende o jurista que:
Se a diretriz do nosso ordenamento não admite a lesão ao direito de
outrem, podemos considerar que qualquer ato contrário às normas e
aos fins sociais deve ser considerado antijurídico. E, se houver somente
a violação à norma com surgimento de dano tal ato será especificamente
ilícito. Também, antijurídico, mas especificamente ilícito, ao passo que o
abuso do direito é antijurídico.
Por outro lado, autores como HUMBERTO THEODORO JÚNIOR16 defendem a natureza de ato ilícito do instituto. Para o autor, a
15 RIBEIRO, José Horácio Halfeld Rezende. O abuso do direito e a justiça social. In: O Código
Civil e a sua interdisciplinaridade: os reflexos do Código Civil nos demais ramos do direito. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004, p. 361.
16 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil: dos atos jurídicos
lícitos. Dos atos ilícitos. Da prescrição e da decadência. Da prova. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense,
102
4 • O PAPEL DA BOA-FÉ NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO: ABUSO DE DIREITO, TUTELA DA CONFIANÇA E SUA CONCREÇÃO NA...
corrente negativista, que rejeita o caráter da ilicitude do abuso de direito, não prospera em tempos modernos, uma vez que pode ocorrer que
um ato seja conforme determinado direito e, ao mesmo tempo, ilícito
por ser contrário à boa-fé e às regras que dominam o direito.
O abuso de direito, tal como consagrado pelo Código Civil de
2002, foi explicitamente caracterizado como espécie do gênero ato ilícito; vê-se, pela dicção deste diploma, que não apenas comete ato ilícito aquele que positiva ou negativamente, de forma negligente ou por
imprudência, viola direito e causa dano a outro, mesmo que exclusivamente moral (art. 186), mas também o titular de um direito que, ao
exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos por seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes (art. 187). Assim,
o Código em vigor cuidou de estabelecer a natureza do abuso de direito:
trata-se indubitavelmente de ato ilícito, a ensejar a responsabilidade civil de quem o pratica, nos exatos moldes do art. 927 do mesmo diploma.
Contudo, apesar de o legislador conceituar o abuso de direito
como uma espécie de ato ilícito, tal qualificação não pode retirar a autonomia do mencionado instituto, uma vez que o mesmo possui características próprias que devem ser levadas em consideração. Cumpre
esclarecer que, diferentemente do ato ilícito, no abuso de direito não
se vislumbra uma violação à estrutura normativa em si, mas sim à sua
valoração. No primeiro instituto – o ato ilícito em sua essência –, o indivíduo viola diretamente o comando legal; já no abuso de direito, o sujeito aparentemente age no exercício do seu direito, havendo, contudo,
uma violação aos valores que ligam tal norma ao ordenamento jurídico.
Entende-se que enquanto no ato ilícito há a inobservância dos limites
lógico-formais da norma, no abuso de direito vislumbra-se a inobservância dos limites axiológico-materiais, havendo, assim, um desrespeito
aos princípios que regem o ordenamento jurídico.
Desta feita, parte-se do pressuposto de que, no abuso de direito, o
indivíduo atua aparentemente no exercício de um direito subjetivo, uma
vez que não há desrespeito à estrutura normativa e sim à sua valoração.
Vislumbra-se, assim, a existência de uma antijuridicidade material, ou
seja, no abuso de direito não se verifica um contraste entre o ato e a nor-
2003, p. 111.
103
Adriano Marteleto Godinho - Ellen Imperiano de Amorim - Luana Cavalcanti Porto - Renato Braga Tavares
ma, mas sim entre o ato e o elemento ético que preside a sua adequação
ao ordenamento jurídico.
De todo modo, de acordo com o entendimento esposado pelo
legislador, será considerado ato ilícito aquele que, apesar de obedecer
à ordem legal, vem a ferir a ordem jurídica. Ou seja, aquele ato que se
encontra em conformidade com a letra da lei, porém que escapa à sua finalidade social e se encontra em descompasso com o objetivo almejado
pelo ordenamento, também deve ser considerado ilícito.
Seja como for, tanto o ato ilícito quanto o abuso de direito ensejam a responsabilidade civil do agente que os pratica. Por este ponto, a
concepção do abuso de direito como espécie de ato ilícito acaba gerando
diversas críticas doutrinárias, notadamente no que concerne ao caráter
subjetivo da responsabilidade. Ora, o art. 186 do Código Civil determina que comete ato ilícito aquele que causar dano a outrem “por ação ou
omissão voluntária”. Ou seja, além da violação do direito e da existência de um dano, tal dispositivo ainda estabelece a ocorrência de culpa
para a caracterização do ato ilícito. Se a culpa for considerada elemento
indissociável do conceito de ato ilícito, seria violado o critério objetivofinalístico que orienta a edição do abuso de direito, já que, segundo tal
critério, a aferição de abusividade no exercício de um direito deve ser
objetiva, revelada na simples discrepância entre o ato praticado e os valores contidos no ordenamento jurídico.
Por isso, deve ficar claro que não é necessária a verificação da
intenção para a ocorrência do abuso de direito, uma vez que, para que
tal instituto seja vislumbrado, não é necessária a ocorrência da má-fé
por parte do indivíduo – o que, aliás, deriva do próprio texto do art.
187 do Código Civil, que em momento algum apela às noções do dolo
ou da culpa para a caracterização do abuso de direito. Ou seja, não é
necessária a consciência por parte do agente de que se excederam os
limites impostos pela norma, bastando apenas que tais limites, objetivamente, sejam excedidos; pouco importando que tenha o indivíduo se
comportado com descuido ou esteja animado pela intenção de prejudicar outrem. Nesse sentido, o enunciado 37 da I Jornada de Direito
Civil, realizada pelo Conselho da Justiça Federal, preconiza que “a responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa, e
fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”.
104
4 • O PAPEL DA BOA-FÉ NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO: ABUSO DE DIREITO, TUTELA DA CONFIANÇA E SUA CONCREÇÃO NA...
Tal enunciado configurou-se como importante premissa para facilitar a tutela da vítima de danos derivados do abuso de direito, uma
vez que a responsabilidade civil dele originada independe de demonstração de culpa ou dolo. Nesse sentido, cabe ao autor do abuso de direito
reparar a vítima no que lhe restou prejudicado, podendo ainda haver
indenizações de forma compensatória, caso não seja possível reparar
o dano de forma total, permitindo-se à vítima ao menos a sensação de
que seu martírio foi aliviado ou que houve efetiva realização de justiça,
o que provoca, igualmente, o desestímulo de novas condutas abusivas
por parte do autor do dano.
É imprescindível destacar o postulado acabado de afirmar. Partindo-se da noção de que o abuso de direito ganha contornos objetivos,
torna-se inequívoca a conclusão de que a responsabilização do agente
que excede os limites éticos impostos para o exercício de seus direitos
subjetivos é igualmente objetiva, prescindindo-se da averiguação da
culpa ou dolo sobre a conduta. Sobrevindo danos, seja qual for a sua natureza, será imperativo o dever de indenizar, bastando apuração da existência do nexo de causalidade entre a conduta lesiva e aqueles prejuízos.
A partir destas bases, torna-se possível verificar de que maneira
o instituto do abuso de direito vem sendo caracterizado pela jurisprudência brasileira. Valerá como paradigma, para cumprir este mister, um
acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, no âmbito de um
processo em que se discutia a validade de cláusulas estipuladas em um
contrato de seguro de saúde.
4. Análise do acórdão proferido pelo STJ no Recurso
Especial n. 1190880-RS
Em 01 de setembro de 2011, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu paradigmática decisão, em um caso em que
se discutiu a aplicação do princípio da boa-fé objetiva aos contratos de
seguro de saúde. O acórdão recebeu a seguinte ementa:
CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO. DANO MORAL.
NEGATIVA INJUSTA DE COBERTURA SECURITÁRIA MÉDICA.
CABIMENTO. 1. Afigura-se a ocorrência de dano moral na hipótese
de a parte, já internada e prestes a ser operada – naturalmente abalada
pela notícia de que estava acometida de câncer –, ser surpreendida pela
105
Adriano Marteleto Godinho - Ellen Imperiano de Amorim - Luana Cavalcanti Porto - Renato Braga Tavares
notícia de que a prótese a ser utilizada na cirurgia não seria custeada
pelo plano de saúde no qual depositava confiança há quase 20 anos,
sendo obrigada a emitir cheque desprovido de fundos para garantir
a realização da intervenção médica. A toda a carga emocional que
antecede uma operação somou-se a angústia decorrente não apenas da
incerteza quanto à própria realização da cirurgia mas também acerca
dos seus desdobramentos, em especial a alta hospitalar, sua recuperação
e a continuidade do tratamento, tudo em virtude de uma negativa de
cobertura que, ao final, se demonstrou injustificada, ilegal e abusiva. 2.
Conquanto geralmente nos contratos o mero inadimplemento não seja
causa para ocorrência de danos morais, a jurisprudência do STJ vem
reconhecendo o direito ao ressarcimento dos danos morais advindos
da injusta recusa de cobertura securitária médica, na medida em que a
conduta agrava a situação de aflição psicológica e de angústia no espírito
do segurado, o qual, ao pedir a autorização da seguradora, já se encontra
em condição de dor, de abalo psicológico e com a saúde debilitada. 3.
Recurso especial provido.
No caso em análise, a parte recorrente estabeleceu relação contratual com determinado plano de saúde havia cerca de 20 anos. Em
2008, confirmado o diagnóstico de câncer, foi agendado o respectivo
procedimento cirúrgico, que de acordo com orientação médica, seria o
único meio de tratamento cabível. Contudo, a recorrente foi informada
de que o mencionado plano de saúde não pagaria pela prótese a ser
utilizada na cirurgia, em decorrência de cláusula contratual de exclusão
de cobertura.
Por conseguinte, por não ter condições financeiras de custear a
prótese, a recorrente, que já se encontrava internada para a cirurgia no
momento da negativa, se viu obrigada a emitir um cheque sem fundos,
sofrendo diversos abalos psicológicos, sobretudo pela angústia gerada
com a incerteza da realização da cirurgia e da possibilidade de seu nome
vir a ser inserido nos cadastros de inadimplentes. Em decorrência disto,
viu-se obrigada a recorrer ao Poder Judiciário, com o intuito de obter a
tutela antecipada que obrigasse a empresa gestora do plano de saúde a
arcar com os gastos referentes ao material cirúrgico.
O juízo de primeira instância, em entendimento repisado em
sede recursal, reconheceu a obrigação do plano de saúde em cobrir as
despesas referentes ao procedimento cirúrgico, tendo sido negado, contudo, o pedido de indenização por danos morais.
106
4 • O PAPEL DA BOA-FÉ NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO: ABUSO DE DIREITO, TUTELA DA CONFIANÇA E SUA CONCREÇÃO NA...
Neste sentido, abre-se a discussão acerca da abusividade da aludida cláusula contratual e à existência de danos causados em virtude
de um suposto rompimento na confiança depositada, naquele caso, na
obtenção da prestação de um serviço essencial.
Conforme se depreende do julgado, a abusividade presente na
cláusula contratual do plano de saúde é notória, uma vez que a recusa
no fornecimento do material cirúrgico implicaria a consequente impossibilidade de se realizar a própria cirurgia. Assim, a essência do contrato
de seguro em si estaria comprometida, já que negócios desta natureza são celebrados exatamente para garantir a tranquilidade financeira
ao segurado no momento em que ocorre o sinistro. A parte recorrente
já vinha contribuindo com o plano de saúde há quase duas décadas,
e depositava total confiança na ré e nos direitos que restariam cobertos quando precisasse acessar os serviços. Prova disso é o fato de que
a parte segurada já se encontrava internada, pronta para a cirurgia, e
contando com a cobertura do pagamento de todos os serviços médicos
necessários para seu tratamento. Nesse sentido, não caberia à empresa
demandada recusar sua prestação, tendo em vista a confiança e a boa-fé
que devem permear a vigência desses tipos de contrato.
Desta forma, para a devida interpretação do julgado em questão,
deve ser levado em consideração o conteúdo expresso no art. 424 do
Código Civil, uma vez que o contrato de plano de saúde assume a forma
de adesão, sendo seu conteúdo imposto de forma unilateral pela empresa prestadora do serviço. Tal dispositivo legal prevê a nulidade absoluta
das cláusulas destes contratos que impliquem em renúncia a direito resultante da natureza do negócio.
Sabe-se que no contrato de adesão inexiste ao contratante a opção
de discutir as cláusulas contratuais, restando-lhe apenas a decisão de
aceitar os termos contratuais dos quais desconhece o teor.
Nesse sentido, temos a lição de Messineo (apud Carlos Roberto
Gonçalves):17
Contrato de adesão é aquele em que as cláusulas são previamente
estipuladas por um dos contraentes, de modo que o outro não tem
17 MESSINEO, Francesco. Doctrina general del contrato. Tradução de. R. Fontanarrosa, Sentis
Melendo e M. Volterra. Buenos Aires: EJEA, 1952. t I e II, apud GONÇALVES, Carlos Roberto.
Direito civil brasileiro: contratos e atos unilaterais. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.75. v. III
107
Adriano Marteleto Godinho - Ellen Imperiano de Amorim - Luana Cavalcanti Porto - Renato Braga Tavares
o poder de debater as condições, nem introduzir modificações no
esquema proposto; ou aceita tudo em bloco ou recusa tudo por inteiro
(‘é pegar, ou largar’).
Desta forma, vê-se que tal contrato se apresenta como um padrão
genérico, antecipadamente preparado, a impor ao consumidor cláusulas
gerais pré-estabelecidas, não oferecendo a este nenhuma oportunidade
de debate ou negociação do conteúdo de tais disposições contratuais.
Assim, não resta ao aderente qualquer alternativa senão a de aceitar ou
rejeitar tal contrato, tal como antecipadamente estipulado.
Desta feita, na esteira do conceito de contrato de adesão, tem-se
que o indivíduo ou se submete a ele, sem chance de questionar o preço
ou outras condições propostas, ou se priva de um serviço muitas vezes
essencial ou indispensável.
O contrato de plano de saúde, tal como qualquer outra relação
jurídica, possui como pressuposto essencial a existência da confiança
entre as partes. No caso em tela, tal confiança foi rompida, em virtude
da recusa na prestação do serviço no momento de maior necessidade da
parte segurada. Ademais, o contrato de plano de saúde, como todo contrato, deve ser interpretado de forma a privilegiar a sua função social,
tornando-se necessário o desenvolvimento do senso de honestidade e
integridade entre os contratantes. Sendo assim, é de se esperar que o
negócio acarrete o esperado proveito a ambas as partes – e, tendo a parte
segurada contribuído adequadamente com o pagamento das prestações
que lhe cabiam, restava à empresa seguradora o dever de adimplir sua
obrigação e custear as despesas com o tratamento médico necessário
para preservar a saúde do paciente.
No presente caso, vislumbra-se a limitação do uso do serviço
prestado pela empresa, o que viria a acarretar sérios danos ao indivíduo.
Ao se recusar a fornecer determinado material que seria de fundamental importância para a realização do procedimento cirúrgico necessário
ao autor da demanda, a entidade gestora do plano de saúde terminou
por agir de forma inesperada e abusiva, vindo a ferir, assim, a confiança nela depositada durante anos em um serviço que deveria ter sido
prestado em sua integralidade. Afinal, os planos de saúde têm natureza
securitária, o que significa que o objeto do seu contrato é a segurança de
um atendimento se e quando houver a necessidade para tal. Assim, vislumbra-se claramente o prejuízo e o dano causado a um usuário que pa108
4 • O PAPEL DA BOA-FÉ NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO: ABUSO DE DIREITO, TUTELA DA CONFIANÇA E SUA CONCREÇÃO NA...
gou devidamente as mensalidades do seu plano de saúde e, no momento
em que finalmente dele necessitou, não pôde usufruir dos seus serviços.
Sentindo-se injustiçada com a negativa do pleito de reparação por
danos morais pelas instâncias inferiores, resolveu a parte autora submeter seus clamores ao STJ, na esperança de que, conforme vasta jurisprudência desse Tribunal, no sentido de reconhecer os danos morais em casos semelhantes, pudesse, enfim, amenizar o abalo psicológico sofrido.
Conforme anteriormente exposto, a boa-fé consiste em um dos vetores
que identificam os limites entre o exercício regular e o abusivo de um
direito. Fica claro que na celebração de um contrato, ou de qualquer
outra relação jurídica, torna-se indispensável a devida consideração de
determinados critérios e valores, como os da honestidade, probidade e
correção. Assim, quando tais valores são devidamente utilizados, poderá ser tutelada a expectativa assentada pelos contratantes, ou seja, a confiança que a parte depositou no contrato que celebrou, esperando que a
outra parte aja em conformidade ao devido cumprimento dos padrões
negociais. Se tal não ocorre, os danos daí derivados devem ser reparados
em sua integralidade.
No caso em estudo, ao se recusar a custear o equipamento fundamental para a realização de procedimento cirúrgico, a empresa responsável pelo plano de saúde não só impossibilitaria a realização de tal procedimento vital, como também causaria grande transtorno e dor para
um paciente, que se encontrava em momento bastante delicado. Além
disto, as cláusulas contratuais devem ser analisadas de acordo com o
objetivo aparente do contrato em si. Desta forma, ao negar-se a conceder um equipamento fundamental para um procedimento cirúrgico, o
contrato de plano de saúde acaba por perder seu próprio objetivo, qual
seja, prestar assistência aos seus usuários, possibilitando materiais, medicamentos e equipamentos necessários para a devida tutela.
Finalmente, tendo em pauta todos os princípios e regras expostos, conseguiu a parte recorrente ver seus anseios de justiça atendidos
com a prolação do acórdão pelo STJ, que, por maioria de votos, reconheceu o seu direito à reparação dos danos morais sofridos, tendo em
vista o grande impacto psicológico sofrido com a negativa de custeio
da prótese pela empresa gestora do plano de saúde, em plena véspera
de cirurgia. Como principal argumento, vale citar o voto da Ministra
Nancy Andrighi, relatora do acórdão, que defendeu que pior do que o
109
Adriano Marteleto Godinho - Ellen Imperiano de Amorim - Luana Cavalcanti Porto - Renato Braga Tavares
martírio da dor da doença foi o martírio da recorrente ser privada da
cura. A Ministra ainda acrescentou:
Assim, a toda a carga emocional que antecede uma operação somou-se a
angústia decorrente não apenas da incerteza quanto à própria realização
da cirurgia, mas também acerca de seus desdobramentos, em especial
a alta hospitalar, sua recuperação e a continuidade do tratamento, tudo
em virtude de uma negativa de cobertura que, ao final, se demonstrou
injustificada, ilegal e abusiva.
Diante de tudo o que se expôs quanto ao combate ao abuso de
direito e à necessidade de se impor aos contratantes padrões de conduta pautados pela probidade, cooperação e transparência, é inequivocamente acertada a decisão do STJ. Mais do que permitir uma mera
indenização pecuniária à parte lesada, o julgado proporcionou o reconhecimento da ocorrência de dano moral, como consequência lógica
da recusa da seguradora ao pagamento da prótese, preservando então
os direitos da personalidade da recorrente, tais como a vida, a saúde, a
honra e a integridade psicofísica.
O acórdão proferido possibilitou, por fim, desestimular a reiteração de condutas abusivas, que violam frontalmente os princípios da
dignidade humana e abalam a confiança que deveria ser usualmente depositada nos prestadores de serviços de saúde.
5. Conclusões
Como já visto e compreendido, o abuso de direito termina por
unir todos os institutos oriundos, inicialmente, do princípio da boa-fé,
fazendo com que os mesmos sejam usualmente relacionados à análise
de regularidade ou abusividade de determinado comportamento. Cabe
conceituar o abuso do direito, a partir destas bases, como o exercício
irregular de um direito subjetivo, que, sob o argumento de cumpri-lo
com fundamento legal, se afasta do ordenamento jurídico, uma vez que
obsta os princípios legais, contrariando o bom senso, os bons costumes
e a equidade.
Outrossim, o art. 187 do Código Civil, ao abordar os elementos
que compõem o abuso do direito e o papel da boa-fé objetiva, evidencia
sua natureza de cláusula geral, o que faculta ao jurista a inclusão do fato
110
4 • O PAPEL DA BOA-FÉ NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO: ABUSO DE DIREITO, TUTELA DA CONFIANÇA E SUA CONCREÇÃO NA...
ocorrido à norma, de modo que possa reprimir e punir a prática do
abuso do direito.
De forma direta, visando ao objetivo de indenizar atos decorrentes de abuso do direito, o operador do direito deverá analisar a presença dos elementos contidos no art. 187 do Código Civil de 2002. Tais
elementos independem da culpa e da evidência do dano, necessitando
obedecer a alguns requisitos, tais como o direito atingido ser protegido
pelo ordenamento jurídico e o exercício irregular desse direito, ultrapassando os limites da função social, da boa-fé e dos bons costumes.
Neste viés, o exercício do abuso do direito pode ter como consequências, além da reparação civil nos casos em que houver dano a
direito alheio, a nulidade do ato ou a perda de um direito, dentre outros.
No caso trazido à baila, observou-se a limitação do uso do serviço prestado pela empresa contratada, o que causaria danos à saúde do
indivíduo. Ao recusar cumprir com sua obrigação no contrato firmado,
qual seja, cobrir os gastos com todos os procedimentos necessários à
manutenção da saúde do contratante, o plano de saúde terminou por
agir de forma abusiva, utilizando-se de sua posição contratual superior
para romper a confiança que lhe foi depositada pelo paciente. Observase, portanto, uma clara ofensa ao princípio da boa-fé objetiva.
Por fim, como consequência ao exercício do abuso do direito
pelo plano de saúde, o STJ decidiu que esse deveria à parte contratante,
além do pagamento da prótese necessária à execução da cirurgia, uma
indenização pecuniária, projetada inclusive como um mecanismo para
obstar a prática de novos ilícitos do mesmo gênero.
6. Referências
FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direito dos
contratos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 6. ed. Belo Horizonte: Del
Rey, 2003.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro: contratos e
atos unilaterais. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. III
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Condições gerais dos contratos e cláusulas
abusivas. São Paulo: Saraiva, 1991.
111
Adriano Marteleto Godinho - Ellen Imperiano de Amorim - Luana Cavalcanti Porto - Renato Braga Tavares
RIBEIRO, José Horácio Halfeld Rezende. O abuso do direito e a justiça
social. In: O Código Civil e a sua interdisciplinaridade: os reflexos do
Código Civil nos demais ramos do direito. Belo Horizonte: Del Rey,
2004.
TARTUCE, Flávio. A construção do abuso de direito nos dez anos
do Código Civil Brasileiro de 2002. In: Os 10 anos do Código Civil:
evolução e perspectivas. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código
Civil: dos atos jurídicos lícitos. Dos atos ilícitos. Da prescrição e da
decadência. Da prova. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e
teoria geral dos contratos. 10. ed . São Paulo: Atlas, 2010.
112
5
ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL: A BOAFÉ OBJETIVA EM CONCRETO
William Bispo de Melo1
- Sterfesson Higo de Lima Ferreira2
- Pedro Pontes de Azevedo3
Sumário: Introdução - 1. Constitucionalização do Direito
Civil - 2. Constitucionalização e direito dos contratos - 3.
Princípio da boa-fé objetiva - 4. Adimplemento substancial e a
boa-fé objetiva - 5. Conclusões - 6. Referências
Introdução
Hodiernamente, a Constituição ocupa papel de grande relevo no
ordenamento jurídico. Todos os demais diplomas normativos devem
guardar respeito ao texto constitucional, no tocante aos ditames preconizados pelos seus princípios e regras. A relação entre o Texto Maior e
as demais leis, no entanto, não foi sempre de supremacia daquele. Antes
1 Graduando em Direito pela UFPB. Pesquisador na área de Direito Civil e no Grupo de pesquisa
Justiça & Política.
2 Graduando em Direito pela UFPB. Aluno pesquisador e extensionista na área do Direito Civil.
3 Mestre em Direito pela UFPB. Doutorando em Direito das Cidades pela UERJ. Professor da
UFPB. Advogado.
113
William Bispo de Melo - Sterfesson Higo de Lima Ferreira - Pedro Pontes de Azevedo
dos movimentos liberais, os códigos possuíam um papel prevalente no
ordenamento, chegando até mesmo a afastar a incidência de normas
constitucionais. Com a eclosão do que se chamou de constitucionalização do direito, a Lei Magna assumiu um papel de proeminência, o
que implica em uma harmonização de todas as normas do ordenamento
jurídico aos seus ditames.
Esse panorama não é diferente no Direito Civil, que passou por
uma verdadeira transformação em decorrência da constitucionalização.
Em resumo, o outrora direito patrimonialista passou a ser eminentemente existencialista, calcado na dignidade da pessoa humana. Ocorre
que essa transformação, embora amplamente aceita, ainda encontra alguma resistência por parte dos estudiosos. Essa dificuldade de aceitação, por poucos, da constitucionalização do direito civil, ocorre devido
à dicotomia didática que se tornou imperativa para alguns juristas, do
direito público com o direito privado, em que cada ramo do direito era
independente, autônomo e autossuficiente. Naquela realidade, buscavase a não interferência estatal nas relações privadas, devido à experiência traumática da idade média com o absolutismo, em que o poder do
Estado era utilizado para cercear a liberdade individual. Ali, essa rígida
separação explicava-se pela ânsia por liberdade e também para coibir
a opressão estatal que existia com as monarquias absolutistas da idade
média. O Código de Napoleão, que foi utilizado como referência para a
codificação do direito privado, inicialmente nasceu dos ideais burgueses (comerciantes da época) de liberdade, principalmente comercial e
patrimonial e igualdade, direitos estes negados pelo Estado e sua organização até então experimentada.
A liberdade e a igualdade formal foram conquistadas, o Estado
mudou, democratizou-se e não há mais necessidade da divisão rígida
dos ramos do direito (público e privado). Se ocorrer, como ainda acontece, o abuso desta liberdade em detrimento de outrem ou da coletividade para atender a interesses particulares, o Estado contemporâneo tem
de cumprir seu dever sagrado de zelar pela segurança, paz social, vendo-se obrigado no cumprimento do seu dever Contratual (Rousseau) a
interferir nas relações particulares para garantir e manter a segurança,
paz social e a própria justiça, conservando o desenvolvimento saudável
das relações sociais. A restrição da autonomia privada exercida em pre-
114
5 • ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL: A BOA-FÉ OBJETIVA EM CONCRETO
juízo de outrem é o fenômeno conhecido como dirigismo contratual,
com a proteção da parte hipossuficiente da relação jurídica.
1. Constitucionalização do Direito Civil
Há um aparente paradoxo. Com a constitucionalização do direito
civil, que sempre foi considerado eminentemente privado e patrimonialista, houve uma mudança de paradigma, segundo a qual o social e o coletivo prevalecem sobre o individualismo. A força da constituição como
lei suprema e hierarquicamente superior às outras, obriga o direito civil
a se adequar aos ditames, princípios e direitos contidos na Lei Maior,
garantindo o respeito ao Estado Democrático de Direito e propiciando
a busca pela diminuição das desigualdades. O princípio constitucional
da dignidade da pessoa humana sobrepõe-se aos interesses econômicos
individuais e, como um dos fundamentos da República Federativa do
Brasil, deve ser protegido como a consolidação da supremacia do interesse público sobre o privado, em que a Constituição é respeitada em
seus direitos fundamentais previstos no artigo 5°. Os direitos patrimoniais são relativizados para atenderem sua função social, pois nota-se a
importância do social sobre o individual, aquele adquirindo força devido a Magna Carta. Assim, no dizer de PAULO LÔBO “[...] Deve o jurista
interpretar o Código Civil segundo a Constituição e não a Constituição
segundo o código, como ocorre com frequência”.4
O direito civil é historicamente anterior ao direito constitucional. Iniciou-se no direito Romano e forneceu categorias, bem como os
conceitos e classificações que serviram para consolidação dos vários
ramos do direito público; porém, a historicidade e sua utilização para
fundamentar a maior importância do direito civil - em comparação ao
direito constitucional -, deixaram de valer, e os próprios civilistas modernos reconhecem a supremacia da Constituição e a necessidade que
o direito civil seja executor inequívoco desta. Assim, infere-se que o direito privado passou a ser o direito constitucional aplicado, com o valor
dado ao social, limitando a atuação dos particulares. Com a mudança
de paradigma do direito civil, do patrimonial para o social (em que o ser
4 LÔBO, Paulo Luiz Netto. A constitucionalização do Direito Civil Brasileiro. In: TEPEDINO,
Gustavo (org.). Direito Civil Contemporâneo: Novos problemas à luz da legalidade constitucional.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 100.
115
William Bispo de Melo - Sterfesson Higo de Lima Ferreira - Pedro Pontes de Azevedo
torna-se mais importante que o ter), ocorre a constitucionalização de
seus princípios civilistas, que devem estar de acordo com a Constituição
e serem respeitados pelos contratos, tribunais e os cidadãos, como princípios de observância da dignidade e supremacia constitucional; afinal,
vive-se hoje em um Estado Democrático de Direito, previsão do artigo
1° da CF/88, que possui grande importância e influência no âmbito político, social, jurídico, econômico, acadêmico e histórico da sociedade.
O Código Civil, para uma escola da exegese, era completo em si
mesmo, uma vez que resolvia todos os casos do direito civil, pois era uma
espécie de constituição para este ramo do direito, sem legislação superior. O direito público, que tratava de questões apenas estruturais e organizacionais do Estado e a Constituição serviam a este fim, pois existia
uma divisão muito bem delimitada, e nesses dois reinos, seus senhores
reinavam em absoluto, sem interferência de um nos domínios do outro.
O Código Civil perdeu inevitavelmente sua completude devido
às mudanças econômicas e sociais que exigiram do legislador a criação
de leis especializadas em dados assuntos que antes eram tratados pelo
Código Civil. Nasce à era dos estatutos, que são legislações de direito
privado, mas totalmente independentes e autossuficientes em relação ao
Código Civil, como o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Defesa do Consumidor, que são autônomos e constituem outros
sistemas independentes dentro do polissistema maior, que é o ordenamento jurídico. Antes o Código Civil era um corpo legislativo monolítico, chamado de monossistema, que teoricamente era suficiente para
disciplinar o direito privado; porém, atualmente, a realidade do referido
Código é outra, ele aparece com seus vários microssistemas devido à
complexidade da sociedade e em consequência de suas relações.
O pluralismo jurídico com inúmeros sujeitos a proteger, seus
direitos próprios, como nos interesses difusos. A comunicação como
transformação do direito em instrumentos para passar mensagens, congelar momentos e ações para proteger novos indivíduos, que conquistaram novos direitos, modificando e ampliando as funções do direito.
A narrativa concerne em normas que não criam direitos, mas apenas
descrevem valores. E o retorno aos sentimentos, no qual os direitos humanos são altamente valorizados e servem de supedâneo a legislação
contemporânea, seria a sensibilidade moderna exercida.
116
5 • ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL: A BOA-FÉ OBJETIVA EM CONCRETO
Há a necessidade da criação de cláusulas gerais ou princípios
para o direito civil, respeitando a Constituição, a codificação, visto que
o pluralismo jurídico não é capaz de prever todas as situações possíveis.
Deve-se criar o princípio, positivá-lo e fornecer a executoriedade ou observação obrigatória do mesmo, tornando harmônica a interpretação e
a ampliação da lei, não dando margem para visões hermenêuticas que
contrariem esses princípios, fortalecendo em última analise a segurança
jurídica com a limitação interpretativa, dando, talvez, rigor de legislação
e interpretação do direito penal ao direito civil, diminuindo, assim, a
margem de erro.
Nas palavras de GUSTAVO TEPEDINO:
[...] A progressiva atribuição de eficácia normativa aos princípios vem
associada ao processo delimitável historicamente, de abertura do sistema
jurídico. Num sistema aberto, os princípios funcionam como conexão
axiológica e tecnológica entre, de um lado, o ordenamento jurídico e o
lado cultural, de outro, a constituição e a legislação infraconstitucional. 5
Com a normatização dos princípios ocorre naturalmente uma
mudança cultural, jurídica, em prol de respeitar esses princípios e criar
outros, conforme ocorrem as mudanças sociais (o direito deve acompanhar a dinâmica da sociedade, Teoria Tridimensional do Direito6- Fato,
Valor e Norma de MIGUEL REALE); porém, cabe ressaltar a importância cultural, jurídica e social do reconhecimento de princípios por
parte do Estado para evitar interpretações abusivas de direito. No CDC
há o artigo 51, IV que considera nula a cláusula contratual incompatível
com a boa-fé objetiva, que pode ser verificada por meio da compatibilização com os princípios gerais do sistema jurídico, liberdade, justiça e
solidariedade conforme a CF/88 e seus direitos fundamentais, trabalho
hermenêutico que no caso concreto pode ser visualizado.
Para reforçar a compreensão da historicidade e a mudança jurídica cultural, pode-se elaborar um breve relato sobre os acontecimentos.
No inicio, as primeiras constituições elaboradas limitavam a atuação do
Estado e tratavam das liberdades públicas de alguns, como na Magna
5 TEPEDINO, Gustavo. O Código Civil, os chamados microssistemas e Constituição: premissas
para uma reforma legislativa. In: TEPEDINO, Gustavo (org.). Direito Civil Contemporâneo:
Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008. p. 11
6 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
117
William Bispo de Melo - Sterfesson Higo de Lima Ferreira - Pedro Pontes de Azevedo
Charta Libertatum seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro
concessione libertatum ecclesiae et regni angliae (Grande Carta das liberdades, ou Concórdia entre o rei João e os Barões para a outorga das
liberdades da Igreja e do rei Inglês) de 1215. Tal Carta é considerada a
primeira constituição em latu sensu, pois limitava o poder absoluto dos
monarcas da Inglaterra. Ela foi outorgada e não promulgada devido o
regime autoritário de governo, sendo uma conquista dos barões e do
clero da igreja católica, pois restringia o poder do governante em respeito a essas categorias de indivíduos. Nesse momento é que começa a
limitação do controle estatal sobre a vida particular, para apenas alguns
cidadãos. Com as mudanças políticas, sociais e ideológicas, ocorreu o
advento do Estado liberal/ Estado mínimo, que era impedido por sua
própria ideologia de interferir na relação entre particulares (principalmente comerciais). Assim, consumou-se o fenômeno do darwinismo
jurídico e social, em que os economicamente mais fortes exploravam os
mais fracos de maneira desumana. Isso tudo promoveu muitos conflitos, e fez surgir, então, o Estado Social para garantir o mínimo possível
e necessário de justiça social, intervindo e limitando o poder de exploração do capital sobre o humano nas relações particulares. Para PAULO LÔBO: “Em verdade houve duas etapas na evolução do movimento
liberal e do Estado Liberal: a primeira, a da conquista da liberdade, a
segunda, a da exploração da liberdade.”7
No âmbito da repersonalização no direito civil encontram-se
novos paradigmas, como a mudança ou a interferência do Estado no
núcleo familiar, preconizando o direito à dignidade dos membros da
família - que historicamente patriarcal, mantinha o poder do chefe da
família sobre os demais membros e muitas vezes caracterizava constantes abusos. A desigualdade entre o homem e a mulher foi abolida formalmente, a família por laços afetivos foi privilegiada, desconstruindo
a concepção anterior de família baseada no patriarcalismo, patrimonialismo e com base religiosa, no qual o ser foi promovido na constituição
contra o ter do direito civil (Código Civil de 1916) que visava à manutenção da propriedade e a não interferência do Estado para dar-lhe aspecto social, valorização do coletivo, do ser humano enquanto ser digno
de direito independente de sua posição social, ou situação econômica,
7 LÔBO, 2008. p. 105.
118
5 • ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL: A BOA-FÉ OBJETIVA EM CONCRETO
a valorização da família como fundamental para a sociedade e não para
o Estado.
O direito civil é entendido tradicionalmente como aquele formulado no Código de Napoleão, em que houve uma distinção clara entre leis
civis e leis públicas, feita pela sistematização de Jean Dormat, que com
sua codificação orientou o direito civil para que seja manifestado dessa
maneira, ou seja, o Código Civil era considerado o próprio direito civil.
O direito público é aquele emanado pelo Estado para a tutela de
interesses gerais. As duas esferas são quase impermeáveis, atribuindo-se
ao Estado o poder de impor limites aos direitos dos indivíduos8.
E pode-se complementar a citação com a verificação de que a
interferência do Estado (devido ao trauma vivido pelos anos de exploração da monarquia sobre a propriedade privada) se dava apenas para
manter uma convivência pacífica entre as pessoas, garantir o livre e absoluto direito à propriedade e promoção do comércio.
Na contemporaneidade o direito civil relativizou a sua função
tradicional, pois o estado interfere nas relações particulares e regulamenta em demasia os negócios, tirando o individualismo do direito civil, limitando essa liberdade.
Com a criação de subsistemas, tais como o Estatuto da Criança
e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor, as leis do direito autoral e a lei das locações, logo o Código Civil deixa de ser o polo
central do direito privado para consagrar a hierarquia da Constituição
sobre a unidade do sistema normativo, com seus vários microssistemas
que se complementam. O conceito de sistema jurídico unitário e hierarquizado dos países que possuem constituição prevê que na dicotomia
do direito público-direito privado, a Carta Magma como lei suprema
e base para o ordenamento prevalece; logo, o direito público disposto
constitucionalmente tem primazia, isso para garantir a coesão, a unidade, a sinergia e a estruturação em um ordenamento jurídico lógico pensado por Kelsen. A Lei Fundamental deve estar presente ou respeitada
em cada ato normativo, administrativo, comercial ou familiar (da vida
privada), pois na Constituição de um Estado existem os mais nobres
designíos de uma sociedade, como garantia da liberdade, dignidade da
8 MORAES, B. Maria Celina. A Caminho de um Direito Civil Constitucional. Revista Estado,
Direito e Sociedade. PUC-Rio v.l, n.I, p. 02, mês? 1991
119
William Bispo de Melo - Sterfesson Higo de Lima Ferreira - Pedro Pontes de Azevedo
pessoa humana, limitação e organização do poder estatal para garantir
o pleno desenvolvimento do espirito humano.
A Constituição recuperou sua importância no ordenamento jurídico, sendo que três fatores influenciaram nessa mudança: o marco
histórico, o marco filosófico e o marco teórico. Sendo que o marco histórico tratou de uma mudança histórica mundial, ocasionada pelo póssegunda guerra mundial e a queda de vários regimes ditatoriais. Houve
grande preocupação para que governos despóticos não conseguissem
tomar o poder. Buscou-se, no instrumento constitucional, dar estabilidade política para as nações e para o mundo, primando pela democracia
como forma de governo. No Brasil, com a Constituição “cidadã” de 1988,
ajudou na transição do regime militar para a redemocratização segura.
A constituição brasileira possui legitimidade e o respeito dos políticos,
militares e cidadãos. Traz estabilidade política e segurança jurídica, propiciando tempos de paz e prosperidade organizacional da nação.
O marco filosófico do novo direito constitucional é o pós-positivismo.
O debate acerca de sua caracterização situa-se na confluência das duas
grandes correntes de pensamento que oferecem paradigmas opostos
para o Direito: o jusnaturalismo e o positivismo. Opostos, mas, por
vezes, singularmente complementares. A quadra atual é assinada pela
superação ou, talvez, sublimação dos conjuntos puros por um conjunto
difuso e abrangente de ideias, agrupadas sob o rótulo genérico de póspositivismo.9
O positivismo jurídico resume o direito à lei, negligenciando
a discussão importante sobre a legitimidade e a justiça, dando poder
exagerado ao Estado e seu governante, favorecendo o surgimento do
totalitarismo nazista e fascista legitimados pela lei e o Estado, porém
sem legitimidade de fato ou justiça, fazendo com que depois da segunda guerra mundial se repensasse o positivismo ineficaz e inseguro para
uma espécie de união entre o jusnaturalismo e o positivismo, de modo
que surgiu às constituições contemporâneas que prezam por valores
“filosóficos”, como a dignidade da pessoa humana. Funda-se, assim, o
pós-modernismo.
9 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do direito: O
triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. p..05
120
5 • ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL: A BOA-FÉ OBJETIVA EM CONCRETO
O marco teórico divide-se em três grandes transformações: a força normativa da constituição, que antes tinha apenas o caráter político
e declaratório; com a mudança histórica, política e filosófica que acarretou na força normativa atual da constituição, que fornece mecanismos de coação para seu efetivo cumprimento; a expansão da jurisdição
constitucional, com a supremacia da constituição adotada pelos Estados
Unidos da América. Com o controle da constitucionalidade feita pelo
judiciário, outros países passaram a adotar esse modelo, rompendo com
o modelo que beneficiava em demasia o legislativo no que concerne
a Constituição, e a criação de mecanismos difusos e concentrados de
controle de constitucionalidade, julgados pelo judiciário; a nova interpretação constitucional: seguindo a valorização hierárquica da Constituição que reflete por óbvio na interpretação do ordenamento jurídico
que segue:
[...] princípios, de natureza instrumental, e não material, são
pressupostos lógicos metodológicos ou finalísticos da aplicação das
normas constitucionais. São eles, na ordenação que se afigura mais
adequada para as circunstancias brasileiras: o da supremacia da
Constituição, o da presunção de constitucionalidade das normas e atos
do Poder Público, o da interpretação conforme a Constituição, o da
unidade, o da razoabilidade e o da efetividade.10
No caso do Brasil houve a constitucionalização das fontes do direito, firmando as bases da supremacia constitucional e da irradiação da
constituição em todo o ordenamento jurídico e na própria sociedade.
2. Constitucionalização e direito dos contratos
O presente trabalho busca orientar a reformulação do pensamento contratual em face do novo “modelo solidarista (ou welfarista)” do
Código Civil de 2002, Código de Defesa do Consumidor e da Consolidação das Leis do Trabalho, defendendo a atualização do direito contratual, no atual viés do Estado Social/ Direito Social, privilegiando o
interesse coletivo sobre o individual. Contrariando o “modelo liberal
(ou moderno)” retrogrado, não se faz mais necessário e útil na atual
10 Ibid.,p.11
121
William Bispo de Melo - Sterfesson Higo de Lima Ferreira - Pedro Pontes de Azevedo
conjuntura política, em que prevalece a democracia, o social como interesses relevantes da sociedade e por consequência do próprio Estado.
Houve a ruptura com a antiga estrutura de paradigmas, no direito
contratual, com a Constituição de 1988, que o legislador constituinte
procurou atender de fato os anseios sociais, criando uma verdadeira Lei
Maior Cidadã, preocupada com o social, negligenciado na ideologia liberal, que funcionou em seu tempo, porém deve e esta sendo relegada
a história como ideologia dominante. Acompanhando as mudanças,
criou-se o Novo Código Civil, que obedecendo à lei hierarquicamente
superior no ordenamento jurídico, teve que se submeter aos seus princípios, sendo assim coerente e propriamente legitimo.
Considerando o artigo 421 CC, que versa sinteticamente sobre a
função social do contrato que necessita de maiores estudos, para compreensão de sua amplitude de significado e capacidade de modificação
da interpretação do direito privado, priorizando valores constitucionais
superiores, como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88),
pela busca da construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art.
3º, I, da CF/88) que só será alcançada se for irradiada no ordenamento
jurídico como cláusula pétrea no direito civil, que possui grande importância nas relações individuais, sendo estas sociais em última analise.
O solidarismo social seria uma nova teoria moral que é usada
para moralizar as relações econômicas, para adequá-las ao atual momento histórico, que visa limitar a autonomia da vontade, influenciando
a dogmática jurídica e influenciando o regulamento dos contratos, derivada da própria sociedade e suas demandas que solicitam mudanças
jurídicas necessárias.
A criação de um modelo de estruturação da realidade contratual,
moldada na ideologia (no sentido usado pelo autor: conjunto de ideias e
valores comuns em uma sociedade) solidarista, compreendida na ideologia coletivista e fundamentada na função social do contrato, quebra
com a tradição ideológica individualista, não mais praticável de acordo
com essa nova consciência social, que advém da Constituição Federal
de 1988, e registrada no Código Civil de 2002 como a “Função Social do
Contrato”, uma revolução que indica a mudança de paradigmas sociais,
do legislativo e que reflete nos contratos propriamente.
Depende da concepção, do paradigma que se parte para a analise
das relações contratuais, pois se o contrato for entendido como mani122
5 • ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL: A BOA-FÉ OBJETIVA EM CONCRETO
festação da liberdade individual (sacralizada), caberá ao direito contratual proteger os interesses desses pactuantes contra o arbítrio do Estado, interferindo na relação e reprimindo a autonomia da vontade dos
indivíduos; porém se o princípio de analise tem o contrato como uma
manifestação social que visa à circulação da riqueza, sua distribuição,
sendo então uma relação que interfere em toda a sociedade, direta e
indiretamente, logo caberá regulação para garantir a probidade, legitimidade, boa-fé objetiva e mesmo a justiça nos contratos, baseando-se
na razoabilidade.
Há que se fazer a explicitação de alguns significados, como contrato que pode ser um fato sem regulação jurídica, mas existe, ou um
fato jurídico, este com regulação no direito para assegurar segurança
jurídica na relação. Sendo o contrato a formalização jurídica da relação
econômica e o direito contratual a regulação dessa relação, que deve
acompanhar as mudanças sociais e legais, como no caso a Constituição
de 1988 e seus princípios (dignidade da pessoa humana etc..) e a mudança do Estado Social atual. Há mudança de paradigma no próprio
cerne da criação da legislação contratual, com o legislador adotando
uma concepção “welfarista” com modelo social de contrato, contrastando com o paradigma anterior de modelo liberal de contrato, apenas
com essa mudança política (criação das leis é um ato político) alterou-se
a interpretação dos contratos, sua utilização e doutrina (esta última gradativamente modifica-se), valorizando efetivamente os interesses coletivos sobre os individuais, afinal de contas essa seria a função precípua
do Estado, organizar a vida em sociedade e buscar pela paz, justiça e o
bem estar social. Como exemplo, pode-se citar o artigo 421 CC, que o
contrato atendera sua função social;, o artigo 317 e 478 CC, hipótese
de revisão judicial dos contratos por onerosidade excessiva e o artigo
187, que proíbe o abuso de direito. São dispositivos que visam a atender os interesses da coletividade em detrimento de interesses egoísticos
individuais. Existem duas escolas do pensamento que influenciam o
direito contratual, ou seja, a escola da ideologia individualista jusnaturalista moderna, que deriva do modelo liberal de Estado e a escola
solidarista, do direito social, própria do Estado Social. Nota-se que a
ideologia política (Estado Liberal ou Estado Social) influencia diretamente a legislação e consequentemente o direito contratual. Como houve a mudança ideológica política sobre a função do Estado na socie123
William Bispo de Melo - Sterfesson Higo de Lima Ferreira - Pedro Pontes de Azevedo
dade, sua área de atuação, seus fundamentos, sua utilidade e objetivos
influenciaram para que contemporaneamente o dogma da autonomia
da vontade e o sagrado pacta sunt servanda fosse relativizado para do
bem social, contrariando o pensamento puramente liberal que não está
vigente por sua infrutífera experiência. O Estado Liberal foi útil quando
criado, porém se tornou obsoleto e o social está valorizado, influenciado
pela democracia (com seu respeito pelos direitos das minorias, e no caso
do contrato, os direitos da parte mais fraca contratante, para que não
seja explorada pela parte mais forte, tornou-se preocupação social e de
Estado). A escola solidarista foi criada por Duguit, Salleilles, Gurvitch
e Hauriou, suas ideias influenciaram a criação do Código Civil de 2002,
contrastando com o Código Civil de 1916, que era influenciado pelo
modelo liberal.
A crise do Estado Social, da pós-modernidade do final do século
XX, com a ideia de ineficiência, morosidade, burocracia e desperdício
feito pelo Estado, trouxe vários resultados econômicos e sociais indesejados, pois quando o Estado liberal surgiu foi para frear o despotismo estatal com seu absolutismo prejudicial à sociedade. Em seguida, observouse que o liberalismo tornou-se danoso à sociedade, pois possibilitava a
prevalência dos interesses individuais sobre o coletivo, o que fez com que
se intentasse uma mudança de paradigma, para um Estado de Bem-Estar
Social que busca proteger os interesses coletivos e limitar minimamente
os interesses individuais. A partir daí, foi necessária a criação de vários
subsistemas para garantir legalmente a prevalência do social.
Serão analisados os modelos de Estado que interferem diretamente no debate da teoria contratual, pois de acordo com a ideologia
política vigente, esta influencia o direito e a concepção da função do
contrato, primando pela liberdade individual ou o caráter social deste.
Como no modelo moderno ou liberal de contrato, redigido com a ideologia unicamente liberal, o Código Civil de 1916, inspirado nesta concepção política, ocorre com a mudança da concepção política e social, o
Estado Social que foi adotado no âmbito do direito privado.
A concepção político estatal interfere no direito que modifica
obviamente o direito privado e a teoria contratual. Ideologias estatais
estas que foram construídas historicamente e culturalmente por meio
dos conflitos e crenças sociais que alteram a consciência coletiva, e esta,
por sua vez, vincula todos os âmbitos da vida social.
124
5 • ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL: A BOA-FÉ OBJETIVA EM CONCRETO
O novo Código Civil, sendo uma expressão dessa mudança política e do direito social (advindo do Estado Social), é uma tese pouco
apoiada por muitos civilistas, que devido à consciência política influenciada intrinsecamente pelo liberalismo de outrora, não concordam com
a mudança para o Estado social, com a mudança da sociedade e de suas
crenças. O Estado Liberal foi influenciado pelo iluminismo, com suas
teorias econômicas (Adam Smith), filosóficas (Immanuel Kant), políticas (John Locke), entre outros clássicos e expoentes deste movimento filosófico e libertador o Iluminismo. A democracia também auxilia
a liberdade econômica, ou seja, ocorreu uma complexa conjugação de
fatores para que surgisse o Estado Liberal, e seu modelo de contrato
regulado pela máxima do “pacta sunt servanda”, que prevê igualdade
abstrata entre os contratantes, desconsiderando as hipóteses de hipossuficiência e desigualdades sociais que causam dependência e que interferem e viciam os acordos.
Seguindo o raciocínio de LUCIANO BENETTI TIMM:
Evidentemente que o objetivo aqui não é esgotar a temática do Estado
Liberal e do Estado Social, mas apenas contextualizar o debate que
será travado ao longo desta obra sobre contratos, que não está imune
à discussão sobre o Estado. Com efeito, o reflexo da discussão sobre o
Estado no Direito Privado é, sem duvida, um importante pano de fundo
para o debate acerca dos modelos de contratos, pois o que se quer o
direito contratual dentro de um Estado Liberal é diferente de um Estado
Social.11
A constituição de 1988 irradia no ordenamento jurídico, possibilitando uma aproximação entre os três níveis de compreensão do direito, filosófico-principiológico, dogmático-normativo e pragmático,12 o
primeiro nível antes era aplicado apenas subsidiariamente; agora, com
a consagração do respeito à carta magna em todas as esferas do direito
pátrio, em todas as relações jurídicas, nos contratos privados , consequentemente os princípios constitucionais e de direito são de observância obrigatória para o direito contratual.
11 TIMM, Luciano Benetti, O Novo Direito Contratual Brasileiro, Rio de Janeiro: Forense, 2008,
p. 26.
12 DOS SANTOS, Romualdo Baptista et al. Direito Civil- Direito Patrimonial e Direito
Existencial. Local: Ed. Método, 2009, p. 246. vol. I
125
William Bispo de Melo - Sterfesson Higo de Lima Ferreira - Pedro Pontes de Azevedo
3. Princípio da boa-fé objetiva
O princípio do direito privado que prevê a atuação obrigatoriamente ética nas relações obrigacionais se resume pelo princípio da boafé objetiva13, que vincula as partes a atuarem com probidade no negócio
jurídico. Encontra-se a positivação deste princípio no código comercial
brasileiro de 1850, em seu artigo 131 informa o princípio da boa-fé obrigatória nos contratos, porém não houve a devida aceitação ou sua aplicação pela sociedade, devido a sua tímida orientação, não ostensiva e
continuada, como um princípio deve ser, para ser respeitado. No CDC,
por exemplo, encontra-se o princípio da boa-fé objetiva e do equilíbrio
das prestações, reduzindo a importância da vontade individual, em obediência aos princípios constitucionais da dignidade humana, da solidariedade social e da igualdade substancias, que integram o conteúdo
do Estado social de direito, seguindo preceitos constitucionais. Segundo
Miguel Reale:
Pode-se dizer que a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2.002 veio reforçar
ainda mais essa obrigação, ao estabelecer, no Art. 422, que ‘os contratantes
são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua
execução, os princípios de probidade e boa-fé’. No quadro do Código
revogado de 1916, a garantia do adimplemento dos pactos era apenas
de ordem jurídica, de acordo com o entendimento pandectista de que o
direito deve ter disciplinado tão somente mediante categorias jurídicas,
enquanto que atualmente não se prescinde do que eticamente é exigível
dos que se vinculam em virtude de um acordo de vontades. O que o
imperativo da ‘função social do contrato’ estatui é que este não pode ser
transformado em um instrumento para atividades abusivas, causando
dano à parte contrária ou a terceiros, uma vez que, nos termos do Art.
187, ‘também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo,
excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou
social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.14
Cabe ressaltar a importância que foi dada à boa-fé no Código
Civil de 2002, devido ao fato de constar a exigência de boa-fé em 55
13 DEBS, Newman de Farias et al. Direito Civil- Direito Patrimonial e Direito Existencial.
Local: Ed. Método, 2009, p.252. vol. I
14 REALE, Miguel. Função Social do Contrato, web site: http://www.miguelreale.com.br/artigos/
funsoccont.htm. Consultado 22/04/2013, às 11:11
126
5 • ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL: A BOA-FÉ OBJETIVA EM CONCRETO
artigos e recriminando a má-fé em 43, de acordo com o jurista Ministro
ALMIR PAZZIANOTTO PINTO, citado por MIGUEL REALE em seu
artigo mencionado acima.
Também é cabível mencionar a decisão recente do Superior Tribunal de Justiça:
Um dos princípios fundamentais do direito privado é o da boa-fé
objetiva, cuja função é estabelecer um padrão ético de conduta para as
partes nas relações obrigacionais. No entanto, a boa-fé não se esgota
nesse campo do direito, ecoando por todo o ordenamento jurídico.
“Reconhecer a boa-fé não é tarefa fácil”, resume o ministro do Superior
Tribunal de Justiça (STJ) Humberto Martins. “Para concluir se o
sujeito estava ou não de boa-fé, torna-se necessário analisar se o seu
comportamento foi leal, ético, ou se havia justificativa amparada no
direito”, completa o magistrado. Mesmo antes de constar expressamente
na legislação brasileira, o princípio da boa-fé objetiva já vinha sendo
utilizado amplamente pela jurisprudência, inclusive do STJ, para
solução de casos em diversos ramos do direito. A partir do Código de
Defesa do Consumidor, em 1990, a boa-fé foi consagrada no sistema
de direito privado brasileiro como um dos princípios fundamentais
das relações de consumo e como cláusula geral para controle das
cláusulas abusivas. No Código Civil de 2002 (CC/02), o princípio da
boa-fé está expressamente contemplado. O ministro do STJ Paulo de
Tarso Sanseverino, presidente da Terceira Turma, explica que “a boa-fé
objetiva constitui um modelo de conduta social ou um padrão ético de
comportamento, que impõe, concretamente, a todo cidadão que, nas
suas relações, atue com honestidade, lealdade e probidade”. Ele alerta
que não se deve confundi-la com a boa-fé subjetiva, que é o estado de
consciência ou a crença do sujeito de estar agindo em conformidade
com as normas do ordenamento jurídico.15
Neste mesmo entendimento encontram-se dispositivos jurídicos
que visam a efetivar o princípio da boa-fé objetiva como o venire contra factum proprium (exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento anterior do exercente), tu quoque (ocorre
quando alguém viola norma jurídica especifica, em seguida tenta obter
proveito da situação, com a intenção de se beneficiar), adimplemento
15 Publicação do STJ 17/03/2013 às 08h00 (Coordenadoria de Editoria e Imprensa) Princípio
da boa-fé objetiva é consagrado pelo STJ em todas as áreas do direito http://www.stj.gov.br/
portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=108925.
127
William Bispo de Melo - Sterfesson Higo de Lima Ferreira - Pedro Pontes de Azevedo
substancial (pagamento feito em proporção substancial, considerável,
relevante sobre o valor da dívida, que demonstra a boa-fé objetiva do
devedor em efetuar o adimplemento da obrigação, limitando o exercício dos direitos do credor), violação positiva do contrato (violação dos
deveres anexos da boa-fé: lealdade, confiança, transparência e cooperação), abuso de direito (exercer seu direito com a finalidade ou violando
de fato um direito alheio, como exemplo tem-se o ato emulativo: não
proporciona benefício algum ao credor, porém prejudica o devedor ),
“supressio” (perda de um direito por uma inação ou inércia prolongada, sendo diferente da decadência porque não há prazo legal, usa-se a
razoabilidade/boa-fé ), “surrectio” (conquista de um direito por uma
ação reiterada, como exemplo a união estável, previsão do art. 1.823 do
CC/02) e “exceptio doli” (uma das partes se recusa a cumprir com sua
obrigação alegando o dolo da outra parte, o descumprimento da obrigação da outra parte, caracterizando a exceção do contrato não cumprido). Observa-se a relevância da boa-fé objetiva na relação entre os
contratantes. Na concepção de JOSÉ AUGUSTO DELGADO:
No referente à boa-fé, a doutrina aponta a existência de três formas:
subjetiva, a objetiva e a hermenêutica16.
‘A boa-fé objetiva é a que as investigações concentram-se, apenas, na
exteriorização da conduta do sujeito, sem se considerar quaisquer
aspectos de natureza psicológica ou até mesmo a sua opinião. O que
impressiona é o aspecto externo do ato que a pessoa produziu. A boafé subjetiva é formada pelos elementos componentes da manifestação
da vontade do agente que expressam consciência de não prejudicar
ninguém, isto é, atuação, no mundo exterior, reveladora da ausência
de dolo. A boa-fé hermenêutica decorre do entendimento formado pela
doutrina e a jurisprudência sobre a intenção das partes no instante em
que celebram e executam o contrato’17 (Grifo Nosso)
Na aplicação da boa-fé objetiva aos casos concretos, tem-se ainda
a vigência dos deveres anexos decorrentes da boa-fé objetiva, que conforme GUSTAVO RENE NICOLAU seria o seguinte:
16 NEVES, José Roberto de Castro. Boa-fé Objetiva: Posição atual no ordenamento jurídico e
perspectivas de sua aplicação nas relações contratuais Disponível em <http://www.jcadvocacia.
com/index2.htm?cont=publicacoes&publicacao=8&categoria=2>.
17 DELGADO, José Augusto. Questões controvertidas do novo Código Civil.,São Paulo Ed.
Método,.117. v.1
128
5 • ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL: A BOA-FÉ OBJETIVA EM CONCRETO
[...] num contrato há as chamadas cláusulas centras ou nucleares,
que nada mais são do que as principais obrigações das partes dentro
do contrato. Desse modo, é dever nuclear do locador de um auditório
ceder a posse direta da coisa locada, enquanto ao locatário incumbe
pagar a quantia fixada. Ocorre que a boa-fé objetiva impõe às partes
contratantes deveres que não são os centrais ou nucleares, mas que
estão anexos, marginais, laterais ao contrato e que muitas vezes
nem sequer foram redigidos. São obrigações decorrentes justamente
daquela justa expectativa que existe em nossas relações sociais de
sempre lidar com pessoas íntegras e probas. São deveres de proteção ao
contratante.18São deveres que concernem principalmente à segurança
do contratante, ao sigilo que resguarda a intimidade e a vida privada
do cidadão, à plena informação dos termos contratados, evitando
subterfúgios ou penumbras de interpretação no contrato, ao zelo e à
lealdade que os contratantes devem guardar um em relação ao outro. O
Tribunal de Justiça do Rio Grande do sul condenou conhecida indústria
tabagista baseando seu acórdão no fato de que ocorre violação do dever
de informar os malefícios do cigarro19 20 (Grifo Nosso).
Em relação aos princípios de direito, cabe citar relevante julgado do Superior Tribunal de Justiça21 ao declarar como impenhorável o
bem de família do fiador em contrato de locação, a despeito da expressa
previsão contrária do art. 3°, VII, da lei 8.009/1990. Decidiu contra a lei
(contra lege), mas em favor do princípio constitucional que prevê a moradia como direito social no art. 6°, caput, da Constituição Federal, com
a redação da Emenda 26/2000, que não teria recepcionado a permissão
legal da penhora.22
Dentre as funções da boa-fé objetiva, encontra-se a função interpretativa, prevista no art. 113 do CC/02 (os contratantes devem agir
com lealdade, transparência, cooperação e tutela da confiança, espera-se
poder confiar no outro contratante, os dispositivos do contrato devem
18 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000, p. 38.
19 BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação cível 70007090798.
9° Câmara Cível. Relator Adão Sérgio do Nascimento. Data do Julgamento: 29. out. 2003.
20 , Direito Contratual - Temas atuais. São Paulo: Ed. Método, 2007, p. 117.
21 BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial 2005/0068634-6. 5° Turma.
Relator Felix Fischer. Data do julgamento: 18. Ago. 2005.
22 TARTUCE, Flavio, Direito Contratual - Temas atuais. São Paulo: Ed. Método, 2007, p. 114.
129
William Bispo de Melo - Sterfesson Higo de Lima Ferreira - Pedro Pontes de Azevedo
ser interpretados conforme esses itens intrínsecos a boa-fé objetiva, são
os chamados deveres anexos), limitadora ou controladora, contemplada
no art. 187 do CC/02 (vedação do abuso de direito no exercício de um
direito legitimo, caracterizam-se nesta função os institutos do surrectio,
supressio, venire contra factum proprium) e por último a função integrativa do art. 422 do CC/0223 (os contratantes devem atuar com boa-fé em
todas as fases da contratação, seja na fase pré-contratual- tratativas, nas
negociações preliminares, na conclusão - execução e na fase pós- contratual, respeitando os deveres anexos em todas as etapas contratuais).
Nos conceitos de eticidade e sociabilidade24 que regem o sistema
da nossa codificação, muito acima dos contratos, e até da lei, está a moral, a conduta, a honra e a fundada expectativa das pessoas de que- em
suas relações sociais- estarão a tratar com pessoas pautadas pela honestidade,25 sendo a maneira mais eficiente e eficaz de se buscar a justiça e
a consequente paz social.
4. Adimplemento substancial e a boa-fé objetiva
O direito das obrigações possui uma forte essência romanística,
como pode se observar nas palavras de ANDERSON SCHREIBER:
Caminha a passos vagarosos porque atado a uma sólida tradição
romanista, que se revelou aí particularmente engenhosa no
desenvolvimento de categorias e preceitos tão abstratos e intuitivos que
são tratados como ‘princípios imutáveis da equidade natural’, sobre
os quais repousam, “mais inabaláveis que sobre colunas de bronze, os
fundamentos das obrigações”26. Ainda hoje visto como ‘a parte do direito
onde, com maior liberdade, têm lugar os princípios da razão pura’27, o
direito obrigacional vem, não raro, elevado a um conjunto de ‘verdades
23 CÓDIGO CIVIL DE 2002. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na
conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
24 REALE, Miguel. Espírito da nova lei civil. O Estado de São Paulo. São Paulo. 4. Jan. 2003.
Caderno A. p. 2.
25 TARTUCE, Flavio. Direito Contratual - Temas atuais. São Paulo: Ed. Método, 2007, p. 122.
26 GIORGI, Giorgio. Teoria dele obbligazioni nel dirittto moderno italiano. Firenze: Fratelli
Cammelli, 1924, p. 28.
27 É a opinião de Toulier, registrada por Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso de direito civilobrigações em geral. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 1995, p. 7. v. II
130
5 • ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL: A BOA-FÉ OBJETIVA EM CONCRETO
eternas, como certos postulados da geometria e da aritmética’28. Nada
disso, entretanto, tem impedido que, para além da secular perenidade
da disciplina jurídica das obrigações, a atividade privada e a prática
contratual se modifiquem profundamente29(GRIFO NOSSO)
Os direitos das obrigações foram gradativamente aderindo à valoração dos princípios constitucionais, como o solidarismo e eticidade
nas relações privadas. Ainda, conforme SCHREIBER,
[...] a melhor doutrina brasileira já identificou o fundamento
constitucional da boa-fé objetiva,30consagrou a fórmula útil (embora
não incontestável) de sua tríplice função – função adjuvandi (ajuda
na interpretação do contrato), supplendi (suprir as falhas do contrato)
corrigendi (eventualmente corrigir alguma coisa que não é de direito
no sentido justo) 31, enfatizou o seu papel do sistema obrigacional,32
construindo-lhe em síntese, um arcabouço teórico dos mais respeitáveis.
O Poder Judiciário agarrou-se ao instrumento, e passou a aplicá-lo a
uma infinidade de hipóteses fáticas, chegando a resultados mais justos
na solução dos casos concretos. 33
A violação positiva do contrato ocorre com o não cumprimento
de obrigações anexas ao contrato, segundo JORGE CESAR FERREIRA
DA SILVA: “[...] violação positiva do contrato como inadimplemento decorrente do descumprimento culposo de dever lateral, quando este dever
não tenha vinculação direita com os interesses do credor na prestação.”34
28 A tal postura alude, criticamente, Orosimbo Nonato. Curso de obrigações. Rio de Janeiro:
Forense, 1959, p. 55, , v. I. Afirmando: ‘O conceito de obrigação varia no tempo e no espaço para
atender às peculiaridades do consórcio civil em que se expanda: não foge, não pode fugir à lei da
evolução universal.’
29 SCHREIBBER, Anderson et al. Direito Contratual - Temas atuais. São Paulo: Ed. Método,
2007, p. 126.
30 NEGREIROS, Tereza. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da
boa-fé objetiva.Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
31 A referida tripartição funcional, inspirada nas funções do direito pretoriano romano, foi
modernamente sugerida por Boehmer.
32 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado- sistema e tópica no processo
obrigacional. São Paulo: RT, 2000,p. 381-515.
33 Ver, entre outras aplicações da boa-fé objetiva, STJ, Resp. 32.890/SP, j. 14.11.1994; Resp.
184.573/SP, j. 17.11.2005; e Agravo Regimental na Medida Cautelar 10.015/DF. J. 02.08.2005.
34 DA SILVA, Jorge Cesar Ferreira. A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de Janeiro:
Renovar, 200, p. 268.
131
William Bispo de Melo - Sterfesson Higo de Lima Ferreira - Pedro Pontes de Azevedo
O importante para configurar esta violação é o não atendimento
da função concreta do contrato, mesmo havendo o adimplemento da
obrigação principal - é o que ensina SCHREIBER -, e para depois tratar
do adimplemento substancial utiliza-se da conceituação da violação positiva do contrato, afirmando que:
E, nesse particular, a recíproca se revela absolutamente verdadeira.
Da mesma forma que o cumprimento meramente estrutural da
prestação principal não configura adimplemento (violação positiva
do contrato), exigindo uma análise mais atenta à função concreta
do negócio celebrado, a inadequação formal do comportamento do
devedor ao débito, tal como estruturalmente definido pelas partes, não
ensejará inadimplemento, desde que atendido o escopo especificamente
perseguido pelas partes com a constituição do vinculo obrigacional.
Aqui se chega, enfim, à questão do adimplemento substancial.35
A boa-fé objetiva encontra-se no adimplemento de parte considerável da obrigação, o que impossibilita o outro contratante de alegar
inadimplemento da obrigação ou reivindicar a exceção do contrato não
cumprido, pois se deve considerar que houve cumprimento da maior
parte da obrigação e não seria justo a outra parte alegar descumprimento do contrato, pois o mesmo de fato não ocorreu, estaria faltando com
a boa-fé este contratante que excederia muito o exercício de seu direito, por ausência de legitimidade e razoabilidade. Relevante analise faz
SCHREIBER na aferição do que seria no caso concreto um adimplemento considerado substancial:
O atual desafio da doutrina está em fixar parâmetros que permitam
ao Poder Judiciário dizer, em cada caso, se o adimplemento afigura-se
ou não significativo, substancial. Á falta de suporte teórico, as cortes
brasileiras têm-se mostrado tímidas e invocado o adimplemento
substancial apenas em abordagem quantitativa. A jurisprudência
tem, assim, reconhecido a configuração de adimplemento substancial
quando se verifica o cumprimento do contrato ‘com a falta apenas
da ultima prestação36, ou o recebimento do credor de ’16 das 18
35 SCHREIBBER, Anderson et al. Direito Contratual - Temas atuais. São Paulo: Ed. Método,
2007, p. 138.
36 STJ, Resp. 272.739/MG, j. 01.03.2001.
132
5 • ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL: A BOA-FÉ OBJETIVA EM CONCRETO
parcelas’37ou a hipótese em que 94% do preço do negócio de promessa
de compra e venda de imóvel encontra-se satisfeito’38. Em outros casos,
a análise judicial tem descido mesmo a uma impressionante aferição
percentual, declarando substancial o adimplemento nos casos ‘em que
a parcela contratual inadimplida representa apenas 8,33% do valor total
das prestações devidas’,39ou de pagamento ‘que representa 62,43% do
preço contratado40
teoria,
No sentido contrário existem julgados que negam a aplicação da
[...] o adimplemento de apenas 55% do total da do total das prestações
assumidas pelo promitente comprador não autoriza o reconhecimento
da execução substancial do contrato’41, ou que ‘ o pagamento de cerca
de 43% contra-indica a hipótese de adimplemento substancia42, ou
ainda que ‘ a teoria do adimplemento substancial do contrato tem vez
quando, como o próprio nome alude, a execução do contrato abrange
quase a totalidade das parcelas ajustadas, o que, por certo, não é o caso
do pagamento de apenas 70%.43
O Superior Tribunal de Justiça reconhece a teoria em sua jurisprudência,
Assim, fixadas essas premissas pelas Instâncias ordinárias, as quais,
diga-se, não podem ser alteradas por este Tribunal Superior em razão
dos óbices das Súmulas n.s 5 e 7/STJ, verifica-se que o acórdão recorrido,
de fato, coaduna com a jurisprudência deste STJ que se firmou no
sentido de que, se o saldo devedor for considerado extremamente
reduzido em relação à obrigação total, é perfeitamente aplicável a teoria
do adimplemento substancial, impedindo a resolução por parte do
credor, em favor da preservação do contrato.Nesse sentido, confiramse os seguintes precedentes: REsp 469577/SC, Ruy Rosado de Aguiar,
DJ 05/05/2003; REsp 912697/RO Rel. Min. Aldir Passarinho Junior,
37 TJMG, 13° Câmara Cível, Apelação Cível 1.0521.05.043572-1/001, j. 09.02.2006.
38 TARS, 7° Câmara Cível, Apelação Cível 194.194.866, j. 30.11.1994.
39 TJDF, 4° Câmara Cível, Apelação Cível 2004.01.1.025119-0, j. 09.05.2005.
40 TJRS, 19° Câmara Cível, Apelação Cível 70015436827, j. 08.08.2006.
41 TJRS, 18° Câmara Cível, Apelação Cível 70015215510, j. 08.06.2006.
42 TJRS, 18° Câmara Cível, Apelação Cível 70014803209, j. 08.06.2006.
43 TJRS, 20° Câmara Cível, Apelação Cível 70015167893, j. 16.08.2006.
133
William Bispo de Melo - Sterfesson Higo de Lima Ferreira - Pedro Pontes de Azevedo
DJe 25/10/2010; REsp 877965/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe
01/02/201244
Constata-se a disparidade nos julgados, levando a crer que não há
parâmetro estabelecido sobre o que seria de fato o adimplemento substancial de uma obrigação, que depende do caso concreto e se a função
do contrato foi desempenhada.
5. Conclusões
Diante do exposto, vê-se que foi feita uma breve gradação da normatividade brasileira que possibilita, hodiernamente, uma ampla inserção dos cânones constitucionais.
A constitucionalização do Direito consiste na implementação e
aplicação dos princípios e regras presentes na Constituição Federal a
todo o ordenamento jurídico. Visto isso, surgem várias situações que
serão compreendidas, como a inconstitucionalidade das normas não
compatíveis com a Carta Magna e a Constituição como base de interpretação das normas infraconstitucionais.
O ordenamento jurídico, então, acata a Constituição como lei
maior, deixando as normas infraconstitucionais sob a sua égide, respeitando os seus princípios norteadores, como por exemplo, o da dignidade da pessoa humana.
Tais princípios ocupam as cláusulas abertas, possuindo assim
uma força de lei devido o respaldo constitucional que pode levar a julgados que vão defronte a própria lei, prezando a dosimetria no caso
concreto, tem-se como exemplo um caso emblemático em que deixouse de aplicar a lei (execução de hipoteca de fiador no STJ), prezando a
dignidade e o principio do direito a moradia; tem-se então a aplicabilidade dos princípios constitucionais.
A Constituição pauta todos os direitos, até mesmo o mais distante
dela, que são as regulações privadas do Direito Civil, acompanhando o
estado social, e não mais o estado liberal. Tal mudança permeia a política nos contratos, existindo assim o modelo solidarista, em que há preocupação com a coletividade em contraponto da “pacta sunt servanda”.
44 STJ. AgRg no Agravo em Recurso Espécial Nº 155.885 - MS (2012/0050366-5), j.24.08.2012.
p. 4/6.
134
5 • ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL: A BOA-FÉ OBJETIVA EM CONCRETO
Um dos principais princípios já trabalhados no transcorrer do
nosso trabalho foi o da boa-fé objetiva, que difere da subjetiva, pois independe da sua psique, da sua boa intenção.
O Adimplemento substancial é uma relevante consequência do
princípio da boa-fé objetiva, pois o pagamento da maior parte da sua
divida (pagar substancialmente, ou seja, a maior parte) já demonstra
que o interesse da parte não é lesar o credor. Pelo contrário, por um
caso fortuito ou por motivo de força maior, o contratante não conseguiu
adimplir toda a obrigação, sendo injusta uma sanção que imponha a
perda de tal bem.
Chegando ao Direito Civil, pode-se concluir que, esse ramo do
Direito foi evoluindo e se transformando gradativamente, ficando cada
vez mais atrelado e porque não dizer dependente da Constituição Federal. Teve como “ápice” a sua constitucionalização e o consequente
abarcamento dos direitos da personalidade como sua base, sendo repersonalizado, deixando para trás uma visão estritamente patrimonialista.
Ademais, o contato com a jurisprudência dos tribunais ensejou
uma visão bem mais crítica acerca do adimplemento substancial, como
já bem tecido; não devendo ser aceito ou adimplida a obrigação quando
o devedor se aproxima admiravelmente do seu certame final.
Tal assunto esta em voga e o seu debate deve ser constante e inovador, tendo em vista que a repersonalização do Direito Civil, com o princípio objetivo da boa-fé em primeiro grau é ponto chave para as relações
privadas rumarem com movimento diferente. Assim, o Direito Civil sendo o ramo mais distante do Direito Constitucional, por se tratar daquele
que cuida das relações privadas, cede aos princípios constitucionais, passando a incorporar uma nova forma de interpretação dos valores.
Estes novos valores vieram para completar a lacuna que faltava
para uma garantia fixa de tais diretos considerados à primeira vista abstratos; entretanto, o bom senso em sua aplicação pelos magistrados e a
dosimetria pairaram como princípios explícitos de controle e segurança.
Pode-se afirmar, extreme de dúvidas, que a despatrimonialização
do Direito Civil trouxe diversas consequências importantes, dentre elas
a força normativa do princípio da boa-fé objetiva e as suas decorrências,
dentre as quais o adimplemento substancial se destaca como uma das
mais relevantes, por proteger, via de regra, o contratante mais vulnerável.
135
William Bispo de Melo - Sterfesson Higo de Lima Ferreira - Pedro Pontes de Azevedo
6. Referências
BARROSO,
Luís
Roberto.
Neoconstitucionalismo
e
constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito
constitucional no Brasil). Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 851, 1
nov. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7547>. Acesso em:
21 nov. 2013.
BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial
2005/0068634-6. 5° Turma. Relator Felix Fischer. Data do julgamento:
18. Ago. 2005.
_______. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL.
Apelação cível 70007090798. 9° Câmara Cível. Relator Adão Sérgio do
Nascimento. Data do Julgamento: 29. out. 2003.
CASTRO NEVES, José Roberto de. In: Boa-fé objetiva: posição atual
no ordenamento jurídico e a perspectivas de suas aplicações nas
relações contratuais.
DA SILVA, Jorge Cesar Ferreira. A boa-fé e a violação positiva do
contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 200, p. 268.
DELGADO, José Augusto. A ética e a boa-fé no novo Código Civil. In:
DELGADO, Mário Luiz. Questões controvertidas do novo Código
Civil São Paulo: Método. 2009. v.1
LÔBO, Paulo Luiz Netto. A constitucionalização do Direito Civil
brasileiro. In: TEPEDINO, Gustavo (org.). Direito Civil contemporâneo:
Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas,
2008.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado - sistema e
tópica no processo obrigacional. São Paulo: RT, 2000
MORAES, B. Maria Celina, A caminho de um Direito Civil
Constitucional. Revista Estado, Direito e Sociedade, 1991. v. I
136
5 • ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL: A BOA-FÉ OBJETIVA EM CONCRETO
NEGREIROS, Tereza. Fundamentos para uma interpretação
constitucional do princípio da boa-fé objetiva, Rio de Janeiro:
Renovar, 1998.
NICOLAU, Gustavo Rene. Implicações práticas da boa-fé objetiva. In:
TARTUCE, Flávio. Direito contratual: temas atuais. São Paulo: Método,
2007.
REALE, Miguel. Espírito da nova lei civil.. O Estado de São Paulo. São
Paulo. 4. Jan. 2003. Caderno A. p. 2.
REALE, Miguel. Função Social do Contrato, web site: http://www.
miguelreale.com.br/artigos/funsoccont.htm. Consultado 22/04/2013.
REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 1994.
SCHREIBER, Anderson. A boa-fé e o adimplemento substancial. In:
TARTUCE, Flávio (coord.). Direito contratual: temas atuais. São Paulo:
Método, 2007.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Coordenadoria de Editoria
e Imprensa. Princípio da boa-fé objetiva é consagrado pelo STJ em
todas as áreas do direito http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/
engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=108925.
TEPEDINO, Gustavo. O Código Civil, os chamados microssistemas e
Constituição: premissas para uma reforma legislativa. In: TEPEDINO,
Gustavo (org.). Direito Civil contemporâneo: novos problemas à luz
da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008.
TIMM, Luciano Benetti. O novo direito contratual brasileiro. Rio de
Janeiro: Forense, 2008.
137
6
A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO
ÂMBITO DO PROGRAMA NACIONAL DE
FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA
FAMILIAR (PRONAF) COMO MOTOR DE
DESENVOLVIMENTO NACIONAL
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa1
- Sandra Terto Sampaio Rodrigues2
Sumário: Introdução - 1. A função social dos contratos e o
crédito para a agricultura familiar - 2. O agricultor familiar e
o programa nacional de fortalecimento da agricultura familiar
(PRONAF) - 2.1. Delimitação do conceito de agricultor familiar
- 2.2. O programa nacional de fortalecimento da agricultura PRONAF - 2.2.1. Origem do PRONAF - 2.2.2. Operacionalização
do Programa - 2.2.3. Aplicações de Crédito do PRONAF - 3.
Conclusões - 4. Referências
1 Doutora em Ciências Jurídico-Econômicas pela Universidade de Coimbra, com Pós-doutorado
em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Diretora do Centro de Ciências Jurídicas
da Universidade Federal da Paraíba. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.
2 Mestra em Direito Econômico pela Universidade Federal da Paraíba.
139
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa - Sandra Terto Sampaio Rodrigues
Introdução
A agricultura familiar no Brasil tem ganhado força nas discussões políticas dos últimos anos ao lado de temas como desenvolvimento
sustentável, geração de emprego e renda, segurança alimentar e desenvolvimento local. O aumento da quantidade de agricultores assentados
por meio do Programa Nacional de Reforma Agrária - PRONAF incrementa esse debate, fazendo com que o crédito gerado pelo programa
seja transformado em motor da principal política pública direcionada
ao segmento da agricultura familiar no Brasil.
O PRONAF foi criado em 1995/96 na Secretaria de Desenvolvimento Rural – SDR do antigo Ministério da Agricultura e Abastecimento
- MAA, no atual Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento MAPA, tendo sido deslocado, em 1999, para a Secretaria da Agricultura
Familiar – SAF, no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário MDA. Surgiu com o propósito de estimular o incremento ordenado dos
investimentos rurais, inclusive no que se refere a armazenamento, beneficiamento e industrialização dos produtos agropecuários. No conjunto,
tem como metas favorecer o custeio da produção e a comercialização
de produtos agropecuários; possibilitar o fortalecimento econômico dos
pequenos e médios produtores rurais; incentivar a introdução de métodos racionais de produção, visando ao aumento da produtividade e à
melhoria do padrão de vida das populações rurais; estimular a diversificação das atividades produtivas das unidades de produção, entre outras.
Do início até agora, o PRONAF passou por alguns redimensionamentos3 no intuito declarado de tornar o setor estratégico para garantir
a segurança alimentar do país, por meio do aprovisionamento de subsídios para a agricultura, que incrementam a competitividade nos mercados interno e internacional, especialmente no contexto do Mercosul.
No Brasil, a concessão de subsídios por intermédio do crédito rural faz
parte das políticas da SAF-MDA e abrange o financiamento com proteção da produção, através de medidas como créditos diretos, programas
de garantia-safra, garantia dos preços, entre outras estratégias de assistência técnica, formação de recursos humanos e incentivos comerciais
3 Tais como a Lei 11.326, de 24.07.2006, que regula a agricultura familiar; o Decreto 6.882, de
19.06.2009, que institui o Pronaf Sustentável; a Lei 12.188, de 11.01.2010 - Lei Geral da ATER;
o Decreto 7.215, de 15.06.2010, que regulamenta a Lei 12.188/2010; Resoluções do Conselho
Monetário Nacional; Portarias do MDA, entre outras alterações.
140
6 • A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA...
e financeiros, como o programa de sementes e a compra direta antecipada, articulando o crédito a outras políticas governamentais, como o
Programa Fome Zero e o Bolsa Família.
O PRONAF movimenta um volume expressivo de recursos financeiros e contratações4. Até agora, no conjunto de medidas, tais como a
diminuição progressiva dos encargos, a elevação dos níveis de subsídios
e a nacionalização do Programa, que ampliou a atuação ao Nordeste e
Norte do país, houve um expressivo aumento da quantidade de recursos
repassados aos agricultores familiares e também de contratos, perfazendo mais de um milhão e meio de contratos no ano de 2011, para fazer
frente à integralidade do programa – ver detalhamento em item próprio
adiante. É propósito deste ensaio analisar se os contratos de financiamento viabilizados pelo PRONAF cumprem, de fato, a sua função social, indagando se a política pública que este representa está conjugada
no sentido da efetiva melhoria das condições de vida do público para o
qual foi criada.
1. A função social dos contratos e o crédito para a
agricultura familiar
O regime de plena liberdade contratual, que prestigiava a completa autonomia da vontade, nascido com o Estado Liberal dos séculos
XVIII e XIX, foi sendo adaptado às mudanças políticas e sociais ocorridas no mundo, especialmente depois do término da I Guerra (1918)
e das alterações no mercado financeiro americano (crise de 1929). O
surgimento do constitucionalismo econômico, nomeadamente depois
de Weimar (1919), trouxe à tona o interesse público no confronto político-jurídico com os interesses privados, amoldando a autonomia da
vontade aos ditames negociais, impactada em sua pretensão de exclusividade, fatos que se consolidaram especialmente depois do término
da II Guerra (1945), quando o reconhecimento da dignidade dos seres
humanos se impôs como postulado inarredável, mesmo no contexto da
crise que afetou os pilares do Estado de Bem-Estar, pelos anos setenta e
oitenta do século passado.
4 Disponíveis em: www.pronaf.gov.br
http://www.agricultura.gov.br/arq_editor/file/camaras_setoriais/Mel_e_produtos_apicolas/19_
reuniao/Plano_de_desen.pdf. Acesso em: 10 de jun./2013
141
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa - Sandra Terto Sampaio Rodrigues
No Brasil, em especial depois da redemocratização do país e da
promulgação da Constituição Federal de 1988, pactuou-se no sentido
da revisão da lógica jurídica das relações privadas, de maneira que o
conteúdo e os efeitos dos contratos firmados entre particulares, no novo
formato, não mais poderiam abranger somente as partes da avença. O
desafio era aplicar aos contratos os direitos fundamentais garantidos
em sede constitucional, com ênfase na dignidade da pessoa humana,
na erradicação da pobreza, na coibição do enriquecimento ilícito e na
solidariedade social, entre outros postulados. Assim, o Estado, por intermédio do poder legislador e em razão de sua ação judicante, passava
a regulamentar os limites do contrato, corrigindo distorções e abusos
que afrontassem os princípios dispostos na Constituição. Na sequência,
o Código Civil Brasileiro, de 2002, impôs deveres de conduta aos contratantes referentes à boa-fé objetiva e à função social do contrato, entre
outros, regulando as obrigações contratuais e seus efeitos expandidos,
além de servir de esteio para a resolução de litígios ou desajustes oriundos das contratações civis.
O reconhecimento da incidência de princípios e valores constitucionais no direito civil brasileiro gerou nova propensão metodológica,
sensível aos reclamos sociais. Foi alterado o valor político das normas de
direito privado, que passaram a corresponder à necessidade de enfrentar o velho antagonismo entre os campos do direito público e do direito
privado, vinculando a ordem privada às transformações históricas ocorridas no âmbito sócio-político-econômico. Os preceitos constitucionais
promoveram a releitura das normas de direito civil, superando a lógica
proprietária, produtivista e empresarial, em nome dos valores existenciais da pessoa humana. Assim, não somente o legislador ordinário necessitava observar os novos preceitos, mas também os tribunais e os cidadãos, de modo que as posições subjetivas estavam agora contornadas
pelos dispositivos constitucionais garantidores, no contexto da intencionalidade material que passou a permear o direito. Essa nova atitude
exibiu a superioridade substantiva das determinações constitucionais e
a vontade de submeter, em contrapartida, o conteúdo infraconstitucional desses direitos (FEITOSA, 2007, p. 317).
O contrato não devia mais ser considerado mera fonte de obrigações, a reclamar cumprimento a todo custo, mas instrumento de colaboração entre as partes, considerando-se que o simples dizer contratual
142
6 • A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA...
não podia mais ser tido como sinônimo de justiça. Na verdade, compreendeu-se que o dilema contratual levado à apreciação judicial não
poderia ser resolvido apenas sob a ótica patrimonial dos envolvidos,
sem interferência de valores externos, inclusive de natureza moral e ética. Compreendeu-se que os pactos erigidos nas cercanias da nova autonomia negocial, definidos a partir da liberdade individual e formal das
pessoas, nem sempre representam (ou respeitam) o interesse coletivo,
em proposição que rompe com a sua modelagem tradicional, que considerava o contrato instrumento de poder, rivalizando com o monopólio
legislativo estatal.
No mundo ocidental, o ordenamento destinado à tutela dos interesses meramente individuais dissipou-se, especialmente depois do
advento do constitucionalismo econômico-social, nomeadamente no
segundo momento do Estado Social, depois da II Guerra, passando a
direcionar a tutela jurídica para a proteção dos mais vulneráveis e interferindo na dicotomia entre as regras de direito público e direito privado,
pelo reconhecimento interdisciplinar do direito e de seus institutos, nas
relações entre si ou com as demais áreas do conhecimento, fato esse que
abalou a antiga lógica unitária do sistema.
Não havia mais como proteger o interesse individual sem imaginar
seu reflexo no corpo social, considerando que os valores adotados pelas
Constituições modernas são incompatíveis com a patrimonialização das
relações civis. A pessoa humana deve ser o centro da regulação da ordem privada, disciplinando as operações econômicas sem lhes defraudar segurança, primordialmente assegurando a dignidade dos sujeitos e
concebendo o direito contratual em harmonia com os valores edificados
na Constituição. As situações negociais devem se submeter ao objetivo
do incremento da justiça distributiva, no contexto de um ordenamento
jurídico “despatrimonializado” (EHRHARDT JR, 2005, p. 25).
Assim, a visão “desideologizada” do direito civil não goza mais de
aplicação geral na atualidade dos fatos, posto que a validade jurídica do
direito civil passou a ser extraída da Constituição positivada, ápice conformado da elaboração e aplicação da legislação cível. Pode-se asseverar
que a Constituição é a fonte disciplinadora das relações privadas, embora se reconheça que o direito civil é mais remoto, sendo importante
abonar a posição constitucional cumeeira no conjunto do ordenamento
jurídico da atualidade. Exagerando um pouco, diz-se que o direito pri143
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa - Sandra Terto Sampaio Rodrigues
vado passou a ser o direito constitucional aplicado, pois nele se concretizam as imposições constitucionais, assim, o espaço da ampla autonomia
da vontade teria sido comprimido para dar lugar à tutela jurídica dos
mais fracos, subtraindo do Código Civil vários ramos autônomos, como
o direito do trabalho, o direito agrário, estatuto da criança e do adolescente, direito do consumidor, entre outros (LÔBO, 1999, p. 100).
Sob as feições do direito civil-constitucional, já não se concebe
mais o contrato como instrumento de imposição desmedida de poder
do credor sobre o devedor, mas como o instituto do qual emergem os
primados da igualdade material, da justiça contratual e da solidariedade, em progressiva ampliação dos direitos fundamentais aplicáveis às
relações privadas. A análise inspirada nos direitos fundamentais busca
conferir tutela jurídica aos economicamente frágeis, que ocupam posição desigual nos pactos negociais, tornando efetiva a função social do
contrato na dimensão fática dos casos concretos. Quanto maior a assimetria entre os contratantes, maior a necessidade de garantir a validade
dos direitos fundamentais, que devem irradiar seus efeitos para toda a
ordem privada, seja nas relações entre particulares, seja em situações
nas quais grandes empresas exercem exclusivamente o seu poderio econômico sobre outros indivíduos da relação negocial.
No entanto, no conjunto dos direitos sociais, é necessário promover o mínimo existencial, de modo a não retirar dos indivíduos sua própria autonomia empreendedora, exigindo-se do Estado um subconjunto de direitos invioláveis, ou condições de liberdade econômica que não
desconsiderem o bem-estar dos menos favorecidos. As necessidades
fundamentais de moradia, educação, saúde e alimentação, direitos de
segunda dimensão, não podem ser repudiadas como de “outra ordem”.
Na verdade, os direitos sociais e de solidariedade se dão no reforço dos
direitos civis e políticos, no conjunto da conhecida estrutura geracional
dos direitos, que remonta a Marshall, Bobbio e outros. Os sujeitos de
direitos são, portanto, pessoas para as quais é facultado o ingresso no
plano do Direito, inseridas em determinada titularidade, que exprime a
aptidão para aquisição de direitos e obrigações, liberdade e igualdade.
Aqui, a liberdade real e a igualdade material são direitos fundamentais
que se complementam na realização da personalidade, condição primária de todos os demais direitos (FACHIN, 2000, p. 94).
144
6 • A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA...
Até o advento do novo Código Civil, especialmente por força da
Constituição, estava positivada à função social da propriedade, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, entre outros institutos pré-existentes ao Código Civil. O legislador pátrio, ao limitar a liberdade de
contratar e impor a função social do contrato mostrou preocupação com
a tutela dos interesses sociais daqueles que se veem cotidianamente contratando; entretanto, o princípio constante do artigo 421, do CCB/2002,
que estabelece “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos
limites da função social do contrato” é controverso, com redação que
parece seguir a linha mais conceitual e menos definitória a respeito do
que seja a função social do contrato, possibilitando o argumento para o
diálogo entre juridicidade e economicidade, que converge para a consecução de valores como a justiça social e a estabilidade jurídica, em meio
às transformações sociais (MANCEBO, 2005, p. 19).
Exigir a função social do contrato é também demandar que os
fundamentos da justiça social, valores sociais do trabalho, defesa do
consumidor, livre concorrência, entre outros encontrados ou respaldados no texto constitucional, sejam atendidos nas relações entre os particulares. Trata-se de preceito de ordem pública, que encontra fundamento constitucional no princípio da função social lato sensu (artigos 5º,
XXII e XXIII, e 170, III), bem como no postulado maior de proteção da
dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), na busca da construção social justa e solidária (artigo 3º, I) e na isonomia (artigo 5º, caput). Tudo
em consonância com a nova concepção do direito privado, no plano civil-constitucional, que deve guiar a interpretação da legislação civilista
(TARTUCE, 2005, p. 315).
A função social do contrato tem a finalidade de evitar a imposição de cláusulas onerosas e danosas aos contratantes economicamente mais fracos. Abrange a proteção da vulnerabilidade contratual, que
muitas vezes não manifesta sua vontade livremente, por ser obrigada a
ceder lugar ao mais forte no jogo de forças que compõe o contrato, nas
relações de mercado. A função social do contrato consiste em regular
previamente as relações contratuais, mirando na justiça social, revelando-se também como norma programática, para que os pactos econômicos estejam em harmonia com os demais princípios sociais e econômicos da Constituição. Por outro lado, para equilibrar a vontade contratual
das partes, em atendimento ao objetivo de justiça distributiva do Estado
145
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa - Sandra Terto Sampaio Rodrigues
Social e os poderes econômicos do capitalismo, fundados essencialmente no individualismo e na livre iniciativa, é preciso aceitar que o contrato
não representa o espaço dos contratantes, mas da sociedade (ou mesmo
da comunidade), no qual devem prevalecer os interesses coletivos e o
bem comum. Essa linha de raciocínio acabou por embasar um posicionamento jurisprudencial favorável à constante revisão judicial dos
pactos, com interferência estatal no acordo estabelecido entre as partes,
em favor do contratante menos favorecido, declarado hipossuficiente na
relação (TIMM, 2006b, p. 16).
Pela aplicação dos princípios constitucionais fundamentais, os
deveres de conduta passam a ser princípios normativos na relação jurídica obrigacional, implicando em deveres não somente para o devedor,
mas também para o credor. São empenhos autônomos em relação ao
vínculo obrigacional, por antecederem sua formação, e de caráter geral,
limitadores para ambos os contratantes. O princípio da boa-fé objetiva,
como exemplo de dever de conduta e princípio que visa a fortalecer a
confiança entre os contratantes, recomenda que as partes desempenhem
seu papel no contrato de modo honesto, leal e correto, evitando causar
danos ao outro, e evidenciando as circunstâncias relevantes para a negociação (dever de informação). Este último destina-se a assegurar, desde
as primeiras tratativas até a fase do encerramento do negócio, que sejam
disponibilizados ao contratante todos os elementos de cognição necessários e suficientes para a concretização do objeto do contrato, pautando
o comportamento das partes nesse sentido, como desdobramento do
que prevê o artigo 422, do CCB/2002.
A função social dos contratos, por sua vez, exprime o comando
de exercício dos negócios individuais em harmonia com os interesses
sociais, sem retirar autonomia contratual, mas reduzindo seu alcance quando presente a necessidade de proteção à dignidade da pessoa
humana. Embora os interesses que convergem no contrato sejam de
caráter individual, o lugar de sua execução é sempre o âmbito social,
havendo efeitos diretos na sociedade, que vão além do mero princípio
clássico da relatividade dos efeitos dos contratos que protegia apenas
o terceiro prejudicado. A função social é a extensão da boa-fé exigida
dos contratantes, porque se a deslealdade contratual afetasse apenas um
dos contratantes estar-se-ia diante do abuso interindividual, adstrito ao
campo da boa-fé objetiva, que legitima apenas a buscar a tutela jurídica
146
6 • A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA...
do Estado; assim, a realização da função social do contrato é mais ampla e “prescreve compromissos em prol da comunidade, não somente
impondo limites, mas à vezes restringindo a própria possibilidade de
contratar” (EHRHARDT JR., 2005, p. 59).
O Código Civil prevê no artigo 2.035, parágrafo único, que “nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para garantir a função
social da propriedade e dos contratos”. A função social não é uma das
obrigações geradas pelo contrato, mas algo que deve ser considerado
antes da formação do contrato, revelando-se fato anterior à contratação,
que as partes devem observar antes da formação do negócio jurídico
(EHRHARDT JR., 2005, p. 111).
No Brasil, a teoria dos contratos necessita da interpretação sistêmica dos princípios tradicionais e daqueles introduzidos em razão
dos valores erigidos pela Constituição Federal e pelo novo Código Civil, sem que haja primazia de um grupo de princípios sobre o outro.
A perspectiva liberal, lastreada na liberdade formal, desconsiderava o
compromisso social dos contratados, crendo justo um pacto realizado
entre desiguais pela simples razão de terem exercido sua autonomia da
vontade, ainda que desconsiderassem valores como probidade, lealdade
e cooperação. Atualmente, é necessária a aplicação conjunta de postulados antigos e novos, de modo a não se descaracterizar a autonomia da
vontade - o pacta sunt servanda, tampouco a relatividade dos efeitos dos
contratos, mas resguardando, ao mesmo tempo, os princípios sociais da
contratação, alcançando-se novo patamar contratual.
Nesse contexto, cabe ao Estado intervir para controlar a economia, de modo a permitir que a coletividade participe da geração de
riquezas e da consequente distribuição de lucros. Possibilitar que empreendedores de todos os portes participem da economia e dar condições especiais para que aqueles de menor poderio econômico o façam
em situação de igualdade com os demais é consolidar a valorização do
trabalho humano e a existência digna, em contexto de justiça social, mas
é também manter o equilíbrio da economia de mercado. Certamente,
a função social deve estar em consonância com os demais princípios
constitucionais, de maneira a alcançar, pelo equilíbrio geral entre os
fundamentos, a melhor justiça contratual e melhores condições de vida,
de produção e de consumo, embora se reconheça que assim o conceito
147
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa - Sandra Terto Sampaio Rodrigues
de direito pode chegar mais próximo do conceito de justiça (SANTOS,
2003, p. 108).
Na área rural, onde os índices sociais apontam a necessidade de
efetiva presença estatal, a aplicação desses princípios depende ainda
mais da atuação do Estado, especialmente no domínio da produção,
como forma de redenção da pobreza campesina. Em uma economia de
mercado, como a brasileira, a produção é o meio eficaz para o alcance
dos resultados lucrativos que o capitalismo requer e o capital passa a
ser elemento essencial para o investimento na produção e o consequente lucro. Ocorre, entretanto, que em grande parte dos casos, os que se
dispõem a produzir não possuem recursos financeiros necessários ao
incremento de suas atividades produtivas, necessitando de capital externo. Assim, dessa necessidade surgiu o crédito, como propulsor da
circulação de riquezas, fornecido pelos bancos, instituições capitalistas
detentoras do dinheiro que exercem o papel de fornecedores de capital.
De posse da pecúnia, o produtor ou empreendedor garante a aquisição
dos demais insumos que a atividade econômica requer e a produção
acontece, gerando riquezas que necessitarão de mais capital para se expandirem, de modo que o crédito está inserido nesse ciclo de crescimento econômico.
As instituições financeiras não se destinam a criar, mas a tornar
possível a circulação e a acumulação de riquezas. O crédito é a transferência temporal de poder aquisitivo em troca da promessa de reembolso, acrescido de seus encargos, em prazo determinado e na unidade
monetária convencionada (REBOUÇAS FILHO, 2005, p. 10). Os valores depositados pelos investidores são transformados em recursos de
giro à disposição do banco para aplicação nos seus diversos produtos
creditícios, mediante remuneração a ser granjeada de seus clientes. As
atividades bancárias recebem normatização do Conselho Monetário
Nacional - CMN e fiscalização do Banco Central do Brasil – BACEN e
resultam num leque variado de operações, como concessão de empréstimos, depósito, conta corrente, desconto de títulos, abertura de crédito, entre outras. Todos os produtos bancários postos à disposição de
seus potenciais clientes visam o lucro, finalidade econômica precípua do
banco (ABRÃO, 2008, passim).
Economicamente, a prestação de serviços creditícios deriva em
proveito para o banco e para o cliente, de modo que no plano dos inte148
6 • A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA...
resses particulares nenhum indivíduo ou empresa pode renunciar aos
serviços bancários para efetuar pagamentos ou obter créditos. Assim, a
importância da atividade bancária é tal que o Estado precisou assegurar seu controle e direção, tornando-se ele próprio banqueiro (ABRÃO,
2008, p. 9, 55). O crédito tornou-se instrumento para concretização de
objetivos de política econômica e, na área rural, essa iniciativa tem papel
ainda mais relevante, uma vez que o Sistema Nacional de Crédito Rural
foi criado para propiciar ao setor produtivo rural ambiente econômico
favorável, garantindo ao setor primário condições de produção suficientes para o abastecimento do mercado interno e exportação de excedentes (WILDMANN, 2001, p. 6).
O modelo de política de crédito adotado anteriormente pelo Sistema Nacional de Crédito Rural apresentava defeitos. Podem ser apontados: a) a intervenção excessiva do Estado, com taxas de juros subsidiadas; b) a crença de que as comunidades rurais de minifúndios eram
demasiado pobres para poupar ou para se inserir nos programas de financiamento rural, com inclusão bancária; c) o sistema antigo deixava de
lado os mini e pequenos empreendimentos rurais, acreditando que estes
estariam em processo de extinção; d) os gastos públicos e financiamentos
se concentravam no latifúndio e nas médias e grandes empresas rurais,
entre outros. Durante aqueles anos, aconteceram profundas mudanças
na forma de atuação do Governo no crédito rural, assim, a realidade imposta pela necessidade de controle dos gastos públicos, em decorrência
da política fiscal, e o esforço de modernização do Estado foram determinantes para que se fizessem alterações substanciais no padrão de atuação
governamental (GASQUES; CONCEIÇÃO, 2001, p. 100).
2. O agricultor familiar e o programa nacional de
fortalecimento da agricultura familiar (PRONAF)
A agricultura se revestiu de notória importância no texto constitucional de 1988, em harmonia com os princípios da valorização do
trabalho humano, livre iniciativa, existência digna e outros, sob os ditames da justiça social. Desse modo, a política agrícola apresentada pelo
constituinte se ocupa em definir seus objetivos no artigo 187, de modo
que não poderá ser traçada senão sob a influência objetiva das regras
prescritas na Constituição Federal, no conjunto dos princípios que
disciplinam a atividade econômica em geral. A ampla influência que a
149
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa - Sandra Terto Sampaio Rodrigues
agricultura exerce nos ambientes econômico e social disputa a preocupação do legislador constituinte que lhe instituiu objetivos, pensados
para fomentar a agricultura de todos os portes; assim, a valorização da
atividade agrícola e a intervenção estatal nas suas relações particulares manifestam o reconhecimento de que sem os produtos gerados pelo
campesinato a ordem social entraria em colapso. É neste âmbito que a
influência do Estado se torna imprescindível.
Na Constituição brasileira, o capítulo específico da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária (artigos 184 a 191) dedica-se a
disciplinar a reforma agrária, a ser efetivada por meio da desapropriação
estatal de terras em atendimento ao interesse social, isentas as pequenas
e médias propriedades produtivas cujos proprietários não possuam outro imóvel. A Constituição também define como se dá a titulação dos
beneficiários de reforma agrária, a aquisição por usucapião e o aproveitamento de terras devolutas. Ao prescrever o cumprimento da função
social da propriedade rural, a Constituição prevê o aproveitamento racional e adequado; a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente; a observância das disposições
que regulam as relações de trabalho; a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (artigo 186, incisos I a IV).
Ante o alcance social do problema, a Constituição incentiva a
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios a se valerem de
instrumentos para fomentar o incremento do campo, por meio da política de crédito, incentivos fiscais, preços, condições de armazenagem
etc. O texto constitucional determina que a política agrícola seja planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de
produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, os setores de
comercialização, armazenamento e transportes, levando em conta especialmente os seguintes aspectos: a) instrumentos creditícios e fiscais; b)
preços compatíveis com os custos de produção e a garantia de comercialização; c) incentivo à pesquisa e à tecnologia; d) assistência técnica
e extensão rural; e) seguro agrícola; f) cooperativismo; g) eletrificação
rural e irrigação; h) habitação para o trabalhador rural (artigo 187, incisos I a VIII). A Constituição recomenda ainda que sejam incluídas
no planejamento agrícola as atividades agroindustriais, agropecuárias,
pesqueiras e florestais, e que as ações de política agrícola e de reforma
agrária sejam compatibilizadas.
150
6 • A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA...
No entanto, o cenário concebido na Constituição Federal dista
um pouco da tradição rural brasileira, que precisa ser questionada principalmente em razão de suas bases alicerçadas no latifúndio. Estudos
mostram que as unidades de agricultura familiar, comparativamente às
grandes propriedades rurais, asseguram uma melhor viabilidade econômica e uma maior preservação dos recursos naturais, atendendo mais
adequadamente aos interesses do país. A agricultura familiar brasileira
compreende variações culturais, sociais e econômicas, que vão do campesinato tradicional até a pequena produção modernizada, havendo diversidade também com relação ao seu meio ambiente, à situação dos
produtores, à aptidão das terras, disposição de infraestrutura, entre outros fatores. Trata-se de um setor da economia que abrange cerca de 4,3
milhões de estabelecimentos rurais no país, enquanto os estabelecimentos patronais representam apenas 807,3 mil, segundo dados do Censo
Agropecuário do IBGE, em 2006 (FRANÇA et al., 2012, p. 20).
2.1. Delimitação do conceito de agricultor familiar
Apesar de sua grande diversidade, o segmento da agricultura familiar apresenta características próprias, uma vez que a produção agrícola está condicionada às necessidades do grupo familiar, à pequena
propriedade, à força de trabalho familiar ou comunitário, entre outras
peculiaridades. Equivocadamente, o segmento acaba sendo confundido
com a pequena produção, mas são coisas distintas, cabendo observar
que a agricultura familiar não possui perfil homogêneo e não se encontra distribuída igualmente pelo país. Neste universo, encontram-se
tanto os agricultores economicamente integrados (a redes de distribuição, a agroindústrias, ao setor exportador, por exemplo) e que tiveram
acesso a novos padrões tecnológicos, como aqueles com baixo nível de
integração que produzem para o autoconsumo (CORRÊA; SILVA, 2007,
p. 49). Por tais características, os agricultores familiares devem receber
do Estado incentivos especiais, de modo a inseri-los na produção agrícola, gerando renda além da mera subsistência, assegurando-lhes preço
e mercado consumidor.
No Brasil, a partir dos anos noventa do século passado, ações
governamentais positivas foram sendo direcionadas para uma melhor
estruturação da agricultura familiar. Todavia, foi somente em 25 de julho de 2006, por intermédio da Lei nº 11.326, que o setor pôde contar
151
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa - Sandra Terto Sampaio Rodrigues
com regulamentação própria, que estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos
Familiares Rurais, disciplinando conceitos, princípios e instrumentos
destinados à formulação das políticas públicas direcionadas ao segmento e aproximando a agricultura familiar da política agrícola prevista na
Constituição Federal. Ficou conhecida como “Lei da Agricultura Familiar” e seu artigo 3º define agricultor familiar e empreendedor familiar
rural como aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos:
I - não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos
fiscais;
II - utilize predominantemente mão de obra da própria família nas
atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento;
III - tenha percentual mínimo da renda familiar originada de atividades
econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento, na forma
definida pelo Poder Executivo;
IV - dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família.
O parágrafo 2º, do artigo 3º, considera também como beneficiários da
Lei da Agricultura Familiar os seguintes produtores:
I - silvicultores que atendam simultaneamente a todos os requisitos de
que trata o caput deste artigo, cultivem florestas nativas ou exóticas e
que promovam o manejo sustentável daqueles ambientes;
II - aquicultores que atendam simultaneamente a todos os requisitos
de que trata o caput deste artigo e explorem reservatórios hídricos
com superfície total de até 2 ha (dois hectares) ou ocupem até 500m³
(quinhentos metros cúbicos) de água, quando a exploração se efetivar
em tanques-rede;
III - extrativistas que atendam simultaneamente aos requisitos previstos
nos incisos II, III e IV do caput deste artigo e exerçam essa atividade
artesanalmente no meio rural, excluídos os garimpeiros e faiscadores;
IV - pescadores que atendam simultaneamente aos requisitos previstos
nos incisos I, II, III e IV do caput deste artigo e exerçam a atividade
pesqueira artesanalmente.
V - povos indígenas que atendam simultaneamente aos requisitos
previstos nos incisos II, III e IV do caput do art. 3º;
VI - integrantes de comunidades remanescentes de quilombos rurais e
demais povos e comunidades tradicionais que atendam simultaneamente
aos incisos II, III e IV do caput do art. 3º.
152
6 • A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA...
A Lei prescreve também os princípios da política para o segmento. Elenca a descentralização; sustentabilidade ambiental, social e econômica; equidade na aplicação das políticas, respeitando os aspectos de
gênero, geração e etnia; participação dos agricultores familiares na formulação e implementação da política nacional da agricultura familiar e
empreendimentos familiares rurais. Para atingir esses objetivos, a Política Nacional deve promover o planejamento e a execução das ações,
de modo a compatibilizar as seguintes áreas: crédito e fundo de aval;
infraestrutura e serviços; assistência técnica e extensão rural; pesquisa;
comercialização; seguro; habitação; legislação sanitária, previdenciária,
comercial e tributária; cooperativismo e associativismo; educação, capacitação e profissionalização; negócios e serviços rurais não agrícolas;
agroindustrialização (artigos 4º e 5º).
Cabe ressaltar que grande parte das ações citadas necessita de
regulamentação por parte do Poder Executivo, a quem pertence à responsabilidade de implementar a Política Nacional, por meio do MDA,
em conjunto com diversas entidades parceiras, como bancos, entidades
de assistência técnica, secretarias de agricultura estaduais e municipais,
sindicatos rurais, entre outros. Por força da legislação, a agricultura familiar passa a ser conjunto plural formado pela pequena e média propriedade, assentamentos de reforma agrária e comunidades tradicionais
(extrativistas, pescadores, quilombolas etc.). Para se conhecer melhor
esse complexo público de produtores, o Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE precisou se adequar
e criar parâmetros apropriados para mensurar o tipo de produção e o
perfil da agricultura familiar brasileira.
A despeito do esvaziamento demográfico nas zonas rurais, a agricultura familiar tem contribuído positivamente para a produção de alimentos agrícolas que fazem parte da base do consumo no Brasil: 87%
da mandioca, 70% do feijão, 46% do milho, 34% do arroz e 38% do
café. Além de ter também significativa participação na pecuária: 58%
do leite, 50% das aves, 59% dos suínos e 30% dos bovinos. Os Censos Agropecuários de 1995/1996 e 2006 revelaram que naqueles anos
a participação dos produtos agroalimentares5 no total das exportações
5 Produtos agroalimentares são produtos agropecuários de origem animal ou vegetal, cujo fim
seja a alimentação humana. A lista é estipulada pelo Sistema Harmonizado de Designação e
Codificação de Mercadorias (SH), utilizado pela Secretaria Geral da Associação Latino Americana
153
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa - Sandra Terto Sampaio Rodrigues
brasileiras manteve-se estável, passando de 28,7% em 1995 para 26,8%
em 2006, enquanto as importações destes produtos caíram de 12,5% do
total importado em 1995 para 4,9% em 2006. Levando-se em conta que
a produção da agricultura familiar é direcionada essencialmente para o
suprimento do mercado interno, percebe-se, por esses dados, que o segmento teve destaque no saldo positivo da balança comercial, pois ainda
que sua produção não seja exportada, a desnecessidade de importações
contribuiu para a elevação do superávit (FRANÇA et al., 2012, p. 15 e
26), restando clara a importância da agricultura familiar para a geração
de riquezas e a produção de alimentos no Brasil.
Nos dados coletados pelo Censo Agropecuário de 2006 foram
identificados 4.367.902 estabelecimentos rurais de mão de obra familiar,
o que representa 84,4% de todos os estabelecimentos rurais do Brasil.
Apesar do grande número de estabelecimentos, a agricultura familiar
ocupa apenas 24,3% da área produtiva das zonas rurais, concluindose que o minifúndio e a pequena propriedade ainda são características
marcantes desse tipo de produção, assim, os empreendimentos rurais
não familiares, apesar de ocuparem 75,7% da área, representam apenas
15,6% do total de estabelecimentos. O Censo revelou que a área média
dos estabelecimentos familiares é de 18,37 hectares, enquanto que a dos
não familiares é de 309,18 hectares (FRANÇA et al., 2012, p. 20).
A área média dos estabelecimentos familiares varia de um mínimo de 13 hectares na Região Nordeste e um máximo de 43,3 hectares na Região Centro-Oeste. As menores áreas médias estão localizadas entre os estabelecimentos familiares do Distrito Federal (6,0 ha) e
Alagoas (6,1 ha), enquanto as maiores áreas médias foram encontradas
em Roraima (71,6 ha) e Tocantins (62,8 ha). A variação das áreas dos
estabelecimentos não familiares foi de um mínimo de 177,2 hectares
no Nordeste e 944,3 hectares no Centro-Oeste. As unidades federativas
com as maiores áreas médias foram o Mato Grosso (1.600,9 ha), Mato
Grosso do Sul (1.215 ha) e Amapá (1.119 ha). Em 1995/1996 o estudo
FAO/INCRA identificou 4.139.369 estabelecimentos familiares, ocupando 107.798.450 hectares no Brasil; em 2006, o Censo Agropecuário
do IBGE apontou a existência de 4.551.937 estabelecimentos, em uma
área de 106.761.753. Percebe-se, portanto, o aparecimento de 412.598
de Integração (ALADI) e utilizada pelo Brasil nas relações com o Mercosul e com os demais países
da América Latina.
154
6 • A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA...
novas unidades de produção, cerca de 10% a mais que no levantamento
anterior, no entanto, a área ocupada diminuiu cerca de 1% (1.006.697
ha) no período (FRANÇA et al., 2012, p. 21).
Da análise desses dados apreende-se que a agricultura familiar
é um segmento relevante no contexto rural brasileiro e que, a despeito
da má distribuição de terras e da falta de infraestrutura no campo, os
agricultores familiares têm importante participação na produção de alimentos do país. Torna-se, portanto, necessária e urgente a implementação de políticas públicas que garantam o fortalecimento desse segmento, promovendo-lhes o acesso a insumos e tecnologias apropriadas ao
perfil produtivo do agricultor familiar, assim como a proteção de abusos
do mercado em concorrência com os grandes empresários rurais, de
modo a assegurar desenvolvimento nacional plural e equilibrado, com
inclusão social.
2.2. O programa nacional de fortalecimento da
agricultura - PRONAF
Até o início dos anos noventa do século XX, a agricultura familiar jamais havia ocupado lugar de destaque na agenda governamental brasileira. Não havia políticas dirigidas a esse público, muito menos
programas de financiamento apropriados às atividades rurais executadas com mão de obra familiar, deixando o segmento historicamente à
margem do aporte de recursos do Sistema Nacional de Crédito Rural
- SNCR, criado pela Lei nº 4.829, de 1965. Estatísticas apresentadas pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA mostram que a pobreza no meio rural está intimamente ligada à fragilidade da produção
agrícola familiar e à concentração fundiária, fato que recomenda ao Estado a necessidade da adoção de políticas para o enfrentamento desses
problemas (GASQUES; CONCEIÇÃO, 2001, p. 142). Para um Estado
cuja Constituição determina os limites das atividades econômicas, a
agricultura familiar não poderia deixar de ser inserida entre as formas
sociais do capitalismo.
Nos países desenvolvidos, parte expressiva dos subsídios à agricultura tem como objetivo sustentar a agricultura familiar, manter as
ocupações rurais e impedir o aumento dos fluxos migratórios para as
cidades. No Brasil, os apoios governamentais que existiam até o início
155
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa - Sandra Terto Sampaio Rodrigues
da década de noventa eram centrados no latifúndio e nas empresas rurais, com incentivos fiscais abundantes; no crédito volumoso e altamente subsidiado; na doação de terras; na criação de infraestrutura pelos
governos; na pesquisa agropecuária e assistência técnica pública e de
qualidade; na produção com mercado e preço garantidos; nos subsídios
à exportação, entre outras ações de promoção e proteção. A agricultura
familiar nunca alcançou tais privilégios, daí o motivo de se encontrar
em situação desvantajosa (FERREIRA et al., 2001, p. 484).
Durante o processo de modernização da agricultura brasileira, as
políticas públicas para a área rural, em especial a política agrícola, privilegiam os setores mais capitalizados e a esfera produtiva das commodities
voltadas ao mercado internacional, com o objetivo de fazer frente aos
desequilíbrios da balança comercial do país. Para o setor da produção familiar, o resultado dessas políticas foi flagrantemente negativo, uma vez
que grande parte desse segmento ficou à margem dos benefícios oferecidos pela política agrícola, sobretudo nos itens relativos ao crédito rural,
preços mínimos e seguro da produção (MATTEI, 2007, p. 144).
Sentiu-se a imperiosa necessidade de criação de uma política rural específica para a agricultura familiar. A pressão de movimentos sociais rurais e o reconhecimento por parte dos setores governamentais de
que a agricultura familiar necessitava de atenção especial e de que o seu
fortalecimento era estratégico para a criação de novas atividades econômicas geradoras de ocupações produtivas e de renda, especialmente em
municípios menos populosos, provocaram alterações no conceito adotado até então. Assim, a década de noventa foi marcada pelas conquistas dessa classe de produtores, realizadas pelos sindicatos de trabalhadores rurais ligados à Confederação Nacional de Trabalhadores Rurais
– CONTAG e à Central Única dos Trabalhadores - CUT. As reivindicações dos produtores, que já haviam começado desde a Constituição
de 1988, tomaram corpo nas “Jornadas Nacionais de Luta”, que a partir
de 1995 passaram a se chamar “Grito da Terra Brasil”, movimento que
existe até hoje, anualmente, ao final de cada Plano Safra6, no objetivo de
6 Plano Safra: série de iniciativas e programas governamentais voltados para a produção
agropecuária brasileira. O Plano contém o volume de recursos que serão destinados ao setor
rural, assim como as ações que serão empreendidas para que a safra tenha sucesso. É lançado
anualmente, geralmente no mês de junho, pelo Presidente da República e Ministros da Agricultura
e do Desenvolvimento Agrário. O que é determinado no Plano Safra entra em vigor em 01/07 de
cada ano, com vigência até 30/06 do ano seguinte.
156
6 • A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA...
demandar o aprimoramento das políticas direcionadas aos agricultores
familiares, entre outras reivindicações (CORRÊA; SILVA, 2007, p. 50).
Na verdade, o início da mudança se deu a partir de 1994, quando
o Governo Itamar Franco criou o Programa de Valorização da Pequena
Produção Rural – PROVAP, que tinha como objetivo destinar volume de
crédito com taxas mais acessíveis aos agricultores familiares. Em 1995,
no Governo de Fernando Henrique Cardoso, o PROVAP foi totalmente
reformulado, dando origem ao Programa Nacional de Fortalecimento
da Agricultura Familiar – PRONAF.
2.2.1. Origem do PRONAF
O PRONAF foi criado em 28 de junho de 1996, por meio do Decreto nº 1.946, atendendo a antiga reivindicação da organização dos
trabalhadores rurais, que invocavam a necessidade de implementação
de políticas de desenvolvimento rurais específicas para o segmento numericamente mais importante, porém mais fragilizado da agricultura
brasileira, tanto em termos de capacitação técnica, como da inserção de
mercados. Nessa seara, os sindicatos rurais e demais movimentos sociais tiveram significativa importância, desempenhando papel decisivo
na implantação do programa, que favoreceu não somente a abertura da
política, mas especialmente a conquista de outra bandeira histórica dos
trabalhadores rurais, qual seja, o acesso, por parte dos agricultores familiares, aos diversos serviços oferecidos pelo sistema financeiro nacional
(MATTEI, 2007, p. 144).
A instituição do PRONAF surgiu pela constatação de que parcela considerável de produtores rurais poderia ficar excluída dos novos
mecanismos de financiamento que naquele momento estavam sendo
criados. Por isso, na sua formalização, o Programa buscou instituir uma
parceria entre seus possíveis beneficiários, concebendo os Conselhos
Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentável como requisito para
que as comunidades rurais se organizassem para receberem os benefícios do programa. Esses conselhos são formados por representantes
da sociedade civil e entes governamentais, especialmente de entidades
ligadas ao meio rural, como associações, secretarias de agriculturas,
empresas de assistência técnica, entre outros. Trata-se de uma espécie
de participação social que nos últimos anos tem sido incentivada pelo
157
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa - Sandra Terto Sampaio Rodrigues
governo federal na implementação de políticas e ações setoriais (FERREIRA et al., 2001, p. 482).
Desde que foi concebido, o programa tem se firmado como a
principal política pública do Governo Federal para os agricultores familiares. Em 1999, com a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA, o programa deixou de ser administrado pelo Ministério da
Agricultura e passou a ser preceituado pelo primeiro, com destinação de
secretarias e órgãos específicos para o segmento da agricultura familiar.
Desde 1996, a cada ano, ao término do Plano Safra (meses de junho e
julho), o programa recebe novos aportes de recursos, a partir das diversas fontes utilizadas pelos bancos oficiais, tais como a Secretaria do
Tesouro Nacional - STN, Fundos Constitucionais e o Fundo de Amparo
ao Trabalhador – FAT, além de também receber modificações em sua legislação, positivadas no capítulo 10, do Manual de Crédito Rural - MCR
do BACEN, que em geral representam o resultado das reivindicações
da classe, por meio do Grito da Terra Brasil e outros movimentos dos
trabalhadores. Pode-se dizer que o PRONAF é uma política pública e
ainda está em construção, ou uma utopia, no bom sentido do termo,
que necessita de modificações constantes até atingir os seus objetivos
globais (MATTEI, 2007, p. 146).
2.2.2. Operacionalização do Programa
O MDA é o órgão integrante da administração direta responsável
pela administração e acompanhamento do PRONAF. Tem como áreas
de competência: a reforma agrária; a promoção do desenvolvimento
sustentável do segmento rural constituído pelos agricultores familiares;
a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação
das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos. São também atribuição do MDA, em caráter extraordinário,
as competências relativas à regularização fundiária na Amazônia Legal,
conforme o Decreto 7.255, de 04 de agosto de 2010. Os órgãos do MDA
respondem pela promoção da agricultura familiar brasileira, com ampla
atuação junto às entidades que fazem o Sistema Nacional de Crédito
Rural, os produtores e suas organizações. São do MDA as regras para
operacionalização do PRONAF, assim como as linhas de crédito e iniciativas que apoiam o crédito.
158
6 • A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA...
O PRONAF financia projetos individuais ou coletivos, que possam gerar renda aos agricultores familiares e assentados da reforma
agrária. O programa possui as mais baixas taxas de juros dos financiamentos rurais e as menores taxas de inadimplência entre os sistemas de
crédito do país. Pretendendo que o crédito possa beneficiar a unidade
familiar integralmente e o empreendimento rural como um todo, assim, a contratação do financiamento deve ser fruto da decisão coletiva
dos membros da família. Embora na prática isso não possa ser exigido
objetivamente, a prévia discussão familiar tem importância para que a
família identifique suas necessidades de crédito e em quais finalidades
ele será empregado (se custeio ou investimento, por exemplo); atividade
pecuária ou agrícola; compra de máquinas e equipamentos ou plantio
de culturas; entre outras questões.
Os créditos de custeio financiam atividades agropecuárias e não
agropecuárias, de beneficiamento ou de industrialização da produção
(própria ou de terceiros), enquadrados no PRONAF, de acordo com projetos específicos ou propostas de financiamento. Os créditos de investimento se destinam a financiar atividades agropecuárias ou não agropecuárias, para implantação, ampliação ou modernização da estrutura de
produção, beneficiamento, industrialização e de serviços, no estabelecimento rural ou em áreas comunitárias rurais próximas, de acordo com
projetos específicos. Os créditos para integralização de cotas-partes têm
por objetivo o financiamento da capitalização de cooperativas de produção agropecuárias formadas por beneficiários do PRONAF.
Após a decisão do que financiar, a família deve procurar uma
entidade autorizada pelo MDA para emissão da Declaração de Aptidão ao PRONAF (DAP). Em grande parte dos municípios brasileiros,
a emissão de DAP é realizada pelo sindicato rural (Sindicato dos Trabalhadores Rurais) ou pela empresa oficial de assistência técnica (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural – EMATER). No caso
de assentados da reforma agrária que obtiveram a parcela de terra pelo
processo de desapropriação estatal, o documento é emitido pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária - INCRA. Para os assentados
que adquiriram a terra por meio do financiamento direto do Crédito
Fundiário, a entidade responsável pela emissão da DAP é a Unidade
Técnica Estadual - UTE.
159
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa - Sandra Terto Sampaio Rodrigues
A DAP é emitida levando em conta a renda anual, as atividades
exploradas, a área de terra disponível e a mão de obra utilizada, parâmetros exigidos pela Lei nº 11.326/2006 (Lei da Agricultura Familiar).
Possuindo os requisitos exigidos pela lei, a família é enquadrada na agricultura familiar e a DAP passa a ser o documento que legitima o acesso
aos vários programas de apoio ao segmento. Quando se trata de assentados de reforma agrária, a DAP é emitida pelo INCRA ou pela Unidade
Técnica Estadual - UTE7.
Os requisitos para que o agricultor familiar possa receber a DAP
estão assim determinados no Manual de Crédito Rural - MCR do BACEN: a) que explorem parcela de terra na condição de proprietário, posseiro, arrendatário, parceiro, concessionário do Programa Nacional de
Reforma Agrária (PNRA), ou permissionário de áreas públicas; b) residam no estabelecimento ou em local próximo, considerando as características geográficas regionais; c) não detenham, a qualquer título, área
superior a 4 (quatro) módulos fiscais, contíguos ou não, quantificados
conforme a legislação em vigor; d) que no mínimo, 50% da renda bruta
familiar sejam originadas da exploração agropecuária e não agropecuária do estabelecimento; e) tenham o trabalho familiar como predominante na exploração do estabelecimento, utilizando apenas, eventualmente, o trabalho de terceiros, de acordo com as exigências sazonais da
atividade agropecuária, podendo manter até 2 (dois) empregados permanentes; f) tenham obtido renda bruta familiar nos últimos 12 (doze)
meses que antecedem a solicitação da DAP, de até R$160.000,00 (cento e
sessenta mil reais), incluída a renda proveniente de atividades desenvolvidas no estabelecimento e fora dele, por qualquer componente familiar,
calculado na forma definida, excluídos os benefícios sociais e os proventos previdenciários decorrentes de atividades rurais. O MCR prescreve
como deve ser calculada a renda bruta do produtor para fins de emissão
de DAP levando em conta as atividades desenvolvidas pela família. Há
atividades nas quais não é utilizada a renda integral, mas apenas parte
dela, a exemplo das atividades de suinocultura e avicultura.
O titular das operações de crédito da unidade familiar, no nome
de quem será contratado o financiamento, pode ser qualquer membro
7 A Unidade Técnica Estadual (UTE) funciona em cada Estado da Federação dentro de algum
órgão da Administração, geralmente uma unidade responsável pela administração das terras
públicas estaduais e pelos processos de assentamento de famílias e colonização de áreas.
160
6 • A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA...
da família, desde que maior de 18 anos. Em geral, essa função é exercida pelo marido ou pela mulher, embora o PRONAF financie também as
unidades familiares de um só indivíduo. A entidade emitente da DAP
registrará os dados da família no sítio do MDA, em portal específico,
após comprovar que a unidade possui os requisitos previstos na Lei nº
11.326/2006 (Lei da Agricultura Familiar). A DAP é emitida no nome
de até dois titulares que representarão a família (normalmente o casal
de cônjuges ou companheiros), enquadrando-os em um dos Grupos
do PRONAF.
De posse da DAP, o próximo passo é a elaboração do projeto técnico que designará a finalidade dos recursos creditícios. Nessa etapa,
a família precisa receber orientação técnica de profissional habilitado,
geralmente técnico agrícola, engenheiro agrônomo ou zootecnista, que
elaborará o projeto respeitando as condições climáticas locais e a necessidade do mercado. Informando o que deseja financiar, as necessidades do estabelecimento rural e as atividades já desenvolvidas, o técnico
elaborará o projeto técnico que posteriormente será encaminhado para
apreciação e aprovação do agente financeiro. Normalmente, os próprios
bancos disponibilizam para os técnicos as orientações necessárias e programas em meio informático no qual podem ser elaborados os projetos,
de modo a facilitar a análise e a admissão da proposta.
As condições de acesso ao crédito, formas de pagamento e taxas
de juros correspondentes a cada linha são definidas, anualmente, a cada
Plano Safra da Agricultura Familiar, divulgado entre os meses de junho
e julho. A instituição financeira deve dar preferência ao atendimento
das propostas que: a) objetivem o financiamento da produção agroecológica ou de empreendimentos que promovam a remoção ou redução
da emissão dos gases de efeito estufa; b) sejam destinadas a beneficiárias
do sexo feminino. Os financiamentos podem ser concedidos de forma
individual ou coletiva.
Cada grupo do PRONAF possui taxa de juros, limites de financiamento, condições de acesso e pagamento designados pelo MCR do
BACEN, parâmetros anualmente definidos e divulgados no Plano Safra. Percebe-se que a negociação do agricultor familiar com a instituição financeira é limitada, visto que a quase totalidade do conteúdo das
cláusulas contratuais são de mera adesão, sem grande possibilidade de
mudança por parte do agricultor, embora as condições contratuais de161
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa - Sandra Terto Sampaio Rodrigues
terminadas no MCR sejam em grande medida benéficas para o agricultor familiar, especialmente para aqueles enquadrados nos Grupos “A”,
“A/C” e “B”, para quem são concedidas taxas de juros fixas entre 0,5% e
4,0% ao ano, bônus de adimplência entre 25% e 40% de desconto sobre
as parcelas pagas em dia nas operações de investimento, não havendo
exigência de qualquer garantia em contrapartida ao crédito.
O crédito PRONAF é operacionalizado pelos agentes financeiros
que compõem o Sistema Nacional de Crédito Rural - SNCR, tendo como
instituições básicas o Banco do Brasil, o Banco do Nordeste e o Banco da
Amazônia, e vinculadas ao Banco Nacional de Desenvolvimento - BNDES, a Cooperativa Habitacional dos Bancos - BANCOOB, ao Banco
Cooperativo - BASINCREDI do Sistema de Crédito Cooperativo Brasileiro - SINCREDI e associados à Federação Brasileira de Bancos - FEBRABAN. Para os bancos que administram os Fundos Constitucionais,
a saber, o Banco da Amazônia e o Banco do Nordeste, há metas anuais
de aplicação de crédito no PRONAF, estipulado um percentual mínimo
de alocação de recursos para o segmento da agricultura familiar.
Após a aprovação do projeto técnico pelo banco, conforme a atividade a ser explorada, os recursos poderão ser liberados em única parcela, ou liberados paulatinamente, de acordo com cronograma previsto
no projeto. A liberação da parcela subsequente é condicionada à comprovação da correta aplicação dos créditos liberados na parcela anterior
e a averiguação da aplicação dos recursos é realizada pelo profissional
prestador de assistência técnica, geralmente o mesmo que elaborou o
projeto técnico, que emite laudo específico para o banco, informando da
possibilidade de nova liberação dos recursos. Para o MDA, o principal
objetivo dos serviços de assistência técnica e extensão rural é melhorar
a renda e a qualidade de vida das famílias rurais; assim, o serviço de
assistência técnica deve ir além do mero acompanhamento do projeto,
oferecendo ao produtor rural e a sua família a orientação e a capacitação
necessária à expansão dos seus negócios e ao correto manejo das atividades agropecuárias.
Liberada a integralidade dos recursos contratados e implementado o projeto, o prestador de assistência técnica continua assessorando
a família, com vistas ao sucesso do empreendimento e posterior reembolso dos recursos financiados. Garantir a lucratividade do negócio é
fundamental para que nas datas aprazadas o agricultor retorne ao banco
162
6 • A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA...
e cumpra suas obrigações, assim, a atividade financiada deve ter a produtividade esperada e boa comercialização, a preços que assegurem o
pagamento da dívida adquirida e os excedentes necessários à manutenção da família.
Ocorre que a produção rural é influenciada por vários fatores,
desde aqueles que dizem respeito ao manejo que a própria família exerce ao trabalhar na atividade até às condições climáticas que afetam diretamente a produção. O nível de conhecimento, as técnicas empregadas,
o tipo de solo, a qualidade dos insumos e as condições de profilaxia dos
animais são alguns dos aspectos que podem determinar o lucro ou o
prejuízo no meio rural. Assim, quando o conjunto desses elementos se
mostra favorável, a família tem condições de suprir suas necessidades,
pagar a dívida no banco e ainda estar pronta para um novo ciclo produtivo, para o qual poderá ser contratado um novo financiamento.
Presentemente, várias são as linhas de crédito à disposição do
agricultor e de sua família. Quando da emissão da DAP, a família é enquadrada em uma das linhas de crédito da base do PRONAF: Grupo “A”,
Grupo “A/C”, Grupo “B” e Grupo Comum. O Grupo “A” se refere aos assentados do Programa Nacional de Reforma Agrária - PNRA ou beneficiários do Programa Nacional de Crédito Fundiário – PNCF; o Grupo
“A/C” é direcionado para os assentados do PNRA e PNCF que tenham
contratado a primeira operação no Grupo “A” e que não tenham ainda
contratado financiamento de custeio; o Grupo “B” enquadra os beneficiários cuja renda bruta familiar anual não seja superior a R$10.000,00
(dez mil reais); por fim, o Grupo Comum é a fração de agricultores familiares que possuem renda bruta anual familiar acima de R$ 10 mil
(dez mil reais) até R$ 160 mil (cento e sessenta mil reais), apresentam
os requisitos previstos na Lei n.º 11.326/2006 e não são assentados de
reforma agrária.
Os agricultores familiares podem acessar outras linhas de crédito,
além das previstas nos Grupos “A”, “A/C”, “B” e Comum, para incrementar sua receita produtiva por meio de crédito extra direcionado a
atividades específicas. Há um programa específico que apoia a inclusão dos agricultores familiares no processo de agroindustrialização e
comercialização da sua produção, com crédito que é concedido para o
financiamento de máquinas, equipamentos e adequação de ambientes
para industrialização dos produtos da agricultura familiar. É o “Pronaf
163
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa - Sandra Terto Sampaio Rodrigues
Agroindústria”, que recebe agricultores familiares - pessoas físicas; ou
cooperativas e associações formadas por no mínimo 90% destes agricultores, com no mínimo 70% de matéria-prima própria.
Na esteira da produção de energia renovável, o agricultor familiar
poderá estar incluído na produção de biocombustíveis. O MDA, por
intermédio da Secretaria da Agricultura Familiar - SAF, participa da
gestão do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel – PNPB,
que além de estimular a produção de novo combustível, procura apoiar
a participação da agricultura familiar na sua cadeia de produção. Instrumentos como o Selo Combustível Social e estratégias de organização
dos produtores, com auxílio da ATER e do crédito, foram criados para
possibilitar que produtos como girassol, mamona, pinhão-manso e outros possam ser industrializados para produção sustentável de biocombustíveis. Para os que desejam produzir matéria prima para o biodiesel
com apoio creditício, há uma linha específica de crédito chamada “Pronaf Eco” (Crédito para Investimento em Energia Renovável e Sustentabilidade Ambiental).
Outra linha de crédito cujo objetivo central é a sustentabilidade
ambiental é o “Pronaf Floresta”. Os financiamentos ao amparo desta linha
de crédito se destinam a sistemas agroflorestais; exploração extrativista
ecologicamente sustentável, plano de manejo e manejo florestal, incluindo-se os custos relativos à implantação e manutenção do empreendimento; recomposição e manutenção de áreas de preservação permanente e
reserva legal e recuperação de áreas degradadas, para o cumprimento
de legislação ambiental; enriquecimento de áreas que já apresentam cobertura florestal diversificada, com o plantio de uma ou mais espécies
florestais, nativas do bioma. O Pronaf Floresta pode ser contratado pelo
agricultor familiar enquadrado em qualquer um dos Grupos.
Os sistemas agroecológicos e orgânicos de produção contam com
o “Pronaf Agroecologia”, que os financia incluindo os custos relativos
à implantação e manutenção dos empreendimentos. Como crédito
complementar às linhas de financiamento, no ano de 2008 foi criado
o “Pronaf Mais Alimentos”, que destina recursos para investimento na
modernização da produção, via aquisição de máquinas, implementos e
de novos equipamentos, para correção e recuperação de solos, resfriamento do leite, melhoria genética, irrigação, implantação de pomares
e estufas, armazenagem, entre outros. O crédito do “Mais Alimentos”
164
6 • A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA...
pode estar associado a qualquer cultura ou atividade agropecuária desenvolvida pelos agricultores familiares, e o financiamento pode chegar
a até R$ 130 mil (cento e trinta mil reais) por ano agrícola, limitado a R$
200 mil (duzentos mil reais) no total, que podem ser pagos em até dez
anos, com até três anos de carência e juros de 2% ao ano. Para projetos
coletivos, o limite é de R$ 500 mil (quinhentos mil reais).
Para os investimentos em projetos de convivência com o semiárido, focados na sustentabilidade dos agroecossistemas, e designados para
a implantação, ampliação, recuperação ou modernização da infraestrutura produtiva, inclusive aquelas relacionadas com projetos de produção
e serviços agropecuários e não agropecuários, está disponível o “Pronaf
Semiárido”. Os créditos podem ser acessados por beneficiário enquadrado em qualquer grupo do Pronaf, desde que seu empreendimento rural
esteja localizado na área semiárida de atuação da Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE, região antigamente denominada de “polígono das secas”. O Ministério da Agricultura é responsável
pelo zoneamento dos municípios que se enquadram nessa situação.
As iniciativas para inclusão do gênero não deixaram de ser também contempladas no PRONAF. Por intermédio do “Pronaf Mulher”,
as agricultoras obtêm financiamentos de custeio ou investimento, independentemente de seu estado civil. Os créditos podem ser direcionados
para qualquer atividade produtiva, da tradicional produção agropecuária a atividades não-agropecuárias, com as quais a mulher da área rural
tem mais afinidade, como artesanato ou produção de queijo e de doces.
Os jovens também foram considerados no crédito para a agricultura
familiar pelo “Pronaf Jovem”, que beneficia maiores de 16 (dezesseis)
até 29 (vinte e nove) anos de idade, integrantes de unidades familiares
que possuam a Declaração de Aptidão ao Pronaf, entre outros requisitos
instrucionais. Os créditos se destinam a atividades de investimento no
empreendimento rural, desde que executadas pelo próprio jovem.
O “Pronaf Cotas-Partes” é destinado aos associados de cooperativas de produção agropecuária que: a) tenham, no mínimo, 70% de seus
sócios ativos classificados como beneficiários do Pronaf e que, no mínimo, 55% da produção beneficiada, processada ou comercializada sejam
oriundas de associados enquadrados no Pronaf; b) tenham patrimônio
líquido mínimo de R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais) e máximo de
R$150.000.000,00 (cento e cinquenta milhões de reais); c) e funcionem
165
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa - Sandra Terto Sampaio Rodrigues
há pelo menos 1 (um) ano. Além de possibilitar a integralização de cotas-partes pelos beneficiários do Pronaf, o financiamento também permite a aplicação pela cooperativa em capital de giro, custeio, investimento ou saneamento financeiro.
Desde a concepção do PRONAF em 1996, foram incorporadas
outras políticas e programas que se amoldaram à agricultura familiar,
organizadas especialmente após a definição de um Ministério específico
para o setor, qual seja, o MDA. Conforme o atual organograma desenvolvido pelo MDA, vários programas instituídos para a consecução do
fortalecimento da agricultura familiar procuram melhor estruturar o
crédito por meio de outras iniciativas, de modo a assegurar a produção
projetada, a comercialização certa e a preços justos, com consequente reembolso dos créditos nas épocas aprazadas. Cada programa está à
disposição do agricultor familiar detentor da Declaração de Aptidão ao
Pronaf - DAP, mesmo que ele não acesse o crédito bancário.
2.2.3. Aplicações de Crédito do PRONAF
Na safra 1999/2000, o programa atendeu agricultores em 3.403
municípios, passando para 4.539 no ano seguinte, o que representa um aumento de 33% na cobertura de municípios. A ampliação de
municípios atendidos continuou em cada ano agrícola, sendo que em
2005/2006 houve a inserção de quase 1.960 municípios em relação à
1999/2000. Em 2007/2008, foram atendidos 5.379 municípios, com cobertura de 96,67% do território brasileiro. O montante disponibilizado
aos agricultores também cresceu nesse período. Em 1999/2000, foram
disponibilizados pouco menos de R$ 3,3 bilhões com efetiva liberação
de apenas 66% dos recursos contratados. No ano agrícola de 2003/2004,
houve o primeiro grande incremento no montante, com um crescimento de 65% em relação à 1999/2000, sendo ofertados R$ 5,4 bilhões aos
agricultores e execução de 83% do valor disponibilizado. Em 2006/2007,
o montante disponibilizado para financiamento do PRONAF chegou a
R$ 10 bilhões, representando um crescimento em relação à 1999/2000
de 205% e com taxa de execução de 84%. Nos anos seguintes, o aumento
do volume de recurso manteve-se equilibrado. Em 2004/2005 foram financiados R$ 6,13 bilhões, com crescimento gradual nos anos seguintes,
chegando à casa dos 9 bilhões de reais na safra 2007/2008 (MDA, 2013).
166
6 • A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA...
Em torno de R$ 11,21 bilhões foram disponibilizados para o
crédito PRONAF em 2009, beneficiando agricultores por meio dos
1.704.947 contratos firmados. Café, milho e soja continuaram sendo
as culturas com o maior número de financiamentos, no ano em que o
custeio agrícola representou 38% do volume de recursos contratados.
O crédito de investimento, agrícola e pecuário, foi responsável pela contratação de 879.359 operações, totalizando R$ 6,94 bilhões. Dois anos
depois, a contratação do PRONAF totalizou mais de R$ 13,3 bilhões, financiando 1.539.901 contratos em 2011. Até novembro de 2012, o PRONAF já havia financiado em todo o Brasil R$ 13,96 bilhões em 1.582.510
contratos (BACEN, 2013).
Os dados revelam, portanto, que a política de crédito do PRONAF continua a cada ano expandindo suas contratações e dedicando
volume cada vez maior de recursos para a agricultura familiar. Como
principal política pública direcionada para o segmento, esse crédito é
mais do que uma ação governamental, considerando-se que a participação dos produtores permite que o programa incentive também um
processo de diálogo entre o Governo e os beneficiários. Na sua criação, tratava-se de simples linha de crédito para o custeio de culturas
agrícolas, transformando-se, mais recentemente, no conjunto de ações
que adéquam e flexibilizam as normas de crédito, de modo a melhor
atender à diversidade socioeconômica da agricultura familiar no Brasil.
Resta saber se, diante de todo esse quadro de flexibilização das normas,
desburocratização do acesso ao crédito e custos contratuais adequados
à renda do beneficiário, ainda assim, a função social desses contratos é
efetivamente exercitada e preservada.
Na verdade, o crédito facilitado para o agricultor familiar, da
maneira como foi concebido, além de atrair o interesse do poder público e da classe trabalhadora, também atraiu o interesse dos próprios
agentes financeiros, remunerados pela equalização de juros e pela taxa
de serviços cobrada em cada operação realizada. A despeito de gerar
interesse das instituições bancárias, a maior parte das dificuldades enfrentadas pelo agricultor familiar está na sua implicação com o Sistema
Financeiro Nacional, considerando-se que a lógica bancária não possui
a necessária flexibilidade para operacionalizar programas de crédito direcionados para um público pouco ou nada familiarizado com o funcionamento e as exigências desse sistema.
167
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa - Sandra Terto Sampaio Rodrigues
3. Conclusões
Na conjunção de ambiguidades nacionais, nas quais as políticas
compensatórias pouco avançam com relação à efetiva diminuição da
pobreza no campo, o surgimento do crédito, como política de promoção socioeconômica, pretende se constituir em ação pública inovadora
voltada para a produção de menor monta, incorporando novas famílias
à condição de produtores. Aqui, a novidade não estaria nas normas de
crédito, mas na tentativa de aperfeiçoar o ambiente institucional no qual
se desejam implementá-las, basicamente no que depende da capacidade
organizativa dos seus beneficiários e na redução de exigências para a
contratação de financiamento.
O fato é que a produção no campo é desenvolvida em condições
de extrema fragilidade, exposta a riscos de grande impacto na exploração, como os casos de mudança climática, riscos políticos, mercadológicos, econômicos etc. As diversas políticas que se associaram ao crédito
procuraram criar um escudo protetor para a minimização desses riscos
e o alcance da função social do programa, que seria manter o homem
no campo, com existência digna e geração de renda, motivando riqueza
para si e para o desenvolvimento do país. O mútuo rural possui disciplina jurídica especial e em vários aspectos se diferencia dos demais mútuos praticados comumente pelos agentes integrantes do Sistema Financeiro Nacional, tornando-se, por esta razão, merecedor de tratamento
distinto e sujeito a preceitos legais somente a ele aplicáveis, tendo como
meta o bem-estar social.
Ocorre que ao tentar contornar a hipossuficiência dos agricultores familiares frente ao Sistema Financeiro Nacional, especialmente
porque essa categoria de produtores esteve por muito tempo alijada das
iniciativas de crédito, o Estado criou, por intermédio do crédito especializado, mecanismos que permitem o atendimento desse público em
condições mais favoráveis do que as concedidas para os médios e grandes produtores rurais. Trabalha com taxas de juros menores; linhas de
crédito adaptadas às atividades comumente desenvolvidas pela agricultura familiar; crédito não condicionado à apresentação de garantias; financiamento de atividades não agropecuárias no meio rural; proibição
de cobrança de tarifas para concessão do crédito, entre outras iniciativas
168
6 • A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA...
que possibilitariam, ao menos em tese, aos contratos de financiamento
cumprirem sua função social.
Mesmo assim, os contratos estão expostos às regras de cada instituição financeira, que graduam as propostas de financiamento obedecendo a normas estreitas de análise de risco de crédito. O que significa dizer que os contratos podem restar à mercê das regras frias do
banco, especialmente nos casos de inadimplemento, fato que implica
em nova intervenção estatal, essencial para que esses pactos não sejam
controlados exclusivamente pelos bancos. É como se as regras sociais
e a intencionalidade material contidas na criação do programa não se
comunicassem com as regras finais, individuais, formais e matemáticas
da execução da dívida, que acautelam o banco (e não o agricultor) dos
riscos da inadimplência.
Entretanto, não é possível pensar a interferência constante do
Estado nas cláusulas contratuais, uma situação que poderia provocar
efeitos danosos à segurança jurídica dos pactos. Ocorre que as atividades desenvolvidas no campo com mão de obra familiar não estão entre
aquelas menos arriscadas, ao contrário, são extremamente sensíveis às
adversidades climáticas e de mercado, fato que torna o crédito para esse
segmento quase impossível de acontecer pela mera vontade dos contratantes (bancos e agricultores). É importante, pois, que o poder público invista recursos, amplie os benefícios e crie regras específicas de
operacionalização, para que esses tipos de mútuo cumpram seu papel
fomentador na geração sustentável de renda e dignidade no meio rural,
que correspondem à sua função social.
O crédito do PRONAF é um mecanismo decisivo para a continuidade da reprodução social dos agricultores familiares em todo
o país, uma vez que a política tem abrangência nacional. Fortalecer a
agricultura familiar por meio do crédito e do financiamento bancário
é estratégia de desenvolvimento rural, um caminho para o combate da
pobreza campesina no país, mais expressiva nas regiões em que há predomínio da produção familiar. Há necessidade, no entanto, de que os
gestores públicos à frente da política de crédito conheçam melhor as
potencialidades e os limites da agricultura familiar para que o PRONAF
possa também contribuir para as mudanças estruturais da área rural, de
modo a alterar o perfil de exploração da estrutura agrária, privilegiando
efetivamente a produção agroecológica. Para que o PRONAF se revista
169
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa - Sandra Terto Sampaio Rodrigues
de eficácia como política pública, a ação estatal precisa estimular o cumprimento da função social dos contratos bancários.
Todavia, a efetividade do PRONAF como política pública não
deve estar circunscrita à garantia de acesso aos recursos. Tão importante quanto criar mecanismos de acesso ao crédito para o agricultor
familiar é assegurar que ao final do ciclo produtivo os mutuários estejam em condições de vida melhores do que quando assinaram o contrato de financiamento. O inadimplemento e a prorrogação dos prazos de
pagamento submetem as famílias a constrangimentos e eternizam sua
angústia. É preciso admitir que a qualidade e suficiência do crédito rural
passam pela qualidade dos projetos elaborados e da programação pactuada, levando-se em conta as especificidades de cada estabelecimento
rural. Depende também da garantia de acompanhamento dos produtores, de modo a estreitar os laços entre o financiador e o tomador dos
recursos, como ocorre na aplicação da metodologia preconizada pelo
microcrédito produtivo orientado, um programa que vislumbra maior
pontualidade nos reembolsos e melhor uso dos recursos, reduzindo a
inadimplência e os custos governamentais.
Outra medida para assegurar a função social dos contratos pode
ser o controle da participação de bancos privados no sistema do crédito rural. Ainda, o estímulo ao financiamento de atividades não agrícolas, menos suscetíveis a intempéries naturais e às variações do mercado
agropecuário, pode também resultar em iniciativa capaz de elevar o volume dos reembolsos na data ajustada, desde que seja instituída uma linha de crédito específica e diferenciada para esse tipo de atividade, com
encargos compatíveis com o menor risco que elas apresentam.
Por fim, cabe lembrar que no Brasil o campo sempre foi associado
ao atraso, com graves déficits de cidadania. Essa realidade precisa ser
radicalmente alterada. Os agricultores familiares saíram do ostracismo
para o protagonismo de uma política pública de crédito, que criou também outros mecanismos de proteção e apoio para conferir maior confiança aos financiamentos, como os programas de incentivo à comercialização e os seguros agrícolas; no entanto, a função social dos contratos
de financiamento deve ser cuidada e garantida em sua plenitude por
meio de controle e planejamento prévios, no contexto da própria política pública que gerou o programa, de modo que o crédito concedido por
meio do PRONAF funcione mais como insumo à produção agropecuá170
6 • A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA...
ria e ao desenvolvimento e menos como simples modalidade de transferência de renda. A solidez das demais políticas públicas no contexto
do sistema da agricultura familiar vai elevar o bem-estar da população
beneficiada, funcionando como garantia de efetivo desenvolvimento regional e nacional, com largos aportes de inclusão social.
4. Referências
ABRÃO, Nelson. Direito Bancário. São Paulo: Saraiva, 2008.
BACEN, Banco Central do Brasil. Anuário Estatístico do Crédito
Rural 2012 – PRONAF. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/htms/
creditorural/2012/pronaf.asp?idpai=RELRURAL2012 > Acesso em
06/02/2013.
BASTOS, Fernando. Ambiente Institucional no Financiamento da
Agricultura Familiar. São Paulo: Polis, 2006.
BRASIL. Código Civil Brasileiro. 2002. São Paulo: Saraiva, 2011.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. São
Paulo: Saraiva, 2011.
BRASIL, Decreto nº 7.255, de 04 de agosto de 2010. Aprova a Estrutura
Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das
Funções Gratificadas do Ministério do Desenvolvimento Agrário, e dá
outras providências. Legislação do Planalto. Disponível em: < http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7255.
htm> Acesso em 06/02/2013.
BRASIL. Lei n.º 11.326, de 24 de julho de 2006. Estabelece as diretrizes
para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e
Empreendimentos Familiares Rurais. Legislação do Planalto. Disponível
em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/
l11326.htm> Acesso em 10/11/2012.
BRASIL. Manual de Crédito Rural (MCR). Banco Central do Brasil.
Disponível em: <http://www.bacen.gov.br/?MANUMCR>. Acesso em
25/10/2010.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Secretaria
de Agricultura Familiar. PRONAF. Programas. Disponível em: <http://
171
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa - Sandra Terto Sampaio Rodrigues
comunidades.mda.gov.br/portal/saf/programas/pronaf>. Acesso em
25/01/2013.
CORRÊA, Vanessa Petrelli. SILVA, Fernanda Faria. Análise das
Liberações Recentes de Recursos do Pronaf: uma mudança na lógica
de distribuição? Revista Econômica do Nordeste. Fortaleza: Escritório
Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste – Banco do Nordeste do
Brasil, v. 38, n. 1. 2007.
EHRHARDT JR., Marcos Augusto de Albuquerque. Revisão Contratual:
a busca pelo equilíbrio negocial diante da mudança de circunstâncias.
Salvador: Juspodium, 2008.
FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000.
FEITOSA, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer. Paradigmas
Inconclusos: os contratos entre a autonomia privada, a regulação estatal
e a globalização dos mercados. Coimbra: Coimbra Editora, 2007.
FERREIRA, Brancolina. SILVEIRA, Fernando Gaiger. GARCIA,
Ronaldo Coutinho. A Agricultura Familiar e o Pronaf: contexto e
perspectivas. In: Transformações da Agricultura e Políticas Públicas.
Org: GASQUES, José Garcia. CONCEIÇÃO, Júnia Cristina P.R. da.
Brasília: IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2001.
FRANÇA, Caio Galvão de; DEL GROSSI, Mauro Eduardo; MARQUES,
Vicente P. M. de Azevedo. O censo agropecuário 2006 e a agricultura
familiar no Brasil. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário MDA. Disponível em: <http://www.bb.com.br/docs/pub/siteEsp/agro/
dwn/CensoAgropecuario.pdf>. Acesso em: 23/09/2012.
GASQUES, José Garcia. CONCEIÇÃO, Junia Cristina P.R. da.
Financiamento da Agricultura – Experiência e Propostas e
Transformações da Agricultura e Políticas Públicas (Org: GASQUES,
José Garcia. CONCEIÇÃO, Júnia Cristina P.R. da. Brasília: IPEA –
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2001.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Revista
de Informação Legislativa Brasília: Senado Federal, n. 141, jan./mar,
1999. MANCEBO, Rafael Chagas. A Função Social do Contrato. São
Paulo: Quartier Latin, 2005.
172
6 • A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA...
MATTEI, Lauro. Políticas de Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura
Familiar no Brasil: o caso recente do Pronaf. Revista Econômica do
Nordeste. Fortaleza: Escritório Técnico de Estudos Econômicos do
Nordeste – Banco do Nordeste do Brasil, vol. 38, n. 1. jan./mar. 2007.
PEREIRA, Lutero de Paiva. O Estado e a Competência Constitucional
do Agente Fomentador da Atividade Agrícola. In: Constituição,
Democracia e Desenvolvimento, como Direitos Humanos e Justiça.
Org.: CAMPOS, Amini Haddad. Curitiba: Juruá, 2009.
REBOUÇAS FILHO, José de Sousa. Análise da Teoria da Imprevisão
nos Contratos Bancários Concessivos de Crédito Rural. Monografia.
Fortaleza: UFC, 2005.
SANTOS, Eduardo Sens. A Função Social do Contrato: elementos para
uma conceituação. Revista de Direito Privado.. São Paulo: Revista dos
Tribunais, n. 13, Jan./mar.2003.
TARTUCE, Flávio. A Função Social dos Contratos: do Código de
Defesa do Consumidor ao novo Código Civil. São Paulo: Método, 2005.
TIMM, Luciano Benetti. Direito, Economia e a Função Social do
Contrato: em busca dos verdadeiros interesses coletivos protegíveis no
mercado do crédito. Revista de Direito Bancário e do Mercado de
Capitais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 9, n. 33, jul/set. 2006.
WILDMANN, Igor P. Crédito Rural: teoria, prática, legislação e
jurisprudência. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
173
7
O CONSENTIMENTO INFORMADO E
A RESPONSABILIDADE MÉDICA POR
AUSÊNCIA OU DEFICIÊNCIA DO DEVER
DE INFORMAÇÃO AO PACIENTE
Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha1
Sumário: Introdução: o direito à saúde e suas múltiplas
visões - 1. A informação sob o ângulo do médico - o ato médico,
o dever de informar e a confiança legítima entre médico e
paciente - 2. A informação sob o ângulo do paciente – o direito
de ser informado, o consentimento informado e seus requisitos
- 3. O consentimento informado como elemento qualificador
da declaração de vontade nos negócios jurídicos de contratação
de serviços médicos e a sua vinculação com o princípio da boafé objetiva - 4. A ausência ou deficiência do dever médico de
informação, as suas implicações para o consentimento informado
e a possibilidade de responsabilização médica decorrente - 5.
Conclusões - 6. Referências
1 Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Privado pela UFPE. Professor Adjunto
do Departamento de Direito Privado do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB. Juiz de Direito do
Estado da Paraíba.
175
Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha
Introdução: o direito à saúde e suas múltiplas visões
É intuitivo que a saúde, hoje entendida e almejada como o completo bem-estar físico, mental e social do indivíduo, associado à qualidade plena de vida, e não apenas como a ausência de doenças e outros
agravos, comporta múltiplos ângulos de análise.
Com efeito. Há de se notar, de início, que, com a passagem do
Estado Liberal para o Estado Social, houve um incremento das demandas sociais pela prestação de saúde pelo Estado, dentro do denominado
welfare state, o que, somado à evolução da qualidade de vida das populações e ao avanço tecnológico das ciências médicas, foram as pedras de
toque da jurisdicização da saúde nas legislações, e, mais importante, de
sua introdução nas Constituições nacionais.2
Assim é que então a saúde, pela demanda em sua volta e, em consequência, pela relevância alcançada, gerou, por um lado, verdadeiro
direito à saúde dos indivíduos, como direito subjetivo quase sempre
constitucionalizado, e por outro lado, um ramo jurídico dotado de autonomia científica própria, o Direito da Saúde.3
Mais do que mero direito subjetivo, é despiciendo afirmar que, na
Constituição brasileira, o direito à saúde foi erigido à condição de verdadeiro direito fundamental social, com dupla passagem em seus arts. 6º e
196. Correlacionando-se a essa fundamentalidade, é possível vislumbrar,
por outro lado, a vinculação do direito à saúde com o direito à vida e com
uma série de direitos da personalidade, dentre eles o direito à integridade
psicofísica – direito ao corpo, ao cadáver e, em especial, à escolha do tratamento médico –, à intimidade e privacidade, à liberdade, à informação
etc. De igual modo, pode-se verificar uma possível vinculação com a dignidade humana em temas bioéticos, como a pesquisa de células-tronco,
criopreservação de embriões humanos, dentre outros.
2 São as palavras de Fernando Campos Scaff: “(...) com o passar do tempo, os diversos ordenamentos
jurídicos passaram a reconhecer, de maneira mais ou menos intensa, o direito à saúde como um
direito subjetivo primário da pessoa, que foi assim paulatinamente incorporado ao próprio texto
de várias Constituições nacionais, abrangendo não só as relações mantidas entre os entes privados,
como também aquelas estabelecidas pelos cidadãos perante a Administração Pública”. In: SCAFF,
Fernando Campos. Direito à Saúde no âmbito privado. Contratos de adesão, planos de saúde e
seguro-saúde. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 18.
3 Acerca dos delineamentos dessa autonomia e dos limites desse novel ramo, consulte-se a obra de
Fernando Campos Scaff acima indicada.
176
7 • O CONSENTIMENTO INFORMADO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA POR AUSÊNCIA OU DEFICIÊNCIA DO DEVER DE...
De outra banda, como próprio implica a Constituição em seu
art. 196, o direito à saúde também se coloca como um dever fundamental estatal, em dimensão prestacional voltada à organização, pelo
Estado, de ações, recursos humanos, recursos orçamentários, serviços,
instituições necessárias ao exercício do direito à saúde e o serviço médico-hospitalar em si.4
Por outro lado, há muito já se reconheceu a eficácia imediata tanto do direito fundamental à saúde e, correlatamente, do dever fundamental estatal de prestação da saúde.5 Ademais, vê-se ainda, a partir de
uma simples leitura do art. 196, que a Constituição Federal preconiza
o atendimento, sendo assim deverá tanto visar à saúde curativa (“redução do risco de doença e de outros agravos”) quanto à saúde preventiva
(“acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação”). Não por outro motivo é que o modelo estatal
brasileiro de prestação da saúde, trazido pela Constituição, é um dos
mais complexos de todo o mundo, propondo-se a ser um sistema regionalizado, hierarquizado e descentralizado, porém único, materializado
por meio do Sistema Único de Saúde – SUS, cuja diretriz fundamental
é o “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas,
sem prejuízo dos serviços assistenciais”, nos termos de seu art. 198.
Contudo, essa integralidade do atendimento à saúde e a defendida eficácia irrestrita do direito fundamental constitucional à saúde,
aliada ao crescimento populacional e ao aumento das demandas sociais,
bem como o desenvolvimento da indústria médica, com terapêuticas e
medicamentos cada vez mais caros, tem levantado a questão da contenda entre a elevação dos custos, cada vez mais crescentes, para o atendi4 Dimensão prestacional essa que, segundo Ingo Wolfgang Sarlet, pode ser vista tanto em um
sentido amplo (“consecução de medidas para salvaguarda do direito e da própria saúde dos indivíduos
(deveres de proteção), bem como a organização de instituições, serviços, ações, procedimentos, enfim,
sem os quais não seria possível o exercício desse direito fundamental (deveres de organização e
procedimento)”) quanto em um mais estrito de “fornecimento de serviços e bens materiais ao titular
desse direito fundamental (atendimento médico e hospitalar, entrega de medicamentos, realização
de exames da mais variada natureza, prestação de tratamentos)”. SARLET, Ingo Wolfgang e
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas
aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang e TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais:
Orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 11-54, p. 40/41.
5 Vide, por exemplo, STF, 2ª Turma, RE 271286/AgR/RS, Rel. Min. Celso Melo: “(...) O caráter
programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes
políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não
pode converter-se em promessa constitucional inconsequente(...).”
177
Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha
mento da saúde e os recursos orçamentários certamente limitados, finitos; contenda, assim, operada entre as teses fundamentais do mínimo
existencial e da reserva do possível. A propósito, um dos grandes pontos
de discussão a respeito desse tema tem sido as incontáveis demandas e
decisões judiciais determinando o fornecimento de medicamentos de
alto custo pelo Poder Público, o que se encontra sob análise no Supremo
Tribunal Federal como matéria de repercussão geral.6
Por outro lado, como outro ângulo de visão acerca do Direito à
Saúde, há de se observar como a realidade brasileira há anos demonstra
e a Constituição admite, que o sistema de saúde brasileiro não é público
exclusivamente, mas sim um sistema misto, também aberto à iniciativa
privada, responsável pela denominada saúde complementar, nos termos
de seu art. 199, com regência infraconstitucional pela Lei nº. 9.656/1998,
a qual oferta a definição legal das operadoras de planos privados de assistência à saúde.
Anote-se que a questão dos altos custos da saúde tem se revelado
um preocupante problema também na saúde complementar,7 tendo em
vista, assim como também na saúde pública, as terapêuticas, exames e
medicamentos cada vez mais caros, o aumento da sobrevida da população e uma medicina cada vez mais defensiva, com a requisição descompensada de exames, o que altera os cálculos atuariais, gerando até
mesmo carteiras antieconômicas.
Prestada por operadoras de planos de saúde, é patente observar
que a saúde complementar no Brasil se materializa como um produto ou
serviço posto à disposição do paciente dentro de uma relação claramente de consumo, em que esse é um autêntico consumidor destinatário
final. Como decorrência, a contratação da saúde tem se dado mediante
a contratação em massa de planos de assistência à saúde, quer planos de
saúde, quer seguros-saúde, ainda que ainda ocorrente a contratação individualizada de médicos, mesmo que a prestação de serviços médicos
se dê quase sempre no âmbito de clínicas ou hospitais. É possível notar
ainda que a contratação da saúde reflete em contratos relacionais, ou
6 SAÚDE - ASSISTÊNCIA - MEDICAMENTO DE ALTO CUSTO - FORNECIMENTO. Possui
repercussão geral controvérsia sobre a obrigatoriedade de o Poder Público fornecer medicamento
de alto custo. (RE 566471 RG, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 15/11/2007,
publicado em 07-12-2007).
7 Nesse sentido, SCAFF, Fernando Campos. Op. Cit., p. 18.
178
7 • O CONSENTIMENTO INFORMADO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA POR AUSÊNCIA OU DEFICIÊNCIA DO DEVER DE...
cativos de longa duração, que muitas vezes perdurarão por toda a vida,
como explica a Profa. CLÁUDIA LIMA MARQUES, 8 sendo certamente
significativo o número de pessoas que detém um contrato de saúde do
nascimento à morte.
Contudo, para além desses aspectos estruturais básicos da saúde
pública e da saúde complementar no Brasil, como derradeiro ângulo de
visão do exercício da saúde, quer no sistema público, quer no sistema
privado, nunca há de se perder de vista dois pontos fundamentais: a)
que a prestação dos serviços médicos é qualificada pela prestação de
atos técnicos desempenhados no bojo de uma das mais difíceis e tortuosas das profissões, qual seja o ato ou atividade médica; b) que existe um
relacionamento pautado na extrema confiança entre as figuras humanas
últimas da prestação de saúde, quais sejam, o médico e o paciente.
Cabe dizer que a prestação de serviços médicos, ainda que realizada no âmbito das relações de consumo, ou com a interveniência da contratação de um plano de saúde, ou mesmo no serviço público, ocorrerá
derradeiramente sempre entre o médico e o paciente, motivo pelo qual,
somando-se ao campo de atuação que é o corpo humano, a relação entre
eles sempre haverá de se pautar por um grau máximo de confiança.
Pela mesmíssima motivação, há de se perceber, em linhas iniciais,
que ante a confiança legítima que deve operar entre eles, o seu relacionamento há de ser marcado sobremaneira pela informação. Tendo
em vista o grau de importância e o campo de atuação da intervenção
médica, o corpo e por vezes a própria vida humana, o médico sempre
possuirá o dever legal de informar ao paciente todas as nuances, riscos
e consequências do tratamento médico proposto. Somente após essa informação precisa e completa é que o paciente poderá a ele dar o seu aval,
ofertando assim o que há muito se convencionou chamar de consentimento informado.
8 Para Cláudia Lima Marques: “Os contratos de planos de saúde são contratos cativos de longa
duração, pois envolvem por muitos anos um fornecedor e um consumidor, com uma finalidade em
comum, assegurar para o consumidor o tratamento e ajudá-lo a suportar os riscos futuros envolvendo a
saúde deste, de sua família, dependentes ou beneficiários. Aqui está presente o elemento moral, imposto
ex vi lege pelo princípio da boa-fé, pois solidariedade envolve a idéia de confiança e cooperação”. In:
MARQUES, Cláudia Lima. Solidariedade na doença e na morte: sobre a necessidade de “ações
afirmativas” em contratos de planos de saúde e de planos funerários frente ao consumidor idoso.
In: SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006, p. 187-224; p. 208-209.
179
Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha
Ora, a atividade médica tem sido apontada como a área mais infesta a discussões sobre a responsabilização civil do profissional liberal
envolvido por causação de danos. Como consequência é que a responsabilidade civil médica, na praxis judiciária brasileira, tem sido mais arguida do que a responsabilidade civil de outros profissionais liberais, a
exemplo do advogado e do engenheiro. De fato, a prática do ato médico,
ante as possibilidades de erro de conduta ou de erro de diagnóstico, é
sempre hábil à causação de danos à pessoa do paciente.
Entretanto, o que se discute mais controversamente – e que se
constitui no objeto principal de análise do presente texto – é se tãosó a ausência de consentimento informado, ou melhor, a ausência de
prévia informação pelo médico, ou a deficiência dessa informação, que
tenha resultado em não ocorrência do consentimento informado pelo
paciente, mostra-se passível de causar danos, ainda que, porventura, o
tratamento médico tenha transcorrido normalmente, sem quaisquer
agravos à saúde do paciente, ou se esses ocorreram, assim se deram, não
por erro médico, mas sim pelo risco iatrogênico ou biológico próprio do
paciente, notadamente em casos concretos de sobrelevada necessidade
de intervenção médica.
O presente texto, portanto, propõe-se a abordar essas últimas
relações possíveis que se podem estabelecer entre a inadequação de
consentimento informado, componente indissociável do direito da personalidade da escolha e da recusa de tratamento médico, em face da
ausência ou deficiência de informação médica – ou mesmo a conduta
arbitrária de realização da intervenção médica sem qualquer consentimento –, e a possibilidade de responsabilização do profissional médico.
1. A informação sob o ângulo do médico - o ato
médico, o dever de informar e a confiança legítima
entre médico e paciente
Preliminar à identificação do conteúdo do dever de informação
pelo profissional médico na sua relação para com o seu paciente, parece
se mostrar a delimitação do conteúdo do ato médico em si. A propósito,
ANTÔNIO GONÇALVES PINHEIRO define-o como sendo:
[...] aquele ato praticado pontualmente pelo profissional graduado em
curso de Medicina aprovado e reconhecido no Brasil, exercido de acordo
180
7 • O CONSENTIMENTO INFORMADO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA POR AUSÊNCIA OU DEFICIÊNCIA DO DEVER DE...
com o saber médico cientificamente construído, (...) e cujos objetivos
principais são a prevenção, o diagnóstico, o tratamento e a cura de
enfermidades.9
Esses objetivos apontados pelo autor foram introjetados, como
não poderia deixar de ser, na novíssima Lei do Ato Médico (Lei nº
12.842, de 10 de julho de 2013), que afirma que os objetivos da atuação
profissional do médico se voltarão para: I - a promoção, a proteção e a
recuperação da saúde; II - a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das
doenças; III - a reabilitação dos enfermos e portadores de deficiências (art.
2º, parágrafo único).
Mais importante ainda, nessa nova lei, é a definição das atividades privativas do médico (art. 4º), em que, sem embargo de múltiplos
vetos presidenciais na nova lei, destacam-se a indicação e execução da
intervenção cirúrgica e prescrição dos cuidados médicos pré e pós-operatórios e a determinação do prognóstico relativo ao diagnóstico nosológico.10
Claro está, contudo, que é contínua a extensão da atividade médica na atualidade, o que é percucientemente enxergado por FERNANDO
CAMPOS SCAFF, quando elenca suas múltiplas possibilidades hodiernas do ato médico:
[...] não só a visita médica (ou seja, o exame do corpo do paciente),
mas também as atividades denominadas como preparatórias, dirigidas à
realização de objetivos de natureza diagnóstica (pesquisas radiológicas,
exames de sangue etc), ou aquelas destinadas a objetivos cirúrgicos (tais
como, por exemplo, a anestesia antes da operação) ou ainda dirigidas
a preparar a execução de outras intervenções (a realização de regimes
de emagrecimento, radio e quimioterapias, dentre outras). Além delas,
desenvolvem-se continuamente (...) as intervenções terapêuticas
diversas, realizadas em favor do paciente (cirurgias, eletro-choque, curas
físicas e psíquicas); as intervenções feitas em relação a uma pessoa, com o
fim de melhorar a saúde de outras (transplantes de órgãos, transferências
9 PINHEIRO, Antônio Gonçalves. O ato médico e os Conselhos de Medicina: Considerações
históricas, práticas e administrativas. In: NIGRE, André Luís e ALMEIDA, Álvaro Henrique
Teixeira de. Direito e Medicina: Um estudo interdisciplinar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007,
p. 37,46-60
10 Art. 4º. § 1o Diagnóstico nosológico é a determinação da doença que acomete o ser humano,
aqui definida como interrupção, cessação ou distúrbio da função do corpo, sistema ou órgão,
caracterizada por, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes critérios: I - agente etiológico reconhecido;
II - grupo identificável de sinais ou sintomas; III - alterações anatômicas ou psicopatológicas.
181
Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha
de partes da pele, transfusões de sangue etc); e as intervenções com
finalidades não estritamente terapêuticas (inseminações artificiais,
tratamentos cosméticos e plásticos, experimentações sobre a pessoa
humana, por exemplo).11
Nesse sentido, está claro que a atividade médica de hoje possui
campos de competência e modos de atuação bastante diversos da atividade médica de outrora, então prestada de modo exclusivamente individual, sem recurso à vasta evolução científica e tecnológica da ciência e
da indústria médica; alterações profundas essas que, para o citado autor,
tem como um de seus componentes principais o “grau de fiscalização de
controle que sobre ela é hoje exercido pelo próprio paciente e pela sociedade em geral”.12
O paciente atual, certamente, não é mais aquele que recebe passivamente a intervenção médica proposta. Em tempos de internet, comunicação em massa e melhoras das condições educacionais, acorre
aos consultórios médicos com informações relevantes sobre a doença
que acredita possuir, dialogando com o médico em nível anteriormente
inexistente.
Essa transformação do ato médico e da postura do paciente acabou por transformar a própria postura do profissional médico dentro
da relação médico-paciente e as relações médico-paciente em si. Diante
da necessidade de modular as interações possíveis entre o dever médico
de preservação da saúde do paciente e a proteção a direitos outros do
paciente na situação em que está colocado, FERNANDO SCAFF denomina “ética médica do dever” a atual postura médica mais adequada
no desempenho da relação médico-paciente, a qual “estaria baseada nos
direitos do homem, buscando aliar os direitos negativos (liberdade de consentimento, direito ao segredo e ao compromisso, por exemplo) aos direitos
positivos (recebimentos de cuidados, consideração da dignidade etc)”.13
11 SCAFF, op. cit., p. 34.
12 Ibid., p. 24.
13 Ibid., op. cit., p. 26. Para ele, as duas posições já superadas são: “a chamada posição hipocrática,
que deixa ao julgamento do médico as escolhas dos meios mais adequados ao paciente, sem maiores
preocupações quanto aos interesses pessoais do destinatário de tais cuidados; a posição dita utilitarista,
que consiste em pesquisar qual seria o maior bem a se fazer para o maior número de indivíduos e que
assim ignora, também ela, o direito individual”.
182
7 • O CONSENTIMENTO INFORMADO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA POR AUSÊNCIA OU DEFICIÊNCIA DO DEVER DE...
Por outro lado, tem-se entendido que a relação médico-paciente
há de ser marcada especialmente por uma confiança qualificada entre as
partes, a confiança legítima entre o médico e o paciente, a qual encontra
no direito à saúde terreno propício para sua aplicação.
Ora, todas essas transformações do ato e da atividade médica,
bem como a nova postura do profissional médico e, por fim, a consciência da necessidade da confiança legítima entre o médico e o paciente,
trazem ínsitas um dos mais sérios e intocáveis deveres hodiernos do
médico: o dever de ampla informação no âmbito da prestação da medicina curativa ou preventiva.
Onde há confiança, certamente deverá haver, acima de tudo, informação. O que se mostra como um dos principais deveres médicos
derivados da postura da ética médica do dever, da postura de boa-fé, objetiva, do profissional médico, em suma, da confiança legítima instaurada para com o paciente, e o que também se constitui em um dever ético
apurado, dada a sua introjeção nos Códigos de Ética Médica nacionais,
dentre eles o Código brasileiro.
2. A informação sob o ângulo do paciente – o direito
de ser informado, o consentimento informado e seus
requisitos
A contratação do serviço médico, com ajuste do preço, do objeto
e das condições contratuais, segue a sorte de um negócio jurídico bilateral, com a necessária declaração de vontade, sendo assim o consentimento um de seus elementos inexoráveis.
Mas, por ter o ato médico como objeto de atuação a saúde do
paciente, como campo de atuação o corpo deste e por se estar dentro de
uma relação em que há de imperar a confiança plena e legítima entre as
partes, sabidamente tal consentimento nunca poderá ser simples, tácito
ou irrefletido.
É dizer, em face das características próprias de confiança da relação médica e em face da elevação da autodeterminação do corpo como
direito irrestrito da personalidade, que há muito se tem entendido que
o paciente possui o direito, correlato ao dever médico, de ser informado, com absoluta precisão, acerca de todos os detalhes do diagnóstico,
prognóstico, detalhes e riscos do tratamento médico que lhe é proposto,
183
Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha
para que então, somente após essa gama de informações, ofereça o seu
consentimento.
Ora, vê-se então que o consentimento na relação médico-paciente - e para a contratação da prestação de serviço médico- , é absolutamente qualificado, recebendo o que se convencionou chamar no direito
brasileiro, a partir da nomenclatura norte-americana, de consentimento
informado, qualificado, esclarecido. Trata-se de um consentimento que
somente pode ser dado pelo paciente pós-informação ampla prestada
pelo médico.
Em outras palavras, considerando, de um lado, que o ato médico
possui sempre como objeto e talvez o mais elevado direito da personalidade humana, que é a sua integridade psico-física, rotineiramente
tergiversando com o próprio direito à vida, e considerando, por outro
lado, que há muito tem-se outorgado ao homem, também como direito
da personalidade, o direito à liberdade e à autodeterminação dos destinos de seu corpo e de sua saúde, não haveria como permitir qualquer
intervenção ou tratamento médico no corpo do paciente sem a sua inteira concordância.
Contudo, como dito, dada as especificidades da ciência médica, talvez das mais impenetráveis ao conhecimento leigo, mesmo para
aqueles ricos em cultura e educação, de nada adiantaria o simples consentimento do paciente se não lhe fosse prestado pelo médico toda a
sorte de informações possíveis sobre as especificidades da doença sofrida: diagnósticos, prognósticos, tratamento proposto e a sua duração,
consequências e, especialmente, riscos do tratamento etc. Somente dispondo dessas informações é que o paciente leigo terá condições de ofertar seu consentimento, ao qual, por isso, qualifica-se como informado.
O consentimento informado tem-se assim colocado como um
pressuposto para o livre exercício do direito da personalidade de autodeterminação dos destinos do próprio corpo do ser humano, o que, diante
da necessidade de intervenção médica ante a enfermidade acometida,
faz nascer o correlato direito da personalidade de escolha e mesmo de
recusa da terapêutica médica proposta. Nesse sentido, dando notas da
doutrina portuguesa, ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA afirma:
Os bens jurídicos protegidos pelo consentimento informado são, ao
nível do direito civil, para além do direito de autodeterminação nos
cuidados de saúde, a integridade física e moral da pessoa humana. (...)
184
7 • O CONSENTIMENTO INFORMADO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA POR AUSÊNCIA OU DEFICIÊNCIA DO DEVER DE...
Reconhece-se um direito à recusa de tratamentos médicos, mesmo
que esta surja como irrazoável. Este direito funda-se na liberdade de
consciência e de religião (art. 41º/1 CR P) e no direito à integridade
física e moral (art. 25º/1 CRP).14
Historicamente, a par de algumas decisões jurisprudenciais precursoras, o primeiro grande documento histórico que o fixou foi o Código de Nuremberg, de 1947, da forma seguinte: “O consentimento voluntário do sujeito humano é absolutamente essencial”. Ainda que essa
norma tivesse como objetivo claramente a proibição de experimentações clínicas com seres humanos, atrozmente realizada na Alemanha
Nazista, acabou por se transformar na base axiológica do direito médico
hodierno e da doutrina do consentimento informado.
Mais recentemente, em 04 de abril de 1997, foi promulgada pelo
Conselho da Europa a convenção sobre os direitos do homem e a biomedicina, ou Convenção de Oviedo, um tratado comunitário que esmiuçou
o direito de todo paciente ao livre consentimento informado:
Artigo 5.º. Regra geral.
Qualquer intervenção no domínio da saúde só pode ser efectuada após
ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento livre e
esclarecido.
Esta pessoa deve receber previamente a informação adequada quanto ao
objectivo e à natureza da intervenção, bem como às suas consequências
e riscos.
A pessoa em questão pode, em qualquer momento, revogar livremente
o seu consentimento.
No Código de Ética Médica brasileiro, restou estabelecido também, como princípio fundamental da conduta médica, o respeito pelo
médico das escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos
diagnósticos e terapêuticos no processo de tomada de decisões profissionais.15 Por outro lado, certo é que, quando o Código elenca as vedações éticas do médico, no que respeita ao exercício do dever de infor14 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Breves notas sobre a responsabilidade médica em Portugal.
Revista Portuguesa do Dano Corporal. Lisboa, v. 17, p. 11-22, 2007, p. 20.
15 CAPÍTULO I. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS. XXI - No processo de tomada de decisões
profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará
as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles
expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.
185
Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha
mar, acaba por elencar também, a contrario sensu, direitos do paciente
atinentes ao direito à liberdade e à autodeterminação do corpo, por
meio do consentimento informado.16
Evidentemente, tais regras éticas coadunam-se com a diretriz estampada no art. 15 do Código Civil de 2002 (“Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a
intervenção cirúrgica”), relativa ao direito da personalidade da autodeterminação dos destinos do corpo e da saúde quando da doença, de que
se extrai verdadeiro direito do paciente ao livre consentimento informado, esse como corolário prático do direito da personalidade em questão.
Não se pode esquecer, contudo, que o consentimento informado,
para que se instaure eficazmente, exige o atendimento de uma série de
requisitos, dentre eles: a consciência e a capacidade do paciente, a voluntariedade, o entendimento pleno a respeito das informações, a inexistência de vícios etc. Nas palavras de FERNANDO CAMPOS SCAFF,
O consenso do paciente não se pode fazer de modo inconsciente,
mas deve, para que se considere realmente válido, ter sido precedido
da necessária explicação, a ser prestada pelo agente de saúde, acerca
das implicações que ocorrerão oriundas da realização ou não dos
procedimentos médicos recomendados. 17
Acerca desses requisitos do consentimento informado, sob o ângulo do paciente, ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA elenca-os da
seguinte forma, em monografia específica:
16 Capítulo IV. DIREITOS HUMANOS. É vedado ao médico: Art. 22. Deixar de obter
consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a
ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. (...) Art. 24. Deixar de garantir ao paciente
o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer
sua autoridade para limitá-lo.
Capítulo V. RELAÇÃO COM PACIENTES E FAMILIARES. É vedado ao médico: Art. 31.
Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a
execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte. (...)
Art. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do
tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso,
fazer a comunicação a seu representante legal. (...) Art. 42. Desrespeitar o direito do paciente de
decidir livremente sobre método contraceptivo, devendo sempre esclarecê-lo sobre indicação,
segurança, reversibilidade e risco de cada método.
17 SCAFF, op. cit., p. 98.
186
7 • O CONSENTIMENTO INFORMADO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA POR AUSÊNCIA OU DEFICIÊNCIA DO DEVER DE...
Para se obter um consentimento válido é necessário, em primeiro
lugar, que o paciente tenha a capacidade para tomar decisões. (…) Em
segundo lugar, o paciente deve ter recebido informação suficiente sobre
o tratamento proposto. (…) Finalmente, o paciente tem de consentir
(ou recusar) o tratamento de livre vontade, sem coação ou vícios da
vontade. Trata-se aqui da explicitação das exigências fundamentais de
todo o ato jurídico-civil: a liberdade e a consciência da declaração.18
Por outro lado, de uma forma geral, pode-se afirmar que o conteúdo do dever de informação do médico, que servirá de base ao livre
consentimento informado do paciente, é aquele elencado no art. 34 do
Código de Ética Médica, ou seja, o consentimento informado pressupõe
informações ao menos sobre o “diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os
objetivos do tratamento”.
Segundo CARLOS EMMANUEL JOPPERT RAGAZZO, o médico sempre deverá mencionar ao paciente ao menos o seguinte:
(i) diagnóstico, tratamento e prognóstico; (ii) os benefícios esperados;
(iii) os riscos médicos significativos associados; (iv) a provável
duração da incapacidade; (v) outras opções de atenção ou tratamento
significativas do ponto de vista médico; (vi) que se pode recusar o
tratamento proposto (na medida em que a legislação permita), logo após
ter sido adequadamente informado; devendo-se destacar, na informação,
as consequências médicas que a recusa acarreta à saúde; e (vii) as
informações sobre as necessidades posteriores à alta (atenções, cuidados
e tratamentos), da parte do médico ou de alguém que este delegue.19
Contudo, certamente, uma questão das mais intricadas a respeito
do tema é a medida ou grau em que as informações prestadas pelo médico deverão ocorrer, o que será abordado no último capítulo conclusivo
deste trabalho, conjuntamente com a possibilidade de responsabilização
do profissional médico por ausência, ou por deficiência, da prestação
18 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Responsabilidade civil médica na Europa: objectivação
da responsabilidade e consentimento informado. In: NIGRE, André Luis e ALMEIDA, Álvaro
Henrique Teixeira de. Direito e Medicina. Um estudo interdisciplinar. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007, p. 99-143; p. 118.
19 RAGAZZO, Carlos Emmanuel Joppert. Os requisitos e limites do consentimento informado.
In: NIGRE, André Luis e ALMEIDA, Álvaro Henrique Teixeira de. Direito e Medicina. Um estudo
interdisciplinar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 145, 150-170.
187
Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha
dessas informações, mormente na hipótese em que ainda assim o médico tenha cumprido eficazmente o dever principal contratado.
Em caráter prévio a essa discussão, há de se observar preliminarmente que o consentimento informado também significa uma qualificação do consentimento que há de ser dado em todo negócio jurídico de
contratação de serviços médicos, o que será abordado no capítulo a seguir. Por fim, mostra-se também perceptível que tanto o dever de informação do médico quanto o direito de informação do paciente, que leva
ao consentimento informado, constituem-se em aplicações possíveis do
princípio da boa-fé objetiva, em seu dever anexo ou lateral de informar,
no campo da relação entre ambos; o que também se abordará a seguir.
3. O consentimento informado como elemento
qualificador da declaração de vontade nos negócios
jurídicos de contratação de serviços médicos e a sua
vinculação com o princípio da boa-fé objetiva
Para além de corolário prático do direito da personalidade de
escolha da terapêutica médica, quer nos parecer que o consentimento
informado também pode ser visualizado sob o ângulo da teoria geral
do direito civil. Nesse sentido, mostra-se também como um elemento
qualificador da declaração de vontade emitida nos negócios jurídicos,
cujo objeto seja a prestação de um serviço médico de saúde.
Os negócios jurídicos, sabidamente, são o campo de exercício da
autonomia da vontade do homem, da autorregulação de seus interesses,
sendo esse o seu nítido conteúdo ideológico, o que se faz por meio da
“a declaração de vontade privada destinada a produzir efeitos jurídicos
pretendidos pelo agente e reconhecidos pelo direito”,20 a qual, contudo,
submete-se a limites significativos: a lei, os bons costumes e, a nosso
ver, os princípios contratuais contemporâneos: a) a boa-fé objetiva; b)
a função social dos contratos; c) a equivalência material das prestações
contratuais.21
20 AMARAL, Francisco. Introdução ao Direito Civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 499.
21 A propósito, consulte-se nossa obra: CUNHA, Wladimir Alcibíades Marinho Falcão. Revisão
Judicial dos Contratos. Do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002. São Paulo:
Método, 2007.
188
7 • O CONSENTIMENTO INFORMADO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA POR AUSÊNCIA OU DEFICIÊNCIA DO DEVER DE...
Ora, sem a informação adequada prestada pelo médico, acerca do
diagnóstico, prognóstico e características e riscos do tratamento, ou com
informação deficiente, o consumidor-paciente não terá ao seu dispor conhecimentos suficientes para o exercício de sua escolha. Assim ocorrendo, o consentimento informado não se instaurará e, em consequência, a
declaração de vontade, se transmitida, não ocorrerá isenta de vícios.
Na prestação de serviços médicos, dever-se-á estar diante de declaração de vontade necessária e extremamente qualificada, não simples,
havendo de ser, tanto quanto possível, coincidente com a vontade interna
do declarante, que somente poderá ser dada depois da perfeita assimilação de informações corretas e adequadas prestadas pelo médico.
Caso a declaração tendente ao exercício do direito da personalidade em tela tenha sido emitida sem observância do consentimento
informado, estar-se-á diante de uma vontade viciada, isto é, de vícios do
consentimento; ou, em expressão mais objetiva e ampla, de defeitos do
negócio jurídico. Mais especificamente, dentre esses, estar-se-á diante
de erro, quer por conhecimento defeituoso da realidade, quer por completa ignorância dessa, isto é, por falsa representação da realidade ou
pela ausência completa de conhecimento sobre determinada realidade.22
Num ou noutro sentido, a imbricação entre consentimento informado e declaração de vontade como elemento do negócio jurídico
é patente nas contratações de serviços médicos. De um lado, somente haverá consentimento informado se esse houver sido precedido das
suficientes e adequadas informações médicas. Por outro lado, somente
haverá declaração de vontade isenta de vícios na contratação médica se
houver consentimento informado.
22 Conforme Maria Helena Diniz, o erro, “noção inexata, não verdadeira, sobre alguma coisa,
objeto ou pessoa, que influencia a formação da vontade”, acaba por impedir essa, a vontade, “se
forme em consonância com sua verdadeira motivação; tendo sobre um fato ou sobre um preceito
noção incompleta, o agente emita sua vontade de modo diverso do que a manifestaria se dele tivesse
conhecimento exato ou completo”. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro 1.
Teoria Geral do Direito Civil. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 465-466. Caio Mário da Silva
Pereira, por sua vez, afirma que comete erro aquele que “por desconhecimento ou falso conhecimento
das circunstâncias, age de modo que não seria sua vontade, se conhecesse a verdadeira situação”.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1997, p. 324. v. 1. Anote-se, contudo, que a distinção entre erro em sentido estrito e ignorância não
guarda maior importância à luz do Código Civil de 2002, eis que esse trata das duas figuras apenas
sob a denominação geral de erro.
189
Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha
Sob outro aspecto, o consentimento informado liga-se indissociavelmente com os deveres anexos de informação que nascem a partir
da consideração do princípio da boa-fé objetiva como modelo ou arquétipo ideal de comportamento contratual pelos co-contratantes.
Com efeito. Quer realizado no âmbito das relações de consumo,
quando diante de contratação em massa, quer no âmbito particular da
contratação individual com profissional específico, o contrato médico
possui natureza e características básicas de um contrato de prestação
de serviços:23 bilateralidade, comutatividade, consensualidade, onerosidade, de execução instantânea (consultas, exames) ou de mais longa
duração, bem como a nota específica do consentimento informado.
Ora, dentro da teoria contratual contemporânea, um dos princípios capitais é o da boa-fé objetiva, o qual, como se verá adiante, possui
intensa ligação com o consentimento informado. Tendo como um de
seus fundamentos maiores a confiança na conduta do co-contratante, a
boa-fé objetiva liga-se enormemente à contratação médica, em face de
nessa imperar a aludida noção de confiança legítima.
O princípio social da boa-fé objetiva não possui, certamente, um
caráter unívoco. Diversa da boa-fé subjetiva, a boa-fé objetiva, em uma
de suas acepções mais importantes para a teoria geral dos contratos,
exerce o papel de verdadeiro paradigma positivo de comportamento dos
agentes nas relações jurídicas privadas, e especificamente nas relações
jurídicas contratuais, sejam de consumo, sejam civis comuns, eis que,
com ele, e por meio dele, cada parte contratante deve adotar posições
de cooperação e lealdade para com a outra parte, em prol da finalidade
negocial, gerando na contraparte a confiança de que suas mais legítimas
expectativas serão atendidas.
Corporificando assim um modelo de conduta e impondo a prática de deveres anexos de conduta, dentre eles o dever de informar,
fundamenta o dito princípio o dever de informação a ser prestado pelo
médico, de modo que o consentimento informado a ser ofertado pelo
consumidor-paciente também pode claramente ser situado no e a partir
23 Nesse sentido, Fernando Campos Scaff, para quem, em princípio, “as combinações acerca
da realização de uma consulta clínica ou de uma intervenção cirúrgica são tratadas a partir do
surgimento de um contato direto e pessoal entre as partes, momento no qual são acertados o preço, o
conteúdo do serviço a ser prestado, o prazo e as outras condições da contratação. Realizam-se, pois, os
atos usuais à criação de um contrato dessa natureza, de acordo com o gênero por vezes tipificado na
legislação ordinária”. SCAFF. op. cit., p. 30-31.
190
7 • O CONSENTIMENTO INFORMADO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA POR AUSÊNCIA OU DEFICIÊNCIA DO DEVER DE...
do princípio contratual da boa-fé objetiva, especialmente no que respeita à sua função de norma de conduta nos contratos tendente à criação
de deveres jurídicos.
Introjetadas no Código Civil de 2002 em seus arts. 113, 187 e
422, essas passagens correspondem às funções identificadas, pela ampla
doutrina, para a boa-fé objetiva, quais sejam respectivamente: a) a boafé objetiva como cânone interpretativo-integrativo; b) a boa-fé objetiva
como norma limitadora ao exercício de direitos subjetivos; c) a boa-fé
objetiva como norma de conduta nos contratos tendente à criação de
deveres jurídicos24.
Enfocando especialmente essa última função, a boa-fé objetiva
como norma de conduta nos contratos tendentes à criação de deveres
jurídicos, encetada como princípio e como cláusula geral, tanto no art.
422 do Código Civil de 2002 quanto no art. 51, IV, do Código de Defesa
do Consumidor, percebe-se que, em termos de relação contratual, de
consumo ou comum, a boa-fé objetiva tem importância capital, pois
corporifica, fundamentalmente, o dever de conduta cooperativa, respeitosa, leal, proba, honesta, que deve imperar não só nas relações jurídicas
contratuais quanto em todas as relações sociais, apta a gerar confiança
no outro contratante e apta a atender as expectativas legítimas surgidas a partir dessa confiança despertada. Confiança que se coloca, assim,
como bem afirma JORGE CESA FERREIRA DA SILVA,25 como um dos
mais importantes fundamentos materiais da boa-fé objetiva.
Diante de tal construção, JUDITH MARTINS-COSTA vê a boafé objetiva como um veraz modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico que deverá ser rigorosamente seguido pelos contratantes:
“cada pessoa deve ajustar a sua própria conduta a esse arquétipo, obrando
como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade”.26
24 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direto Privado. Sistema e tópica no processo
obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 427 et seq. Em similar sentido, veja-se
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003, p. 180.
25 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A Boa-Fé e a Violação Positiva do Contrato. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, p. 48.
26 MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um “sistema em construção” – As
cláusulas gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 753, p.
24-48, 1998, p. 42.
191
Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha
Na realidade, para a correta compreensão contemporânea da
boa-fé objetiva, deve-se ter em mente que as relações obrigacionais não
podem mais ser vistas como portadoras de prestações unívocas, mas
sim transmissoras de uma série de deveres de conduta e contratuais que
objetivam a realização dos interesses legítimos das partes e a realização
do objetivo do contrato, visualizando-se o contrato como um verdadeiro processo,27 do qual nascem direitos e deveres que não só são resultantes da obrigação principal.
Dito de outro modo, com o princípio social da boa-fé objetiva,
o contrato então passa a envolver não apenas a obrigação de cumprir a
prestação principal, mas envolve também uma obrigação de se conduzir de forma proba, leal, honesta, cooperativa, não abusiva, passando a
existir, assim, duas classes de deveres dentro da relação obrigacional:
deveres de prestar e deveres de conduta.28
Esses últimos, que acompanham o contrato, são denominados,
pela ampla doutrina, de deveres anexos, secundários ou ainda laterais,
podendo-se afirmar, portanto, que dentro da perspectiva da boa-fé objetiva, a relação contratual obriga não somente ao cumprimento da prestação principal, mas também ao cumprimento dessas prestações anexas, as quais podem ser agrupadas tanto em relação à etapa contratual
(formação, celebração, execução do contrato ou mesmo após a extinção
do contrato) quanto em relação à sua natureza (deveres de proteção ou
de cuidado, deveres de esclarecimento ou de informação e deveres de
lealdade ou cooperação).29
Tem-se, portanto, como primeiro dever anexo a ser observado
pelos contratantes, o dever de proteção ou de cuidado, cujo conteúdo
está na conduta voltada à preservação e proteção do co-contratante em
relação a danos à sua integridade pessoal, física ou moral, e à integridade de seu patrimônio.
A seu turno, o dever secundário de informação ou de esclarecimento deve acompanhar os contratantes durante todo o transcurso
do contrato, e não apenas na fase pré-contratual, encontrando-se esse
27 Como defendera, há muito, COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A obrigação como processo. São
Paulo: FGV Editora, 2007.
28 MARQUES, op. cit., p. 182-183.
29 Nesse sentido, AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. A boa-fé na relação de consumo. Revista de
Direito do Consumidor. São Paulo, v. 14, p. 20-27, abr.-jun. 1995, p. 26-27.
192
7 • O CONSENTIMENTO INFORMADO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA POR AUSÊNCIA OU DEFICIÊNCIA DO DEVER DE...
dever estampado em diversas passagens do Código Civil de 2002 e do
CDC, a exemplo de seus arts. 30, 31 e 46.
Ora, certamente o dever de informação é o dever anexo do capital nas relações ético-contratuais entre o médico e o paciente, já que
pauta a atuação do primeiro e, em consequência, o livre consentimento
informado do segundo. Nesse sentido, alude FERNANDO CAMPOS
SCAFF que
[...] o consentimento informado constitui-se num dever lateral do
atendimento médico, relacionado com aquelas obrigações principais,
concernentes à realização do tratamento indicado pela melhor conduta e
à organização do processo clínico.30
Finalmente, o terceiro dever anexo destacado é o dever de cooperação, isto é, o dever de colaborar durante a execução do contrato
com a contraparte, conforme o paradigma da boa-fé objetiva. Cooperar,
conforme CLÁUDIA LIMA MARQUES, é agir com lealdade e probidade, não obstruindo ou impedindo as expectativas legítimas do outro
contratante na consecução do contrato.31
Em suma, o princípio da boa-fé objetiva envolve a observância
de deveres anexos, secundários ou colaterais de conduta por ambas
as partes contratantes, nos momentos de pactuação, de execução e de
dissolução dos contratos, e mesmo numas fases pré e pós-contratual,
tanto nas relações contratuais de consumo, regidas pelo CDC, quanto nas relações contratuais comuns, regidas pelo Código Civil de 2002.
Ligando-se então os deveres anexos “ao exato processamento da relação
obrigacional, isto é, à satisfação dos interesses globais envolvidos na relação obrigacional (…)”,32 clara está a intensa vinculação do princípio
da boa-fé objetiva, especialmente por seu dever anexo de prestação da
informação, com o livre consentimento informado,33 necessário na relação médico-paciente.
30 SCAFF,. op. Cit., p. 120-121.
31 MARQUES,, op. cit., p. 194.
32 MARTINS-COSTA, op. cit., p. 44.
33 A propósito dessa imbricação, veja-se o julgado a seguir do STJ: RECURSO ESPECIAL.
RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. ART. 14 DO CDC. CIRURGIA PLÁSTICA.
OBRIGAÇÃO DE RESULTADO. CASO FORTUITO. EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE.
(...) 4. Age com cautela e conforme os ditames da boa-fé objetiva o médico que colhe a assinatura
do paciente em “termo de consentimento informado”, de maneira a alertá-lo acerca de eventuais
193
Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha
4. A ausência ou deficiência do dever médico de
informação, as suas implicações para o consentimento
informado e a possibilidade de responsabilização
médica decorrente.
Enfocada a noção, requisitos e conteúdo do consentimento informado, bem como estabelecida a sua vinculação com a declaração de
vontade nos negócios jurídicos e com o princípio da boa-fé objetiva,
cumpre agora traçar alguns pressupostos da eventual responsabilidade
médica na hipótese da ausência ou deficiência de informação pelo médico a influenciar negativamente o consequente consentimento informado pelo paciente.
Com efeito, sabidamente, a responsabilização do profissional médico ocorre, dentro da teoria geral do direito privado, de forma subjetiva, isto é, mediante a aferição de sua conduta culposa, nos termos do art.
14, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor.34
Ora, tendo havido culpa médica por erro de diagnóstico ou erro
do tratamento em si, ocasionada por negligência, imprudência ou imperícia, é evidente que, se danos daí advierem, deverão ser plenamente
indenizados. Aliás, como dito em linhas anteriores, a responsabilidade
médica tem enfrentado desenvolvimento certamente não visto em relação a outras profissões liberais. Tal ato pode ser explicado, em grande
medida, pela expansão da própria atividade médica, a qual acaba alargando os horizontes de sua responsabilidade.
Particularmente, a propósito dos danos possíveis e passíveis de
indenização, é importante lembrar que a responsabilidade médica no
Brasil assistiu nas últimas décadas ao surgimento de uma nova categoria autônoma de danos, diversa dos danos patrimoniais ou materiais e
mesmo dos danos extrapatrimoniais morais35, qual seja, a categoria dos
problemas que possam surgir durante o pós-operatório. (REsp 1180815/MG, Rel. Min. Nancy
Andrighi, 3ª Turma, julg. em 19/08/2010, DJe 26/08/2010).
34 A respeito desse tema, consulte-se: VASCONCELOS, Fernando Antônio de. Responsabilidade
do Profissional Liberal nas Relações de Consumo. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007.
35 Tem-se entendido que o conceito de danos morais, na ordem civil-constitucional hodiernamente
imperante, nunca poderá passar ao largo dos conceitos de dignidade da pessoa humana, direitos
fundamentais e direitos da personalidade, tratando-se, em verdade, de lesão à pessoa humana em
sua dignidade e em seus direitos da personalidade. Em outras palavras, entende-se que a leitura
civil-constitucional mais consentânea com a Constituição é deixar aos danos morais apenas as
194
7 • O CONSENTIMENTO INFORMADO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA POR AUSÊNCIA OU DEFICIÊNCIA DO DEVER DE...
danos estéticos, há muito tratada na doutrina francesa e, na brasileira,
precursoramente, por TERESA ANCONA LOPEZ36, e mais recentemente por ENÉAS DE OLIVEIRA MATOS.37 38 39
situações de violação à personalidade, seja por lesão à dignidade da pessoa humana, a direitos
fundamentais ou a direitos da personalidade.
Rol autorizado de autores nacionais doutrinam nesse sentido. Assim, para Maria Celina Bodin
de Moraes, os danos morais constituem lesão à dignidade da pessoa humana e à cláusula geral
da tutela da pessoa humana (MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana. Uma
leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 131). Similarmente,
Maria Helena Diniz, tratando do denominado dano moral direto, vai defini-lo como sendo “a
lesão a um interesse que visa a satisfação ou gozo de um bem jurídico extrapatrimonial contido nos
direitos da personalidade (...) ou nos atributos da pessoa (...). Abrange, ainda, a lesão à dignidade
da pessoa humana (CF 88, art. 1, III) (DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro.
Responsabilidade Civil. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 91)”.
Paulo Luiz Netto Lôbo, a seu turno, é contundente ao afirmar a inexistência de danos morais
fora do âmbito dos direitos da personalidade. Segundo o autor, “a interação entre danos morais e
direitos da personalidade é tão estreita que se deve indagar da possibilidade da existência daqueles
fora do âmbito destes”. Assim é que os “danos morais são violações exclusivamente dos direitos da
personalidade, não tendo cabimento, no direito brasileiro, a invocação a “preço da dor”” (LÔBO,
Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 285-286). De igual
modo, o autor argentino Ricardo Luis Lorenzetti, Ministro da Suprema Corte do país, também
associa danos morais e violação de direitos, para ele, fundamentais: “(...) Pensamos que la cuestión
deve ser enfocada a través de la lesión de derechos fundamentales de la persona y que en consecuencia
puede hablarse de daño a la persona” (LORENZETI, Ricardo Luis. La Responsabilidad Civil.
Revista de Direito do Consumidor, v. 46, p. 41-76, 2003, p. 53-55).
A propósito, consulte-se ainda nossa tese de doutorado defendida perante o Departamento de
Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no prelo: CUNHA, Wladimir
Alcibíades Marinho Falcão. Danos extrapatrimoniais e função punitiva. Tese de doutorado
defendida perante a Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012.
36 Para ela, os danos estéticos seriam “qualquer modificação duradoura ou permanente na aparência
externa de uma pessoa, modificação esta que lhe acarreta um “enfeamento” e lhe causa humilhações
e desgostos, dando origem, portanto, a uma dor moral”. LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético:
responsabilidade civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 36.
37 Esse autor oferta uma noção mais objetiva do dano, ligando-o à ofensa à integridade física. Dano
estético seria assim: “Toda ofensa causada aos direitos físicos da pessoa humana, correspondentes à
integridade física da pessoa humana, ligados diretamente à pessoa de seu titular, sejam eles, v.g.,
direito à higidez corpórea e às partes do corpo, protegendo o corpo de qualquer modificação não
autorizada”. MATOS, Enéas de Oliveira. Dano moral e dano estético. Rio de Janeiro: Renovar,
2008, p. 168-169.
38 Para ambos os autores, a autonomia entre danos morais e danos estéticos seria evidente, já
que esses últimos representariam violação ao direito à integridade psicofísica, enquanto os danos
morais estariam ligados tão-só à violação da integridade moral da pessoa humana. Veja-se, a
propósito, Enéas Matos: “(...) retira-se a autonomia do dano estético do dano moral, considerando
o bem juridicamente tutelado, vez que o dano estético corresponde a uma ofensa à integridade física,
enquanto o dano moral corresponde a uma ofensa à integridade moral(...). Assim sendo, se danos
diferentes são – dano moral e estético -, no mesmo evento podem ter origem esses dois danos, e, por
consequência, duas relações de reparação diferentes, cumuláveis.” Idem, ibidem.
39 Sem embargo da existência de divergências doutrinárias quanto a essa autonomia, é de se
195
Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha
Contudo, a grande controvérsia em relação à responsabilização
médica, como dito alhures, reside na eventual possibilidade de responsabilização do médico não por erro de conduta, mas sim em face da
ausência ou deficiência no seu dever de informação plena, acarretando ausência ou deficiência do consentimento informado a ser prestado
pelo paciente, quer na situação em que, durante a intervenção médica,
os riscos possíveis se materializem e danos ao paciente ocorram – repita-se, não por erro médico, mas sim pelo risco iatrogênico ou biológico próprio da medicina –, quer mesmo quando dano algum tenha
ocorrido na intervenção médica e essa se tenha acompanhado de pleno
sucesso terapêutico.
Em outras palavras, caso tenham sido provocados danos por negligência, imprudência ou imperícia médica, seja por erro de diagnóstico, seja por erro de conduta propriamente dita, certa estará a responsabilidade médica, subjetiva. De igual modo, também não haverá dúvidas
quanto à responsabilização do profissional caso tenha faltado com o seu
dever de informação e, ainda por cima, tenha provocado danos mediante má prática médica, isto é, conduta culposa.
A questão central que se coloca estará então justamente na possibilidade de causação de danos morais, ou mesmo danos estéticos em
situações específicas, em atuações médicas em que, muito embora o
médico tenha faltado com o seu dever de informação, não tenham sido
acarretados quaisquer agravamentos ao estado de saúde do paciente, ao
contrário, somente melhoras lhe tenham sido impingidas, ou se danos
ocorreram, não tenham sido causados por má prática médica, mas sim
pelos riscos próprios da intervenção médica à vista da enfermidade do
paciente40.
salientar que os danos estéticos também foram reconhecidos pela ampla jurisprudência, tratandose inclusive de matéria sumulada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, por meio da súmula
387: “É possível a acumulação das indenizações de dano estético e moral”.
40 André Gonçalo Dias Pereira também elenca essas duas possibilidades ligadas à ausência do dever
de informação e de consentimento informado, no que ele denomina de intervenções arbitrárias: “Se a
intervenção médica for arbitrária, porque não se obteve consentimento ou se obteve um consentimento
viciado (por falta de informação adequada), devemos distinguir duas situações: na primeira, verificase uma intervenção médica sem consentimento (ou com consentimento viciado), mas sem quaisquer
danos (corporais), ou seja, sem qualquer agravamento do estado de saúde do paciente; na segunda, a
intervenção é arbitrária e não obteve êxito, ou verificaram-se riscos próprios da operação, ou provocou
consequências laterais desvantajosas.” Claro está, como dito acima, que, nessa segunda hipótese, a
responsabilidade médica é patente, seja pelo erro de conduta médica em si, seja porque os riscos
próprios da intervenção médica ocorreram sem que o paciente estivesse para eles alertado e com
196
7 • O CONSENTIMENTO INFORMADO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA POR AUSÊNCIA OU DEFICIÊNCIA DO DEVER DE...
Ora, considerando toda a histórica evolução da teoria dos direitos
da personalidade, pode-se responder inicialmente que se mostra plenamente possível a responsabilização médica por mera ausência do dever
de informação, eis que, ao não ter sido permitido o adequado consentimento informado, acabou-se por violar o direito da personalidade de
autodeterminação dos destinos do corpo e da saúde do paciente envolvido, que inclusive recebe previsão expressa no art. 15 do Código Civil.
Nesse exato sentido, doutrina FERNANDO CAMPOS SCAFF
que o inadimplemento do médico quanto à sua obrigação de obter o
consentimento informado do paciente é “causa autônoma de culpa, reconhecida como uma agressão à liberdade e aos direitos da personalidade
do paciente”. De tal sorte, pode gerar, por si só, “pretensão distinta à
obtenção de uma indenização, independentemente dos resultados que venham a ser alcançados com tal tratamento que não tenha sido autorizado
previamente”. É dizer, ainda nas palavras do autor, que “surge daí, em
tese, justa pretensão do paciente ao ressarcimento desse específico dano
causado, ainda que outros tenham sido evitados em virtude daquela mesma atuação”.41
Em sentido similar, também se posiciona SÉRGIO CAVALIERI
FILHO, para quem:
Embora médicos e hospitais, em princípio, não respondam pelos riscos
inerentes da atividade que exercem, podem eventualmente responder
se deixarem de informar aos pacientes as conseqüências possíveis do
tratamento a que serão submetidos. Só o consentimento informado
pode afastar a responsabilidade médica pelos riscos inerentes à sua
atividade.42
Nessa perspectiva apresentada, é válido destacar o precedente do
Superior Tribunal de Justiça, em acórdão da lavra do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior:
RESPONSABILIDADE CIVIL. Médico. Consentimento informado. A
despreocupação do facultativo em obter do paciente seu consentimento
informado pode significar - nos casos mais graves - negligência no
essa intervenção houvesse concordado, por meio de seu consentimento informado.
41 SCAFF, op. cit., p. 98.
42 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Atlas, 2008, p. 378.
197
Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha
exercício profissional. As exigências do princípio do consentimento
informado devem ser atendidas com maior zelo na medida em que
aumenta o risco, ou o dano. Recurso conhecido. (Resp 436.827/SP, Rel.
Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em
01/10/2002, DJ 18/11/2002, p. 228)43
E ainda o recente julgado do Tribunal de Justiça do Paraná:
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO
MORAL. VASECTOMIA. AUSÊNCIA DE CULPA. TERMO DE
CONSENTIMENTO INFORMADO. RISCOS DE RECANALIZAÇÃO
ESPONTÂNEA. NECESSIDADE DE EXAMES. AUSÊNCIA DE
PROVA. DEVER DO MÉDICO. DANO MORAL CARACTERIZADO.
VALOR RAZOÁVEL. 1. Ainda que reconhecida a ausência de culpa do
médico no ato da cirurgia de vasectomia, responde pelo dano moral
em decorrência da falta de informações claras e precisas sobre os riscos
de recanalização espontânea e dos exames de acompanhamento. (...)
APELAÇÃO NÃO PROVIDA. (TJ-PR - AC: 7489096 PR 0748909-6,
Relator: Nilson Mizuta, Data de Julgamento: 16/06/2011, 10ª Câmara
Cível, Data de Publicação: DJ: 664)
Na linha apresentada, a responsabilização médica poderia ter
tido grandes chances de ser implementada se, por exemplo, houvesse
no caso concreto outras opções de tratamento, que, no entanto, não puderam ser sopesadas e escolhidas pelo paciente em face da ausência do
dever de informação pelo profissional médico.
Assim, imagine-se se determinado médico simplesmente extirpa
os seios de uma mulher de meia-idade, praticamente à sua revelia, pelo
fato de suas ascendentes terem falecido de violento câncer de mama,
sem que, contudo, tenha especificado a ela que os riscos de que viesse
a herdar herança genética negativa seria em torno, por exemplo, de 5%
(cinco por cento). Ora, muito embora tal índice seja uma percentagem
relativamente alta, é patente que o médico não poderia se imiscuir na
decisão da paciente, que poderia simplesmente optar, devidamente in43 Veja-se ainda outro acórdão da lavra do mesmo Ministro: RESPONSABILIDADE CIVIL.
Hospital. Santa Casa. Consentimento informado. A Santa Casa, apesar de ser instituição sem fins
lucrativos, responde solidariamente pelo erro do seu médico, que deixa de cumprir com a obrigação
de obter consentimento informado a respeito de cirurgia de risco, da qual resultou a perda da visão
da paciente. Recurso não conhecido. (Resp 467.878/RJ, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR,
QUARTA TURMA, julgado em 05/12/2002, DJ 10/02/2003, p. 222)
198
7 • O CONSENTIMENTO INFORMADO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA POR AUSÊNCIA OU DEFICIÊNCIA DO DEVER DE...
formada, em manter os seus seios e conviver com a ameaça patente de
um futuro câncer de mama.44 Ou, imagine-se o médico que, ao realizar
o parto do 10º filho de uma paciente de condições econômicas e educacionais visivelmente deficientes, promove-lhe arbitrariamente laqueadura sem antes obter o seu consentimento informado, ou mesmo sem
sequer lhe comunicar o procedimento.
Claro está, nesses exemplos, que, se de um lado, a violação à integridade física do paciente estaria cientificamente - ante o estado da arte
médica -, plenamente justificada, trazendo-lhe até mesmo benefícios
médicos, por outro lado, séria violação ao seu direito da personalidade
à autodeterminação dos cuidados de saúde foi-lhe ocasionado, sendo
possível a indenização por danos morais.45
De toda sorte, muito embora o caráter absoluto desse direito da
personalidade à escolha do tratamento médico, consideramos que alguns contrapontos devem ser destacados para a responsabilização médica no caso de ausência ou deficiência de informação ao paciente.
De fato, é preciso observar igualmente a conduta médica sob o
ângulo do conteúdo da informação a ser prestada pelo médico, isto é,
44 Veja-se o exemplo similar ofertado por André Gonçalo Dias Pereira: “(...) em alguns casos,
apesar da melhoria de saúde da paciente, a intervenção arbitrária foi tão grave que justifica uma
indenização pelos danos morais. Assim acontecerá, v.g., no caso de uma histerectomia que, embora
eliminando um risco de câncer, causou comprovadamente danos morais gravíssimos à mulher”.
PEREIRA, op. cit., p. 120.
45 Teresa Ancona Lopes, com apoio em Jean Penneau, afirma, percucientemente, que a ausência
de informação em intervenções médicas dispensáveis ou adiáveis deverá sofrer penalidades mais
graves. São suas palavras: “Até que ponto um defeito de informação pode ensejar a responsabilidade
médica? Ou melhor, quando a falta de informação vai integrar o nexo causal levando o médico a
responder? Sobre isso temos magistral lição de Jean Penneau, que começa por distinguir entre
intervenções indispensáveis e dispensáveis ou adiáveis. Se sobrevier dano físico por causa de defeito
de informação em operação indispensável, que assim razoavelmente se presuma, deve-se concluir que,
mesmo se o paciente fosse melhor informado, deveria resignar-se a suportar as consequências, desde
que nenhum erro técnico tenha sido cometido, é claro. Não há nexo de causalidade, nesse caso, entre
o defeito de informação e o dano. De outro lado, pode-se pedir dano moral por defeito de informação,
apesar de a operação ser inevitável, quando o paciente não pôde se preparar, por falta de informação,
para eventualidade tão grave (mutilação), que, além do golpe psíquico, acarreta-lhe incapacidade
temporária. Se tivesse sido informado, poderia fazer a operação em ocasião mais propícia. É o caso de
paciente que operou hérnia com necrose do testículo. Apesar de não ter havido nenhuma falha técnica
nem dano material, o médico foi condenado a pagar danos morais por defeito de informação e pelas
razões acima expostas. A informação defeituosa é muito mais grave nas operações dispensáveis, como
aquelas de cirurgia plástica cosmetológica. Mas não é apenas nessa situação que aparece a falta de
informação no nexo de causalidade das operações dispensáveis. É ainda Penneau que mostra caso em
que se o cliente tivesse sido melhor informado teria optado por outra solução, que não o exporia aos
riscos da internação”. LOPEZ, op. cit. p. 115-116.
199
Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha
sob o ângulo da disponibilização de informações ao paciente hábeis a
levar este ao consentimento informado, o que poderá funcionar como
excludente de sua responsabilização. Em outras palavras, algumas questões pertinentes podem ser levantadas a fim de bem verificar se realmente esse foi adimplente ou inadimplente com sua obrigação de colher previamente o consentimento informado do paciente: a) O que o
médico deve informar?; b) Até que ponto deve informar?; c) Quanto às
opções de tratamento, o que deve ele informar?; d) Quanto aos riscos da
intervenção, o que deve o médico informar?.
Ora, não é possível descurar-se, logo de início, que a comunicação entre o médico e o paciente enfrenta rotineiramente sérias dificuldades, em face de um dos polos dessa relação de confiança deter os
conhecimentos técnicos enquanto o outro é ocupado por pessoa hipossuficiente, muitas vezes quase totalmente leiga.46
Sob esse influxo, aparenta que o médico terá se desincumbido
de seu dever de indenizar se houver transmitido ao paciente apenas as
opções razoáveis de tratamento e não todas as opções possíveis; como,
por exemplo, terapias ainda controversas cientificamente ou terapias somente possíveis em países estrangeiros ou em instituições médicas de
ponta, em situação claramente fora dos limites econômicos do paciente.
É exatamente essa a opinião de CARLOS EMANUEL JOPPERT RAGAZZO, em monografia específica sobre o tema:
Todas as possibilidades de tratamento devem ser necessariamente
informadas ao paciente? Quais riscos merecem ser transmitidos ao
paciente? ( ) Seria ilógico demandar de um médico a obrigação de
comunicar ao paciente todos os tratamentos possíveis para a sua
patologia. Em certas instâncias, esse excesso de informação poderia
contribuir para uma enorme confusão, prejudicando a capacidade
46 Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo resume a questão nos seguintes termos: “Há diversas
barreiras ao acesso à informação médica. A maior de todas talvez seja a barreira linguística, pois o
vocabulário profissional é de difícil compreensão para leigos, ainda mais se levando em consideração
os diferentes níveis de educação e de conhecimento médico que cada paciente pode ter. (...) Tendo em
vista as inúmeras dificuldades presentes no processo de comunicação, caberá ao médico envidar seus
melhores esforços para tornar a informação adequada. De uma forma geral, as informações deverão
ser verdadeiras, claras e suficientes, assim com as que devem ser prestadas em qualquer caso de dever
de informação. Embora seja uma técnica que deva ser individualizada de acordo com o paciente,
há informações básicas sem as quais nenhum consentimento poderá ser considerado válido. Para
tornar o consentimento válido, o pilar básico das informações indispensáveis seriam o diagnóstico, o
tratamento, as alternativas e os riscos” In: RAGAZZO, op. cit., p. 149.
200
7 • O CONSENTIMENTO INFORMADO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA POR AUSÊNCIA OU DEFICIÊNCIA DO DEVER DE...
decisória que determina o consentimento informado. Por esse motivo,
se exige apenas a informação quanto às opções razoáveis de tratamento
para a patologia diagnosticada, preservando-se o papel do médico na
relação, a quem compete uma certa liberdade terapêutica.47
Quando aos riscos do tratamento proposto, a questão do conteúdo do dever de informação mostra-se ainda mais delicada: os riscos
normais e previsíveis devem sempre ser comunicados previamente ao
paciente, a fim de que possa ofertar eficazmente o seu consentimento
informado. Igualmente, riscos absolutamente raros, porém graves ou
severos, deverão ser mencionados.48 É patente ainda que a transmissão
dos riscos deverá levar em conta o paciente individualmente considerado, ou seja, o paciente concreto, levando em conta não só os seus limites
intelectuais e educacionais de entendimento, mas também a categoria
em que ele se enquadra, v.g., se obeso, se fumante, se gestante, se hipertenso etc.
A propósito, traçando os critérios de informação dos riscos do
tratamento pelo médico, ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA aborda
o que denomina teoria do paciente concreto:
A revelação dos riscos é a pedra de toque do consentimento informado.
( ) Para aferir da necessidade de comunicar ou não um determinado
risco deve tomar-se em consideração as seguintes linhas de análise:
1. Necessidade terapêutica da intervenção, a incluir a urgência do
tratamento, a necessidade do tratamento, a perigosidade do tratamento,
a novidade do tratamento, a gravidade da doença, o facto de a
intervenção ser meramente diagnóstica ou ser terapêutica;
2. A frequência da verificação dos riscos – sendo que mais importante
do que o critério estatístico é da verificação dos riscos no grupo de
pacientes a que pertence o doente: os chamados “riscos especializados”;
entendo que o médico deve informar os riscos raros, quando, no caso de
estes se verificarem, a vida do paciente resultar gravemente prejudicada
e, apesar de raros, serem específicos daquela concreta intervenção;
3. A gravidade dos riscos – a impor que quanto mais grave for o risco,
mais se deve estender o dever de os revelar;
47 RAGAZZO, op. cit., p. 151.
48 Nesse sentido, RAGAZZO, op. cit., p. 151.
201
Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha
4. E finalmente, o comportamento do paciente – tópico que conduz a
que a informação seja adequada ao paciente concreto, isto é, tenha em
conta a específica actividade profissional do paciente ou o tipo físicopatológico em que o doente se insere (obeso, fumador, grávida etc).49
Contudo, quer nos parecer que, caso levada à última instância,
a conduta informativa do médico poderia chegar ao ponto mesmo de
aterrorizar o paciente, o que se mostraria contraproducente ao exercício
de seu direito à saúde na relação médico-paciente, também tolhendo,
em inversa perspectiva, o seu consentimento informado. Riscos biológicos, como, v.g., um choque anafilático, sempre existirão em toda intervenção cirúrgica. Assim, temos que é do médico a tarefa de traduzir
as informações técnicas em informações palatáveis ao paciente, não se
lhe podendo exigir que sejam transmitidos todos os rigores técnicos do
procedimento50.
Além disso, existem situações em que o dever de informação não
haverá de ter lugar, ou ao menos deverá ser mitigado, o que poderá funcionar como excludente da responsabilização do profissional por ausência de consentimento informado, dentre elas: a) quando se tratar de
emergência médica e houver sério risco de vida ao paciente, nos termos
dos arts. 22 e 31 do Código de Ética médica e do art. 8º da Convenção
de Oviedo do Conselho da Europa;51 b) em hipótese de grave perigo à
saúde pública, como no caso de doenças de internação compulsória,
quando de epidemia; c) na hipótese do denominado privilégio terapêu49 PEREIRA, op. cit., p. 122.
50 Nesse sentido, pensamos que pode ser destacado o julgado a seguir do Tribunal de Justiça de
São Paulo: “RESPONSABILIDADE CIVL - DANOS MATERIAIS - MORAIS - Improcedência Lesão de estrutura nervosa em procedimentos cirúrgicos na região do pescoço é risco inerente ao
ato cirúrgico -Informações anotadas em prontuário e descrição da cirurgia que seguem as normas
preconizadas pela Literatura médica - Consentimento da autora pós-informado devidamente
assinado - Não é usual a discriminação de todas as complicações possíveis, pois são diversas e
muito imprevisíveis (...) Termo de consentimento de fls. 108, onde declarou ter compreendido
o diagnóstico e prognóstico da doença, possíveis tratamentos e riscos previsíveis e possíveis
intercorrências inesperadas, bem como as conseqüências que poderiam resultar da recusa em
aceitar os tratamentos - Improcedência da ação corretamente decretada - Sentença mantida
-Recurso improvido. (TJ-SP - APL: 1205322420058260100 SP 0120532-24.2005.8.26.0100, Relator:
Salles Rossi, Data de Julgamento: 23/03/2011, 8ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação:
29/03/2011)”
51 Art. 8.º Situações de urgência. Sempre que, em virtude de uma situação de urgência, o
consentimento apropriado não puder ser obtido, poder-se-á proceder imediatamente à intervenção
medicamente indispensável em benefício da saúde da pessoa em causa.
202
7 • O CONSENTIMENTO INFORMADO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA POR AUSÊNCIA OU DEFICIÊNCIA DO DEVER DE...
tico, isto é, quando a comunicação do diagnóstico, do prognóstico ou
dos riscos da doença possam vir a provocar mais danos ao paciente, nos
termos do art. 34 do CEM; d) em algumas hipóteses de tratamento do
incapaz, cuja vontade deva ser levada em conta na medida do possível,
quando a posição defendida por seus representantes atente contra o seu
direito à integridade psicofísica ou contra a sua vida.52
5. Conclusões
A par de todas as nuances apresentadas, especialmente no precedente capítulo, parece certo que a indenização por danos morais em
face da ausência ou deficiência do dever médico de informação – que
motiva a ausência completa ou deficiência de consentimento informado
pelo paciente – poderá ter enorme importância prática, já que, em face
das dificuldades de se provar a negligência médica, fundamentar o pedido indenizatório na ausência de consentimento informado poderá ser
decididamente mais fácil.
No entanto, é imperioso sempre rememorar que pode se revelar
deveras tormentosa a tarefa do profissional médico de bem aquilatar
os limites adequados do conteúdo da informação – o que informar, até
que ponto informar, o que informar quanto às opções de tratamento e
quanto aos riscos da intervenção.
52 Artigo 6.º Protecção das pessoas que careçam de capacidade para prestar o seu consentimento.
1 - Sem prejuízo dos artigos 17.º e 20.º, qualquer intervenção sobre uma pessoa que careça de
capacidade para prestar o seu consentimento apenas poderá ser efectuada em seu benefício
directo. 2 - Sempre que, nos termos da lei, um menor careça de capacidade para consentir numa
intervenção, esta não poderá ser efectuada sem a autorização do seu representante, de uma
autoridade ou de uma pessoa ou instância designada pela lei. A opinião do menor é tomada em
consideração como um factor cada vez mais determinante, em função da sua idade e do seu grau
de maturidade. 3 - Sempre que, nos termos da lei, um maior careça, em virtude de deficiência
mental, de doença ou por motivo similar, de capacidade para consentir numa intervenção, esta
não poderá ser efectuada sem a autorização do seu representante, de uma autoridade ou de uma
pessoa ou instância designada pela lei. A pessoa em causa deve, na medida do possível, participar
no processo de autorização. 4 - O representante, a autoridade, a pessoa ou a instância mencionados
nos n.os 2 e 3 recebem, nas mesmas condições, a informação citada no artigo 5.º 5 - A autorização
referida nos n.os 2 e 3 pode, em qualquer momento, ser retirada no interesse da pessoa em questão.
Artigo 7.º Protecção das pessoas que sofram de perturbação mental. Sem prejuízo das condições de
protecção previstas na lei, incluindo os procedimentos de vigilância e de controlo, bem como as
vias de recurso, toda a pessoa que sofra de perturbação mental grave não poderá ser submetida,
sem o seu consentimento, a uma intervenção que tenha por objectivo o tratamento dessa mesma
perturbação, salvo se a ausência de tal tratamento puser seriamente em risco a sua saúde.
203
Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha
Com efeito, em linhas de princípio, certamente a informação deverá ser máxima. No entanto, deve-se lembrar de que a revelação de
certos aspectos próprios da atividade médica nem sempre poderá ser
considerada como salutar ao próprio paciente, podendo ainda ser tida
como inexigível para o profissional médico, como, por exemplo, em situações de eventual informação acerca de opções indisponíveis de terapêutica, ou de detalhes científicos da técnica terapêutica adotada ou
de riscos estatiscamente desprezíveis, cuja revelação poderia influenciar
negativamente a adesão informada do paciente à proposta terapêutica
vantajosa sob o ponto de vista do custo-benefício.
De toda sorte, mesmo nas hipóteses de ausência completa ou deficiência de informação médica, pensamos que a ocorrência de sucesso
terapêutico poderá ser eventualmente levada em conta, se não acertadamente, como uma causa excludente de responsabilidade civil, mas ao
menos como um fator minorante na quantificação dos danos, inclusive
na forma permitida pelo parágrafo único do art. 944 do Código Civil
de 2002. Com isso, não se pode deixar de concordar com as palavras
precisas de FERNANDO CAMPOS SCAFF, para quem
[...] caso o resultado pretendido com o tratamento seja obtido – a despeito
do inadimplemento de se buscar, antes, o consentimento expresso e
consciente do destinatário -, é evidente que o pleito de indenização não
poderá ser formulado como se os piores e maiores danos tivessem ocorrido
por um erro de conduta [...].53
Por outro lado, mesmo se agravos à saúde do paciente advierem,
contudo não por erro médico, mas sim pelo risco iatrogênico ou biológico próprio do paciente, a deficiência da informação poderá ser vista
de uma forma menos enfática, notadamente em casos concretos de cirurgias não eletivas de sobrelevada necessidade médica.
Em suma, portanto, quer nos parecer que, embora a responsabilidade médica por inadequação do consentimento informado advindo
da ausência ou deficiência da informação médica deva ser plenamente
admitida, é somente a cuidadosa ponderação do intérprete, à vista de
todas as especificidades do caso concreto, que levará à melhor conciliação entre, de um lado, a possível violação dos direitos da personalidade
de autodeterminação dos destinos do corpo e da saúde e de escolha da
53 SCAFF, op. cit., p. 99.
204
7 • O CONSENTIMENTO INFORMADO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA POR AUSÊNCIA OU DEFICIÊNCIA DO DEVER DE...
terapêutica médica e, assim, a responsabilização médica decorrente e,
de outro lado, o nobre, porém dificílimo exercício da medicina, na qual,
mesmo com o uso da melhor técnica e com a disponibilização da plena
informação, nem sempre todos os riscos poderão ser afastados, nem os
melhores resultados terapêuticos alcançados.
6. Referências
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. A boa-fé na relação de consumo.
Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, v. 14, p. 20-27, abr.-jun.
1995.
AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 5. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003.
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São
Paulo: Atlas, 2008.
COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A obrigação como processo.
São Paulo: FGV Editora, 2007.
CUNHA, Wladimir Alcibíades Marinho Falcão. Revisão judicial dos
contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de
2002. São Paulo: Método, 2007.
CUNHA, Wladimir Alcibíades Marinho Falcão. Danos
extrapatrimoniais e função punitiva. Tese de doutorado defendida
perante a Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro: teoria geral
do Direito Civil. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade.
Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 6, 2001, p. 79-97.
Mês? Ano?
LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético: responsabilidade civil. 3. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do
Consumidor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
205
Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha
_______. Solidariedade na doença e na morte: sobre a necessidade
de “ações afirmativas” em contratos de planos de saúde e de planos
funerários frente ao consumidor idoso. In: SARLET, Ingo Wolfgang.
Constituição, direitos fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direto Privado. Sistema e
tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
_______. O Direito Privado como um “sistema em construção” – as
cláusulas gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro. Revista dos
Tribunais, São Paulo, v. 753, p. 24-48, 1998.
MATOS, Enéas de Oliveira. Dano moral e dano estético. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana. Uma
leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar,
2003.
PEREIRA, André Gonçalo Dias. Breves notas sobre a responsabilidade
médica em Portugal. Revista Portuguesa do Dano Corporal, Lisboa, v.
17, p. 11-22, 2007.
_______. Responsabilidade civil médica na Europa: objectivação da
responsabilidade e consentimento informado. In: NIGRE, André Luis
e ALMEIDA, Álvaro Henrique Teixeira de. Direito e Medicina. Um
estudo interdisciplinar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. 1. Rio
de Janeiro: Forense, 1997.
PINHEIRO, Antônio Gonçalves. O ato médico e os Conselhos de
Medicina: considerações históricas, práticas e administrativas. In:
NIGRE, André Luis e ALMEIDA, Álvaro Henrique Teixeira de. Direito
e Medicina. Um estudo interdisciplinar. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007.
RAGAZZO, Carlos Emmanuel Joppert. Os requisitos e limites do
consentimento informado. In: NIGRE, André Luis e ALMEIDA, Álvaro
Henrique Teixeira de. Direito e Medicina. Um estudo interdisciplinar.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
206
7 • O CONSENTIMENTO INFORMADO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA POR AUSÊNCIA OU DEFICIÊNCIA DO DEVER DE...
SARLET, Ingo Wolfgang e FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner.
Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas
aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang e TIMM, Luciano Benetti.
Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008
SCAFF, Fernando Campos. Direito à saúde no âmbito privado.
Contratos de adesão, planos de saúde e seguro-saúde. São Paulo: Saraiva,
2010.
VASCONCELOS, Fernando Antônio de. Responsabilidade do
profissional liberal nas relações de consumo. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007.
207
8
O ACESSO A INFORMAÇÕES E A
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS
AGENTES PÚBLICOS
Rosilene Paiva Marinho de Sousa1
- Fenando Antônio de Vasconcelos2
- Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira3
Sumário: Introdução - 1. O direito de acesso à informação
- 2.1. O termo informação - 2.2. O acesso à informação - 2.3.
A informação como direito fundamental na Constituição
Federal de 1988 - 2.4. A lei geral de acesso a informações - 3. A
responsabilidade civil no ordenamento pátrio e sua aplicabilidade
- 3.1. A responsabilidade civil dos agentes públicos no acesso a
informações - 4. Conclusões - 5. Referências
Introdução
Na Constituição Federal de 1988 (CF/88), foi acrescentada a garantia constitucional do acesso a informações em seu inciso XXXIII,
1 Advogada. Mestra e Doutoranda em Ciência da Informação pelo PPGCI/UFPB.
2 Mestre e Doutor em Direito pela UFPE. Professor do PPGCJ/UFPB.
3 Mestra em Ciência da Informação e Doutora em Letras pela UFPB. Professora do PPGCI/UFPB.
209
Rosilene Paiva Marinho de Sousa - Fenando Antônio de Vasconcelos - Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira
artigo 5º, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, estabelecendo que:
[...] todos têm direito de receber dos órgãos públicos informações de
seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão
prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas
aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do
estado (BRASIL, 1988).
Este dispositivo constitucional passou a ser regulamentado pela
Lei Geral de Acesso a Informações, de nº 12.527 de 18 de novembro
de 2011. Esta lei tem por objetivo possibilitar um melhor acesso a informações públicas do ponto de vista legal, de modo que possa abrir
possibilidades de um acesso à informação rápida e ágil. O Brasil, de
modo inclusivo, já vinha avançando nesse sentido, pois anteriormente
já existiam políticas de acesso, como por exemplo, a institucionalização do Portal da Transparência dos recursos públicos, uma iniciativa da
Controladoria-Geral da União (CGU), lançada em novembro de 2004,
cujo objetivo é aumentar a transparência da gestão pública, permitindo
que o cidadão acompanhe como o dinheiro público está sendo utilizado
(SOUSA, 2012, p. 14).
O presente artigo centra seu foco em realizar uma reflexão sobre
a responsabilidade civil dos agentes públicos no acesso a informações
públicas. O escopo é examinar a possibilidade de responsabilização dos
agentes das pessoas jurídicas de direito público ou privado prestadoras
de serviço público, ao prejuízo experimentado pelo cidadão, por ação
ou omissão na divulgação de informações de posse do Estado.
É sob a perspectiva de análise de aspectos relativos a certa dissonância entre a prerrogativa legal e a efetivação da prática de acesso
a informações em face da recente Lei Geral de Acesso a Informações,
que deve ser analisada a presente proposta. Destarte, vale questionar
aspectos que se relacionam às discussões sobre as políticas de acesso
adotadas pelo poder público e, se o dano sofrido pela vítima por ação ou
omissão na divulgação de informações de posse do Estado deve ou não
ser reparado por quem o causou e de qual forma deve ser compensado.
Também serão trabalhados os principais aspectos da responsabilidade civil do Estado, destacando sua caracterização, conceito, elementos definidores e os casos de condutas ilícitas dos agentes públicos
210
8 • O ACESSO A INFORMAÇÕES E A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS AGENTES PÚBLICOS
em decorrência de divulgação não autorizada ou utilização indevida de
informações sigilosas, pelas quais haverá responsabilidade civil do estado e direito de ação regressiva.
Neste sentido, a reflexão proposta apresenta-se de caráter relevante por fornecer a bibliografia pátria um tema de bastante relevância
ainda pouco trabalhado no âmbito do Direito Brasileiro.
1. O direito de acesso à informação
O direito a informações refere-se a um conjunto amplo de princípios legais que visam a assegurar que qualquer pessoa ou organização
tenha acesso a informações de interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade. Dessa forma, torna-se imprescindível que, além da obtenção
das referidas informações, seja disponibilizado também o acesso a informações sobre o próprio governo, a administração pública e o país,
ressalvados o direito a privacidade, o sigilo comercial e os segredos governamentais previstos em lei (SOUSA, 2012).
A implementação da Lei Geral de Acesso a Informações tem como
um de seus principais desafios refrear a cultura de segredo que, frequentemente, prevalece no setor público. A disponibilização de informações
ao cidadão exige uma cultura de abertura de seus arquivos. Neste sentido, é importante ressaltar o papel do servidor público no processo de
mudança, uma vez que lida cotidianamente com a informação pública,
desde a origem, a coleta, a organização, o armazenamento, a recuperação, a interpretação, a transmissão e a utilização da informação.
Ao iniciar esta discussão, faz-se necessário abordar alguns aspectos interessantes sobre o termo informação.
2.1. O termo informação
Desde os primórdios, os homens perceberam a necessidade de
registrar conhecimentos de toda ordem. Os agrupamentos humanos
começaram a crescer cada vez mais e passaram a se organizar em sociedade, agregando a necessidade de organizar essa informação registrada.
Só a palavra falada já não era suficiente. Com a invenção da escrita, manteve-se um domínio reservado, de uma elite a quem se conferia
ainda mais poder, apesar de seu desenvolvimento (JEAN, 2002).
211
Rosilene Paiva Marinho de Sousa - Fenando Antônio de Vasconcelos - Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira
O saber acumulado em milhares de anos, a partir da observação
de fenômenos, passa a ser registrado por meio de vários suportes da informação. Os homens passam a constituir meios eficazes para ter acesso
ao conteúdo em qualquer tempo. A construção dos acervos ao longo da
história se deu por meio de lutas sociais, guerras e ações de dominação
entre os povos. Na antiguidade e idade média, as coleções de artefatos
arquivistas e biblioteconômicos estavam sob o controle dos dominantes,
e mesmo na Roma antiga, é possível observar a existência da tentativa
de organizar a informação (GOMES, 2010).
No curso da evolução humana surgiu uma série de mudanças, e
com o desenvolvimento científico e tecnológico que sucedeu a II Guerra
Mundial tornou-se perceptível a ocorrência de transformação na produção e capacidade intelectual humana, bem como na forma de prenunciar
a compreensão de fenômenos que envolvem o termo informação, sua
importância, seu acesso, seu uso e disseminação, além da compreensão
de seus usuários, para uma eficiente satisfação de suas necessidades.
O avanço da informação no último século tem sido evidente, sendo o termo informação percebido como um termo complexo, de múltiplas acepções e riquezas semânticas. Os conceitos de informação foram
determinados, segundo Capurro e Hjørland (2003), desde a tradução
das palavras gregas informatio ou informo. Para os referidos autores, o
significado epistemológico da palavra informação foi alterado pela modernidade para o sentido de “instruir” e providenciar conhecimento; se
a informação é construída no curso da história, e compreendida como
objeto que “dá forma a alguma coisa”, é possível concluir que os sujeitos
criam mecanismos informacionais (percepção, memória, imagem, entre outros) para reconhecer, interpretar e transmitir significados.
A multiplicidade de contiguidades que o fenômeno informacional vem assumindo conduz a percepção de uma forte tendência a ver
a informação como fenômeno social. Nesse sentido, verifica-se que a
informação, enquanto fenômeno social, influencia e promove a interação dos atores sociais, em diferentes níveis e estruturas (PINHEIRO E
LOUREIRO, 1995).
Na Lei Geral de Acesso a Informações, o artigo 4º prevê alguns
conceitos que a princípio possibilitam a sua aplicação imediata, quando
da necessidade exigida pela sociedade na regulação ao direito de acesso,
como é o caso do conceito de informação pública, tratada como:
212
8 • O ACESSO A INFORMAÇÕES E A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS AGENTES PÚBLICOS
[...] dados, processados ou não, que podem ser utilizados para produção
e transmissão de conhecimento, contidos em qualquer meio, suporte ou
formato; no entanto, no caput do referido artigo, pode-se observar que
não se trata de um conceito jurídico amplo de informação, mas apenas
específico “para o efeito desta lei”.
Segundo a Secretaria de Prevenção da Corrupção e Informações
Estratégicas – SPCI, da Controladoria Geral da União (2012), do Portal
da transparência, na cultura de acesso a informações no Poder Executivo Federal brasileiro, ainda existe certa confusão quanto ao conceito
de informação, como informação pública ou quanto ao conceito de informação relativo à pessoa do impetrante, restringindo dessa forma, sua
aplicação. Neste sentido, segundo Capurro e Hjørland (2007), pode-se
entender por informação o que pode ser considerado informativo para
uma determinada pessoa, e o que é informativo depende das necessidades interpretativas e habilidades do indivíduo.
Outros aspectos que devem ser levados em consideração dizem
respeito à organização dos documentos nos arquivos e o valor que os
documentos refletem.
2.2. O acesso à informação
Numa breve abordagem histórica, a primeira nação no mundo
a desenvolver um marco legal sobre o acesso a informação foi a Suécia, em 1766. Já os Estados Unidos aprovaram sua Lei de Liberdade de
Informação, conhecida como FOIA (Freedom of Information Act), em
1966, que veio se aperfeiçoando com o tempo realizando alterações no
texto da lei. Na América Latina, a Colômbia foi pioneira ao estabelecer,
em 1888, um Código que possibilitou o acesso a documentos de Governo. Já no México, a legislação de 2002, é considerada uma referência, tendo previsto a instauração de sistemas de acesso rápidos, a serem
supervisionados por órgão independente. Chile, Uruguai, entre outros,
também aprovaram leis de acesso à informação (HAGE SOBRINHO,
2011, p. 8).
Sendo o acesso à informação pública cada vez mais reconhecido
como um direito em várias partes do mundo, o Brasil passa a ser o 90º
país a aprovar um diploma legal dessa natureza, constata a professora da
Faculdade de Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
213
Rosilene Paiva Marinho de Sousa - Fenando Antônio de Vasconcelos - Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira
ANA MALIN, que integra o corpo docente da pós-graduação do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia -Ibict (MALIN,
2012, p.1).
Identificar as razões que justificam a importância de tal acesso é
de suma relevância para que, posteriormente, possa haver um melhor
direcionamento ao estudo de questões específicas, como é o caso da responsabilidade civil dos agentes públicos no acesso a informações.
No Projeto de Cooperação Técnica entre a Controladoria Geral
da União e a UNESCO, foram tratados os motivos que levam diversas
nações a adotarem um regime de acesso a informações, expondo os benefícios advindos desse direito, uma vez que:
[...] a lista de resultados alcançados com a introdução de Leis de Acesso
a Informações nos ordenamentos jurídicos nacionais, bem como de
sua efetiva implementação é longa; e, à medida que mais regimes vão
sendo estruturados, novos ganhos são apontados pela pesquisa na área”
(BRASIL, 2010, p. 15).
Segundo o Projeto de Cooperação Técnica entre a Controladoria
Geral da União e a UNESCO (BRASIL, 2010, p. 15, grifo nosso),
O Ministro-Chefe da Controladoria-Geral da União, Jorge Hage
Sobrinho, na palestra “Panorama do Direito de Acesso a Informações
Públicas no Brasil: Avanços Recentes na Esfera Federal”, ministrada
por ocasião do Seminário Internacional sobre Direito de Acesso a
Informações Públicas, realizado no Senado Federal em 2 de abril de
2009, sintetizou o tema, assinalando que o direito de acesso a informação
seria pré-requisito para a luta contra a corrupção, o aperfeiçoamento
da gestão pública, o controle social e a inclusão social.
CANELA e NASCIMENTO (2009) afirmam também que no
Brasil a importância da luta pelo direito de acesso a informações está
diretamente ligada à importância do resgate da memória da história do
Brasil, pois envolve vários casos de períodos fechados a informações da
sociedade, como é o caso dos arquivos do período da Ditadura Militar.
Mas, além desse motivo, outras razões também são apontadas no
Projeto de Cooperação Técnica entre a Controladoria-Geral da União
e a UNESCO (BRASIL, 2010b, p. 17), como “a eficiente execução das
políticas públicas”, considerando que o acesso a informações é elemento
fundamental para um debate político informado; “elevação do desem214
8 • O ACESSO A INFORMAÇÕES E A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS AGENTES PÚBLICOS
penho da economia”, pois a tendência é que haja um funcionamento
adequado do mercado, pois assegura que os órgãos governamentais
atendam ao princípio da eficiência; para uma “participação mais democrática”, por promover o exercício pleno da cidadania, quando do
exercício dos direitos básicos fundamentais; para a “proteção dos direitos humanos coletivos e singulares”, no caso do Brasil, para garantia do
direito fundamental a informações.
Os indivíduos estão cada vez mais em busca de informações refinadas, e suas escolhas beneficiaram a tomada de decisões. As mais diferentes condições de escolha na vida diária estão relacionadas ao acesso
a informações.
Na Figura 1, é mostrado um mapa contendo leis e regulações do
direito de acesso a informações no mundo.
Figura 1 – National Laws and Regulations on the Right to Information
Fonte: Disponível em: <http://www.article19.org/maps/?utm_source=ARTICLE+19+Mailing+List&utm_ campaign=0fa54cad68-The_Week_in_Free_Expression_Rig9_27_2012&utm_medium=email>. Acesso em 22 abr. 2013.
Para atender a uma política de acesso a informações concreta,
cada país deve utilizar os princípios descritos, correlacionando-os a elementos de implementação dentro de sua respectiva competência, para
que possa atender as necessidades específicas. O Sítio do acessoainformação.gov.br, Brasil (2013), já apresenta alguns resultados quanto à efi215
Rosilene Paiva Marinho de Sousa - Fenando Antônio de Vasconcelos - Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira
cácia da Lei Geral de Acesso à Informação. Segundo apresentado no
sítio, a referida lei, até o dia 8 maio de 2013, já possibilitou o encaminhamento de 87.119 pedidos de esclarecimento a órgãos e entidades do governo federal. Dados do Sistema Eletrônico do Serviço de Informações
ao Cidadão (e-SIC), criado pela Controladoria-Geral da União (CGU),
mostram que desse total, 66.185, já foram respondidas, o que representa
79,02% das solicitações. Quanto ao tempo que os órgãos vêm apresentando respostas aos pedidos formulados pelos cidadãos, a média ocorre
em torno de 11,33 dias, apenas.
Segundo o Ministro JORGE HAGE, no sítio da Controladoria
Geral da União,
Desde que a LAI (Lei 12.527/2011) entrou em vigor, em 16 de maio de
2012, até o dia 8 deste mês, o Governo Federal recebeu 87.119 solicitações
de informação, das quais 83.483 (95,8%) já foram respondidas. Dentre
elas, 66.185 (79,2%) foram plenamente atendidas; 8.205 (9,8%) foram
negadas; e 5.764 (6,9%) não puderam ser atendidas por tratarem de
matéria da competência legal de outro órgão ou pelo fato de a informação
não existir. O tempo médio para o acesso à informação solicitada foi de
11,3 dias [...] Quanto ao perfil dos solicitantes, as profissões que mais
demandaram informação foram: empregados do setor privados (7.169),
servidores públicos federais (4.881) e estudantes (4.158) (BRASIL, 2013,
online).
No referido sítio, é apresentada a relação dos dez órgãos públicos
mais demandados, conforme é demostrado na figura 2.
Figura 2 – Relação dos dez órgãos públicos mais demandados
Órgão
Quantidade
SUSEP - Superintendência de Seguros Privados
8.487
INSS - Instituto Nacional do Seguro Social
7.407
PETROBRAS - Petróleo Brasileiro S.A
5.322
BACEN - Banco Central do Brasil
3.403
CEF - Caixa Econômica Federal
2.809
MF - Ministério da Fazenda
2.464
MEC - Ministério da Educação
2.223
MTE - Ministério do Trabalho e Emprego
2.064
216
8 • O ACESSO A INFORMAÇÕES E A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS AGENTES PÚBLICOS
MP - Ministério do Planejamento, orçamento e Gestão
1.922
MS - Ministério da Saúde
1.894
Fonte: Adaptado do Portal da CGU, disponível em: <http://www.cgu.gov.br/Imprensa/
Noticias/2013/Balanco-1LAI.pdf>. Acesso em 22 abr. 2013.
Com esses breves apontamentos, serão tratados, no transcorrer
deste artigo, a regulamentação jurídica do acesso a informações, tanto
na Constituição Federal de 1988, bem como em alguns aspectos da Lei
Geral de Acesso a Informação, destacando a responsabilidade civil dos
agentes públicos no atendimento às demandas do referido acesso.
2.3. A informação como direito fundamental na
Constituição Federal de 1988
A expressão “direitos fundamentais” (droits fondamentaux)
surgiu na França, em 1970, no movimento político e cultural que deu
origem à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789.
Contempla direitos relacionados à liberdade e à igualdade criados com
o objetivo de proteger e promover a dignidade da pessoa humana (NOVELINO, 2010).
A utilização desses direitos advém de uma tradição jusnaturalista, que concebe os direitos dos cidadãos como direitos intrínsecos ao
homem, que são anteriores, inclusive, a qualquer organização política,
existindo não em razão das leis, ou do Estado, mas considerados como
direitos inalienáveis, que não podem ser maculados por qualquer órgão estatal.
Os direitos fundamentais são os direitos humanos consagrados e
positivados na Constituição de cada país no plano interno, podendo o
seu conteúdo e conformação variar de Estado para Estado (NOVELINO, 2010).
Na Constituição Brasileira de 1988, os direitos fundamentais foram regulados nos arts. 1º ao 17, tendo a doutrina e a jurisprudência
firmadas, tanto que o Supremo Tribunal Federal pode reconhecê-las em
outras partes da Constituição. Estando o direito a informações assegurado no art. 5º, inciso XXXIII, da Constituição Federal. Trata-se, desta
forma, de um direito fundamental.
217
Rosilene Paiva Marinho de Sousa - Fenando Antônio de Vasconcelos - Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira
A Constituição Federal de 1988 garante o direito a informações
no seu artigo 5º, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos,
em seu inciso XXXIII:
[...] todos têm direito de receber dos órgãos públicos informações de seu
interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas
no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo
sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do estado.
NOVELINO (2010) afirma que o direito fundamental a ser informado é um dos mais importantes pressupostos da democracia liberal e
não deve ser confundido com a liberdade de expressão do pensamento,
que consiste no direito de emitir uma opinião.
A questão do controle e acesso a documentos, regulamentados
pelo Estado, torna-se um componente da maior relevância para o exercício da cidadania. Esta pode ser compreendida em sentido amplo como
o efetivo exercício dos diversos direitos previstos na Constituição.
No pensamento de DANTAS (2010, p. 242), (..) a noção de cidadania está intimamente ligada existência digna ao exercício de direitos
básicos, fundamentais que, em seu conjunto, significam o bem-estar individual e coletivo.
Ligado diretamente à questão de bem-estar individual e coletivo
encontra-se inserido neste contexto, para o exercício pleno da cidadania,
o direito fundamental a informações. Tratando-se de direitos que vêm
buscando atender aos anseios do homem, devido à superveniência de
interesses, sejam eles individuais, sociais, solidários, fraternos e tecnológicos, capazes de provocar, por si, mudança social (SOUSA, 2012, p.52).
2.4. A lei geral de acesso a informações
Destacando a importância do salto que o Brasil atingiu em termos de políticas de acesso, permitindo que a sociedade colabore com o
controle das ações de seus governantes por meio da informação, objetivando aumentar a transparência da gestão pública, permitindo o exercício da cidadania, aprovou, em 18 de novembro de 2011, a Lei Geral de
Acesso a Informações. A regulamentação desses dispositivos constitucionais visa a transformar o acesso a informações em dever do Estado,
de modo transparente, ágil e claro para os cidadãos.
218
8 • O ACESSO A INFORMAÇÕES E A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS AGENTES PÚBLICOS
Com a aprovação da Lei Geral de Acesso à Informação, o Brasil
dá mais um importante passo para a consolidação do seu regime democrático, ampliando a participação cidadã e fortalecendo os instrumentos
de controle da gestão pública. (HAGE SOBRINHO, 2011).
A Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, que regula o acesso
a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º
do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei nº
8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº 11.111, de 5 de maio
de 2005, e dispositivos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências, representa uma conquista, o marco regulamentar que
envolveu grandes lutas por um direito de acesso garantido pela Constituição Federal de 1988.
Os dispositivos constitucionais regulados constituem:
Art. 5º [...]
XXXIII - Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações
de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão
prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas
aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do
Estado. (BRASIL, 1988)
Quanto ao artigo 37, § 3º, inciso II da CF:
Art. 37 [...]
§3º. A lei disciplina as formas de participação do usuário na
administração pública direta e indireta, regulando especialmente:
I - [...]
II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações
sobre atos do governo, observando o disposto no artigo 5º, X e XXXIII.
(BRASIL, 1988).
Regula também o art. 216, § 2º da CF,
Art. 216 [...]
§2º. Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da
documentação governamental e as providências para franquear sua
consulta a quantos dela necessitem (BRASIL, 1988).
Segundo HAGE SOBRINHO (2011), ao efetivar o direito de acesso, o Brasil além de consolidar e definir o marco regulatório sobre o
219
Rosilene Paiva Marinho de Sousa - Fenando Antônio de Vasconcelos - Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira
acesso à informação pública sob a guarda do Estado, também estabelece
procedimentos para que a Administração responda os pedidos de informação do cidadão, de forma que, o acesso à informação pública tornese a regra, e o sigilo, a exceção.
As garantias do direito de acesso, estas estão previstas nos artigos
3º, 4º e 7º da referida lei. O artigo 3º assegura o direito fundamental de
acesso a informações e sua executoriedade em conformidade com os
princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes:
I - observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como
exceção;
II - divulgação de informações de interesse público, independentemente
de solicitações;
III - utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia
da informação;
IV - fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na
administração pública;
V - desenvolvimento do controle social da administração pública
(BRASIL, 2011).
O Artigo 4º para os efeitos da Lei Geral de Acesso a Informações
considera alguns conceitos importantes, os quais consistem em,
I - informação: dados, processados ou não, que podem ser utilizados
para produção e transmissão de conhecimento, contidos em qualquer
meio, suporte ou formato;
II - documento: unidade de registro de informações, qualquer que seja
o suporte ou formato;
III - informação sigilosa: aquela submetida temporariamente à restrição
de acesso público em razão de sua imprescindibilidade para a segurança
da sociedade e do Estado;
IV - informação pessoal: aquela relacionada à pessoa natural identificada
ou identificável;
V - tratamento da informação: conjunto de ações referentes à produção,
recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transporte,
transmissão, distribuição, arquivamento, armazenamento, eliminação,
avaliação, destinação ou controle da informação;
VI - disponibilidade: qualidade da informação que pode ser conhecida e
utilizada por indivíduos, equipamentos ou sistemas autorizados;
220
8 • O ACESSO A INFORMAÇÕES E A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS AGENTES PÚBLICOS
VII - autenticidade: qualidade da informação que tenha sido produzida,
expedida, recebida ou modificada por determinado indivíduo,
equipamento ou sistema;
VIII - integridade: qualidade da informação não modificada, inclusive
quanto à origem, trânsito e destino;
IX - primariedade: qualidade da informação coletada na fonte, com o
máximo de detalhamento possível, sem modificações (BRASIL, 2011).
A Lei Geral de Acesso a Informações, em seu artigo 7º, esclarece que o acesso a informações compreende, entre outros: a) os direitos
de obter orientação sobre os procedimentos de consecução de acesso;
b) informações contidas em registros ou documentos, produzidos ou
acumulados por seus órgãos ou entidades, recolhidos ou não a arquivos públicos; c) informação produzida ou custodiada por pessoa física
ou entidade privada decorrente de qualquer vínculo com seus órgãos
ou entidades, mesmo que esse vínculo já tenha cessado; d) informação
primária, íntegra, autêntica e atualizada, (entendendo-se por primária,
“qualidade da informação coletada na fonte, com o máximo de detalhamento possível, sem modificações” (art. 4º, IX). Por íntegra, “qualidade
da informação não modificada, inclusive quanto à origem, trânsito e
destino” (art. 4º, VIII). Por autêntica (art. 4º, VII) “qualidade da informação que tenha sido produzida, expedida, recebida ou modificada por
determinado indivíduo, equipamento ou sistema”); e) informação sobre
atividades exercidas pelos órgãos e entidades, sua política, organização
e serviços; f) informação pertinente à administração do patrimônio público, utilização de recursos públicos, licitação, contratos administrativos. Além de informação relativa à implementação, ao acompanhamento e aos resultados dos programas, projetos e ações dos órgãos e
entidades públicas, bem como metas e indicadores propostos; ao resultado de inspeções, auditorias, prestações e tomadas de contas realizadas
pelos órgãos de controle interno e externo, incluindo prestações de contas relativas a exercícios anteriores.
Segundo MASSUDA (2011), de acordo com a lei de acesso a informações, os pedidos de informações devem ser encaminhados ao serviço de informação do órgão público, inclusive pela internet. De acordo
com artigo 8º, §1º, na divulgação das informações deverão constar, no
mínimo:
221
Rosilene Paiva Marinho de Sousa - Fenando Antônio de Vasconcelos - Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira
I - registro das competências e estrutura organizacional, endereços e
telefones das respectivas unidades e horários de atendimento ao público;
II - registros de quaisquer repasses ou transferências de recursos
financeiros;
III - registros das despesas;
IV - informações concernentes a procedimentos licitatórios, inclusive
os respectivos editais e resultados, bem como a todos os contratos
celebrados;
V - dados gerais para o acompanhamento de programas, ações, projetos
e obras de órgãos e entidades; e
VI - respostas a perguntas mais frequentes da sociedade (BRASIL,
2012).
Quando disponibilizado pela internet, os sítios deverão, na forma
de regulamento, atender, entre outros, aos seguintes requisitos (art. 8º,
I a VIII):
I - conter ferramenta de pesquisa de conteúdo que permita o acesso à
informação de forma objetiva, transparente, clara e em linguagem
de fácil compreensão;
II - possibilitar a gravação de relatórios em diversos formatos eletrônicos,
inclusive abertos e não proprietários, tais como planilhas e texto, de
modo a facilitar a análise das informações;
III - possibilitar o acesso automatizado por sistemas externos em
formatos abertos, estruturados e legíveis por máquina;
IV - divulgar em detalhes os formatos utilizados para estruturação da
informação;
V - garantir a autenticidade e a integridade das informações disponíveis
para acesso; VI - manter atualizadas as informações disponíveis para
acesso;
VII - indicar local e instruções que permitam ao interessado comunicarse, por via eletrônica ou telefônica, com o órgão ou entidade detentora
do sítio; e
VIII - adotar as medidas necessárias para garantir a acessibilidade de
conteúdo para pessoas com deficiência , nos termos do art. 17 da Lei nº
10.098, de 19 de dezembro de 2000, e do art. 9º da Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pelo Decreto Legislativo
no 186, de 9 de julho de 2008.
222
8 • O ACESSO A INFORMAÇÕES E A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS AGENTES PÚBLICOS
Apesar dos esforços, e observados alguns aspectos quanto à garantia do acesso e os procedimentos que constituem o encaminhamento dos pedidos de informação, é relevante destacar que alguns setores
do poder público, a exemplo do INSS e a Receita Federal, que segundo
HAGE SOBRINHO (2011, p.20) mostram ser necessário o investimento
em treinamento e para isso requer instrumentos de gestão e informatização de sistemas.
A lei prevê a designação de um responsável em cada órgão da Administração por acompanhar a implementação das políticas de acesso.
Segundo o referido autor, a informação disponível ao público é resultado
do desencadeamento de um processo que reúne operações de produção,
tramitação, uso, avaliação e arquivamento de documentos. Para tanto,
programas de gestão precisam ser sempre aprimorados e atualizados.
Neste sentido, alguns aspectos devem ser destacados, tais como a preocupação com o reconhecimento de que a implementação de políticas
de arquivos e a gestão de documentos são condições necessárias para
assegurar o acesso a “documentos, dados e informações” produzidos,
recebidos e armazenados pelos órgãos e entidades da Administração
pública. Outra questão de grande relevância está voltada para a identificação e análise de documentos, dados e informações que devam sofrer
algum tipo de restrição de acesso, a partir de critérios técnicos e objetivos, para os quais a integração sistemática dos serviços dependerá do
planejamento e execução das ações necessárias à implementação da Lei.
Desta forma, surge um ponto crucial quanto à efetividade do
cumprimento da lei de acesso, que é a responsabilização dos funcionários que deliberadamente se recusarem a prestar informação, condicionando a sua concordância às hipóteses em que fica clara a impossibilidade prática do atendimento por deficiência na estrutura pública para
divulgação da informação, ao qual seria o caso em que o Estado assume
situações especiais de risco. Além disso, os casos em que a responsabilidade do agente público se dá com condutas omissivas ou comissivas,
por atos lícitos ou ilícitos.
223
Rosilene Paiva Marinho de Sousa - Fenando Antônio de Vasconcelos - Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira
3. A responsabilidade civil no ordenamento pátrio e
sua aplicabilidade
Atualmente, nos diversos ordenamentos jurídicos, inclusive no
Brasil, o Estado é reconhecido de forma pacífica, como sujeito responsável pelos seus atos, em virtude da condição imprescindível da sua
crescente presença nas relações em sociedade e consequentemente nas
relações individuais.
O estudo da responsabilidade civil desenvolveu-se no Brasil sob
a influência da jurisprudência francesa, fornecendo subsídios à solução
de incontestáveis litígios submetidos à apreciação do Judiciário, tendo
a matéria sido melhor sistematizada no novo Código Civil (GONÇALVES, 2009, p. 2).
Nesta seção serão abordados aspectos específicos da responsabilidade civil do Estado e o seu dever de ressarcir as vítimas dos danos
causados em razão de sua atuação.
3.1. A responsabilidade civil dos agentes públicos no
acesso a informações
Primordialmente, para situar a responsabilidade civil do Estado,
passível de emergir da aplicação da Lei Geral de Acesso a Informações,
faz-se necessário a observância de que existem vários tipos de responsabilidade. Esta se apresenta de diferentes maneiras variando de acordo
com o fato gerador, a natureza do ilícito praticado e a natureza da norma jurídica que os contempla, advindo dessa forma a responsabilidade
civil, a penal e administrativa (MARINELA, 2010, p. 878). Verifica-se
a possibilidade da existência de três processos ao mesmo tempo, quais
sejam, civil, penal e administrativo, como determina o artigo 125, da Lei
nº 8.112/90, ao definir que as sanções respectivas poderão cumular-se
sendo independentes entre si.
Na Lei Geral de Acesso a Informações está previstas no artigo 33,
responsabilidade dos agentes públicos no âmbito administrativo. Isto
porque a referida lei altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990
(Lei do Servidor Público) (Brasil, 1990, p.1), no que se refere às infrações administrativas, apontando as sanções a serem aplicadas nos casos
específicos. Nesse sentido, o artigo 32, § 1º, inciso II, altera a Lei no
224
8 • O ACESSO A INFORMAÇÕES E A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS AGENTES PÚBLICOS
8.112, de 11de dezembro de 1990, de modo que as condutas descritas no
referido artigo estabelecem, no seu inciso II, que, para fins do disposto
na Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, e suas alterações, infrações
administrativas, deverão ser apenadas, no mínimo, com suspensão, segundo os critérios nela estabelecidos.
Além disso, fica estabelecido, no artigo 33, da Lei 12.527/11, que a
pessoa física ou entidade privada que detiver informações em virtude de
vínculo de qualquer natureza com o poder público e deixar de observar
o disposto nesta Lei estará sujeita às seguintes sanções:
I - advertência;
II - multa;
III - rescisão do vínculo com o poder público;
IV - suspensão temporária de participar em licitação e impedimento de
contratar com a administração pública por prazo não superior a 2 (dois)
anos; e para licitar ou contratar com a administração pública, até que
seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou
a penalidade.
V - declaração de inidoneidade
§ 1º As sanções previstas nos incisos I, III e IV poderão ser aplicadas
juntamente com a do inciso II, assegurado o direito de defesa do
interessado, no respectivo processo, no prazo de 10 (dez) dias.
§ 2º A reabilitação referida no inciso V será autorizada somente
quando o interessado efetivar o ressarcimento ao órgão ou entidade dos
prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com
base no inciso IV.
§ 3º A aplicação da sanção prevista no inciso V é de competência
exclusiva da autoridade máxima do órgão ou entidade pública, facultada
a defesa do interessado, no respectivo processo, no prazo de 10 (dez)
dias da abertura de vista. (BRASIL, 2011b).
Levando-se em consideração que a garantia, estabelecida no
texto da lei, aos usuários para realização da sua consulta ao tratar da
responsabilidade dos agentes públicos, estabelece algumas sanções na
esfera administrativa, além de apontar os casos de condutas ilícitas dos
agentes públicos.
Neste sentido, abre-se uma oportunidade para discutir uma questão relevante que é a responsabilidade civil do Estado em face da condu-
225
Rosilene Paiva Marinho de Sousa - Fenando Antônio de Vasconcelos - Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira
ta dos agentes públicos. Serão vistas as principais características e efeitos
da responsabilidade, na aplicabilidade da lei de acesso a informações.
Destaca-se que, para esse estudo, o que interessa é uma abordagem mais dedicada aos aspectos da responsabilidade civil. Quanto ao
seu fato gerador, a responsabilidade civil do Estado poderá ser classificada em responsabilidade contratual, quando houver ocorrência de
violação de conduta de norma contratual; ou responsabilidade extracontratual ou aquiliana, quando houver violação de um dever geral de
abstenção, de respeito aos direitos de outrem previstos em lei.
A responsabilidade Civil do Estado é caracterizada como responsabilidade extracontratual por não decorrer de contrato ou vínculo
anterior, representando uma obrigação imposta ao Estado de reparar
economicamente os danos ocasionados a terceiros, por atos praticados
pelos seus agentes, no exercício de suas atribuições.
MELLO (2009, p. 983), entende por responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado, como a obrigação que lhe compete de
reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis como efeito de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais
ou jurídicos.
Para que haja reconhecimento da responsabilidade civil do Estado, faz-se necessário o reconhecimento de elementos definidores, quais
sejam os sujeitos, os caracteres de conduta (comissivas ou omissivas), o
dano indenizável e a possibilidade de excludente da mesma.
Quanto aos sujeitos, o artigo 37, § 6º da Constituição Federal de
1988 (Brasil, 1988), determina que as pessoas jurídicas de direito público e as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços
públicos respondem pelos atos, através dos quais, seus agentes, nessa
qualidade, causaram prejuízos a terceiros.
Constituem pessoas jurídicas da administração pública direta os
entes políticos, além das autarquias e das fundações públicas de direito
público. Quanto às pessoas jurídicas de direito privado, o texto estabelece a condição de serem prestadores de serviço público, isto significa
que estão sujeitas as empresas públicas, as sociedades de economia mista, desde que criadas para o serviço público, bem como os particulares
prestadores de serviços públicos em razão de descentralização, como é
o caso das concessionárias e permissionárias de serviços (MARINELA,
226
8 • O ACESSO A INFORMAÇÕES E A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS AGENTES PÚBLICOS
2010, p. 882). No que tange ao agente do Estado, segundo o entendimento de MARINELA,
Agente é a expressão mais ampla utilizada pelo Direito Administrativo e
significa todo aquele que exerce função pública, seja de forma temporária
ou permanente, seja com ou sem remuneração, independentemente
do vínculo jurídico. Assim, está sujeito aos princípios mais rigorosos
da responsabilidade civil do Estado todo aquele que exercer função
pública e que, nessa qualidade, causar danos a terceiros, não importa
se é servidor público ou não, não importa se presta serviço a pessoa
pública ou privada, e também independe do tipo de regime jurídico a
que se submete (MARINELA, 2010, P.882).
Quanto à conduta, GANDINI e SALOMÃO (2003, p. 48), esclarecem que:
[...] a conduta seria um comportamento humano, comissivo ou omissivo,
voluntário e imputável. Por ser uma atitude humana, exclui os eventos
da natureza; voluntário no sentido de ser controlável pela vontade do
agente, quando de sua conduta, excluindo-se, aí, os atos inconscientes
ou sob coação absoluta; imputável por poder ser-lhe atribuída a prática
do ato, possuindo o agente discernimento e vontade e sendo livre para
determinar-se.
Verificam-se três situações diferentes, quais sejam, responsabilidade decorrente de condutas comissivas, de condutas omissivas e as
situações especiais de risco adotadas pelo Estado. Nas condutas comissivas, na ação do Estado, a responsabilidade atende a teoria da responsabilidade objetiva (teoria do risco), significando que independe de culpa
ou dolo. Nesta teoria, tanto nos atos lícitos como ilícitos geram dever de
indenizar. Já nas condutas omissivas, verifica-se a existência da teoria da
responsabilidade subjetiva (teoria da culpa), em que o dever de indenizar
está condicionado a comprovação do elemento subjetivo, culpa ou dolo.
O artigo 186 do Código Civil (Brasil, 2002) pressupõe sempre a
existência do dolo e da culpa. Segundo Gonçalves (2009, p. 4), a imprevidência do agente, que dá origem ao prejuízo, pode apresentar-se sobre as
formas de imprudência, negligência e imperícia. A imprudência consiste
em agir o sujeito sem as cautelas necessárias e implica sempre pequena
consideração pelos interesses alheios; a negligência possui um sentido
lato de omissão ao cumprimento de um dever, isto é, é a ausência de
227
Rosilene Paiva Marinho de Sousa - Fenando Antônio de Vasconcelos - Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira
reflexão necessária, em virtude da qual o agente deixa de prever o resultado que deveria ser previsto; a imperícia consiste, sobretudo, na aptidão
técnica ou na ausência de conhecimento para a prática de um ato.
Há divergências quanto à teoria adotada na caracterização da
responsabilidade civil do Estado. Mas, seguindo o entendimento de
GONÇALVES (2009, p. 44), em que fundamenta seu pensamento em
jurisprudências do Supremo Tribunal Federal, a atividade administrativa a que se refere o artigo 37, § 6º da Constituição Federal, abrange
tanto a conduta comissiva como a omissiva, desde que a última seja a
causa direta e imediata do dano, de modo que na responsabilidade civil
do Estado seja adotada a teoria da responsabilidade objetiva. No caso
de situações de risco criadas pelo Estado, as situações cunhadas por ele
propiciam a ocorrência de um dano.
Quanto ao dano, seu reconhecimento constitui o dever de indenizar, tendo em vista que, para admitir a responsabilidade civil do Estado,
a vítima deve demonstrar de forma clara o dano sofrido, sob pena de
caracterizar enriquecimento ilícito e pagamento sem causa por parte
do Estado.
Para que o dano seja reconhecido é necessário que o dano seja
além de econômico, jurídico, certo, especial e anormal. O dano jurídico
decorre da lesão de um direito; o dano certo é o de possível demonstração; o dano atual quando o Estado acarreta a confinante redução do
patrimônio da vítima; os danos especial e anormal, por si só geram dever de indenizar, sendo que no primeiro, o dano é particularizado, tem
vítima individualizada, enquanto o segundo representa os prejuízos que
superam os problemas comuns.
No Brasil, quanto à natureza da indenização, admite-se a responsabilidade civil do Estado decorrente tanto do dano material quanto do
dano moral. No dano material aquele que gera efetiva lesão ao patrimônio do indivíduo, valorado economicamente, a indenização deve
abranger tanto o dano atual que constitui os danos emergentes, quanto
ao dano futuro que constitui os lucros cessantes. Já no dano moral advindos dos prejuízos sofridos na esfera íntima, de caráter subjetivo, a
definição do valor fica condicionada a análise do caso concreto (MARINELA, 2010, p. 890).
Nas hipóteses de exclusão da responsabilidade objetiva do Estado, é adotada a teoria do risco administrativo em que a exclusão ocorre
228
8 • O ACESSO A INFORMAÇÕES E A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS AGENTES PÚBLICOS
com a ausência de qualquer um dos elementos definidores. Podem ser
citados como exemplos de hipóteses de exclusão a culpa exclusiva da
vítima, o caso fortuito e força maior.
Nos casos em que o Estado seja obrigado a indenizar a vítima
pelos prejuízos causados pelo agente público, é possível que o referido
Estado busque a compensação de suas despesas, tendo o agente agido
com culpa ou dolo, por meio de uma ação de regresso, aplicando a parte
final do artigo 37, §6º da Constituição Federal, cujo objetivo seria garantir o ressarcimento pelas despesas que o mesmo suportou em razão
da condenação.
Quanto à responsabilidade civil dos agentes públicos no acesso a
informações, verificando condutas ilícitas e obedecendo ao princípio do
contraditório, o artigo 34 e seu parágrafo único da Lei Geral de Acesso
a Informações estabelecem que:
Art. 34 Os órgãos e entidades públicas respondem diretamente pelos
danos causados em decorrência da divulgação não autorizada ou
utilização indevida de informações sigilosas ou informações pessoais,
cabendo a apuração de responsabilidade funcional nos casos de dolo ou
culpa, assegurado o respectivo direito de regresso.
Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se à pessoa física ou
entidade privada que, em virtude de vínculo de qualquer natureza com
órgãos ou entidades, tenha acesso à informação sigilosa ou pessoal e a
submeta a tratamento indevido (BRASIL, 2011).
Em HAGE SOBRINHO (2011, p. 21), são elencados os casos em
que o servidor pode ser responsabilizado. As condutas ilícitas estão previstas no artigo 32 da Lei Geral de Acesso a Informações:
Art. 32. Constituem condutas ilícitas que ensejam responsabilidade do
agente público ou militar:
I - recusar-se a fornecer informação requerida nos termos desta
Lei, retardar deliberadamente o seu fornecimento ou fornecê-la
intencionalmente de forma incorreta, incompleta ou imprecisa;
II - utilizar indevidamente, bem como subtrair, destruir, inutilizar,
desfigurar, alterar ou ocultar, total ou parcialmente, informação que se
encontre sob sua guarda ou a que tenha acesso ou conhecimento em
razão do exercício das atribuições de cargo, emprego ou função pública;
III - agir com dolo ou má-fé na análise das solicitações de acesso à
informação;
229
Rosilene Paiva Marinho de Sousa - Fenando Antônio de Vasconcelos - Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira
IV - divulgar ou permitir a divulgação ou acessar ou permitir acesso
indevido à informação sigilosa ou informação pessoal;
V - impor sigilo à informação para obter proveito pessoal ou de terceiro,
ou para fins de ocultação de ato ilegal cometido por si ou por outrem;
VI - ocultar da revisão de autoridade superior competente informação
sigilosa para beneficiar a si ou a outrem, ou em prejuízo de terceiros; e
VII - destruir ou subtrair, por qualquer meio, documentos concernentes
a possíveis violações de direitos humanos por parte de agentes do Estado
(BRASIL, 2011, p.1).
No inciso I do artigo 32, constitui a responsabilidade civil por
omissão, podendo ser averiguado a presença do dolo ou culpa; os demais incisos constituem conduta comissiva, estando o Estado passível
de responder objetivamente pelos danos causados pelos agentes públicos que constituem as pessoas jurídicas de direito público e as pessoas
jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos.
4. Conclusões
Este artigo partiu das reflexões sobre a responsabilidade civil dos
agentes públicos em face da Lei geral de Acesso a Informações. Destacando-se a importância desse estudo pelo fato da exposição de um assunto contemporâneo, em que se questionam aspectos relativos à certa
dissonância entre a prerrogativa legal e a efetivação da prática de acesso
aberto a informação em face da recente lei. Esta situação orientou as discussões sobre as políticas de acesso adotadas pelo poder público e se o
dano sofrido pela vítima que buscou a informação em poder do Estado
deve ou não ser reparado por quem o causou e de qual forma deve ser
compensado. Neste sentido, o objetivo foi examinar a possibilidade de
responsabilização das pessoas jurídicas de direito público, ao prejuízo
experimentado pelo cidadão, por ação ou omissão, na divulgação de
informações de posse do Estado.
Para se chegar a essa compreensão se fez necessário tratar dos
principais aspectos da Lei Geral de Acesso a Informações, destacando
a abordagem do termo informação nas suas diversas acepções e inclusive sua aplicabilidade para os efeitos da referida lei. Foram abordados
no texto alguns resultados no que diz respeito ao encaminhamento de
pedidos de informações, de forma que foram apontados dados recentes
230
8 • O ACESSO A INFORMAÇÕES E A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS AGENTES PÚBLICOS
sobre a eficácia da norma no atendimento das solicitações. Deu-se destaque à importância da informação por tratar-se de um direito fundamental previsto constitucionalmente.
Foi realizada uma análise sobre os tipos de responsabilidade existente, enfatizando a responsabilidade administrativa que a própria lei
de acesso traz no seu texto, e mais precisamente os casos de condutas
ilícitas previstas no artigo 32 da Lei Geral de Acesso a Informações realizadas por agentes públicos em que se aplicam a responsabilidade civil
do Estado.
Desse modo, tornou-se perceptível a importância da aplicação da
Lei Geral de Acesso a Informações e o visível reflexo da necessidade de
se reconhecer a responsabilidade civil pelos agentes públicos nos atos
praticados pelos mesmos na divulgação de informações aos cidadãos.
5. Referências
BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República
Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, Centro Gráfico,
1988.
_______. Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o
regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e
das fundações públicas federais. Publicada no Diário Oficial da União
em 12 de dezembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/L8112compilado.htm>. Acesso em: 22 abr. 2013.
_______. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.
2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/
L10406.htm>. Acesso em: 20 abr. 2013.
_______. Política Brasileira de Acesso a Informações Públicas: garantia
democrática do direito a informação, transparência e participação cidadã.
Proieto de Cooperacão Técnica entre a Controladoria-Geral da União
e a UNESCO. Brasilia-DF, abril de 2010, 2010. Disponível em <http://
pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/acessoa-informacao/politica-brasileira-de-acesso-a-informacoes-publicasgarantia-democratica-do-direito-a-informacao-transparencia-eparticipacao-cidada-2013-unesco-e-cgu>. Acesso em: 10 abr. 2013.
231
Rosilene Paiva Marinho de Sousa - Fenando Antônio de Vasconcelos - Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira
_______. Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a
informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3o
do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei no
8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio
de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá
outras providências. Publicada no Diário Oficial da União em 18 nov.
2011.
_______. Hage: Lei de Acesso à Informação completa um ano com “êxito
inquestionável”. 2013. Disponível em: < http://www.acessoainformacao.
gov.br/acessoainformacaogov
/noticias/0062013.asp>. Acesso em: 19 jun. 2013.
CANELA, G.; NASCIMENTO, S. Introdução de acesso à informação
e controle social das políticas públicas. Edição ANDI e Artigo 19,
Brasília, 2009. Disponível em: <http://www.acessoainformacao.gov.br/
acessoainformacaogov/publicacoes/Acesso-a-informacao-e-controlesocial-das-politicas-publicas.pdf >. Acesso em: 20 abr. 2013.
CAPURRO, R.; HJØRLAND, B. The concept of information. Arist:
Annual review of information science and technology, New York, v. 37,
2003.
CAPURRO, R; HJØRLAND, B.; O conceito de informação. Perspectivas
em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v. 12, n. 1, p. 148-207, jan./
abr. 2007.
CONTROLADORIA GERAL DA UNIÃO. Secretaria de Prevenção da
Corrupção e Informações Estratégicas – SPCI. 2012. Disponível em:
<http://www3.tesouro.fazenda.gov.br
/contabilidade_governamental/download/relatorios/Apresentacao_
Acesso_InformacoesPublicas.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2013.
CONTROLADORIA GERAL DA UNIÃO. Balanço no Poder Executivo
Federal: 16 de maio de 2012 a 08 de maio de 2013. 2013. Disponível em:
<http://www.cgu.gov.br/Imprensa
/Noticias/2013/Balanco-1LAI.pdf>. Acesso em: 19 jun. 2013.
DANTAS, F. S. Direito fundamental à memória. Curitiba: Juruá, 2010.
232
8 • O ACESSO A INFORMAÇÕES E A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS AGENTES PÚBLICOS
GANDINI, J. A. D.; SALOMÃO, D. P. S. A Responsabilidade Civil do
Estado por Conduta Omissiva. Revista CEJ, Brasília, n. 23, p. 45-59,
out./dez. 2003. Disponível em: <http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/
revcej/article/view/577/757>. Acesso em: 20 abr. 2013.
GOMES, H. F. Fundamentos da Ciência da Informação: reflexões
sobre a linha do tempo, 24 mar. 2010. 22 f. Notas de Aula.
GONÇALVES, C. R. Direitos das obrigações: parte especial. Tomo II:
Responsabilidade Civil, 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
HAGE SOBRINHO. J. Acesso à informação Pública: uma introdução
à lei 12.527, de 18 de novembro de 2011. Controladoria-Geral da
União. Brasília, 2011. Disponível em: <http://www.acs.ufpr.br/cgu.
pdf>. Acesso em: 20 abr. 2013.
JEAN, G. A escrita: memória dos homens. Rio de Janeiro: Objetiva,
2002.
MALIN, M. Brasil é 90º país a ter lei de acesso à informação. Jornal
Observatório da Imprensa. a. 16, n. 712, ed. 694, 15 maio 2012.
Disponível em: <http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_
ed694_brasil_e_90_pais_a_ter_lei_de_acesso_a_informacao>. Acesso
em: 22 abr. 2013.
MARINELA, F. Direito Administrativo. 4. ed. Niterói: Impetus, 2010.
MASSUDA, A. S. Entendendo a Lei Geral de Acesso à Informação.
São Paulo: Artigo 19, 2011. Disponível em: <http://artigo19.org/doc/
entenda_a_lei_final_web.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2013.
MELLO, C. A. B. Curso de Direito Administrativo. 26 ed. São Paulo:
Malheiros, 2009.
NOVELINO, M. Direito Constitucional. 4. ed., São Paulo: Método,
2010.
PINHEIRO, L., LOUREIRO, J. Traçados e limites da ciência da
informação. Ciência da Informação, Brasília, DF, Brasil, v. 24, abr. 1995.
SOUSA, R. P. M. Memória Exercitada: o direito de acesso a informações
no âmbito dos arquivos permanentes. 2012. 116 f. Dissertação (Mestrado
em Ciência da Informação) – Universidade Federal da Paraíba, João
Pessoa, 2012.
233
9
O DANO MORAL COMO EFETIVAÇÃO DA
TUTELA JURÍDICA DA PERSONALIDADE
À LUZ DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO
DIREITO CIVIL
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa1
- Guilherme Pinto do Nascimento2
- Sterfesson Higo de Lima3
- Wallace Leonardo de Aguiar4
Sumário: Introdução - 2. A constitucionalização Do Direito
Civil - 3. A seara do Direito Civil: dos aspectos gerais da
patrimonialidade ao Direito Civil contemporâneo - 4. A nova
visão civilista de 2002, a incidência de valores humanitários nas
relações privadas e a tutela dos direitos da personalidade - 5.
Mecanismo de cumprimento real dos direitos da personalidade:
os danos morais - 6. Conclusões - 7. Referências
1 Professora da Universidade Federal da Paraíba. Mestra em Ciências Jurídicas pela Universidade
Federal da Paraíba e Doutoranda em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade
Federal da Paraíba. Orientadora.
2 Acadêmico de Direito da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisador Pivic/UFPB.
3 Acadêmico de Direito da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisador Pivic/UFPB.
4 Acadêmico de Direito da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisador Pivic/UFPB.
235
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Guilherme Pinto do Nascimento - Sterfesson Higo de Lima - Wallace Leonardo de Aguiar
Introdução
Os direitos da personalidade, por não serem patrimoniais, foram,
de certo modo, renegados em um sistema jurídico outrora patrimonialista. Só para ilustrar esse fato, o Código Civil brasileiro de 1916 não
dispõe de tratamento específico sobre direitos da personalidade. Essa
categoria de direitos ganha fôlego na escala da repersonalização, quando o patrimônio cede lugar ao ser humano no centro do ordenamento
jurídico. Passa-se, então, a valorizar o indivíduo e suas necessidades intrínsecas.
É importante reconhecer que tais direitos estão relacionados à
própria concepção de dignidade humana. Deve-se, assim, concordar
quando se fala que os mesmos são uma cláusula aberta, no sentido de
que todo o conjunto de valores inerentes à pessoa e necessários à dignidade são direitos da personalidade e merecedores de tutela, ainda que
não estejam explicitamente tipificados.
Os direitos da personalidade podem ser analisados em dois planos distintos, quais sejam, entre particulares e face ao Estado. No primeiro plano, no plano privado, recebem aquela denominação. Quando
tomados face ao Estado, recebem o nome de liberdade pública. Enquanto liberdades públicas requerem de uma atuação positiva ou negativa
do ente público, e são frequentemente demandados. No plano privado,
a seu turno, “não são muitos os casos levados aos tribunais, entre nós,
a respeito de reflexos privados dos direitos da personalidade”5. Ora, enquanto direitos inatos, relacionados à própria concepção de dignidade
humana, os direitos da personalidade devem ser objeto da mais ampla
proteção, não apenas na esfera pública, mas também entre particulares.
Tais prerrogativas não são sinônimos de direitos fundamentais,
mas nos atrevemos a dizer que são espécies destes, basta fazer a leitura
do artigo 5º da Constituição Federal, como citado acima, para confirmar tal afirmação. Todavia, por não serem patrimoniais, encontrava-se
dificuldade na forma específica de tutela jurídica em caso de lesão. A
reparação por danos morais surge, aqui, como apta a constituir sanção
que responda a esse tipo de violação.
5 BITTAR, CARLOS ALBERTO. Os Direitos da personalidade. São Paulo: Forense Universitária.
2006, p. 37.
236
9 • O DANO MORAL COMO EFETIVAÇÃO DA TUTELA JURÍDICA DA PERSONALIDADE À LUZ DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO...
Mesmo entendendo que os direitos humanos também são aplicados no plano horizontal, a tutela da personalidade, enquanto direito
humano nas relações privadas, ainda se demonstra tímida diante do arcabouço jurídico pátrio. Ao mesmo tempo, a configuração do dano moral carecia de parâmetros objetivos, ficando sua configuração ao arbítrio
da análise subjetiva do julgador sobre a existência da dor moral.
Admitir a relação umbilical existente entre dano moral e direitos
da personalidade vem a ser a solução mais adequada para garantir, de
maneira eficaz, a tutela jurídica de ambos os institutos. É esse o ponto a
que pretendemos chegar ao final do presente artigo, a proximidade de
reflexos sobre os direitos da personalidade quando da configuração do
dano moral.
2. A constitucionalização Do Direito Civil
O tradicional direito civil por retratar as mais diversas formas
de normatização das relações privadas, sempre esteve em um “status
quo” diferente das outras normas, até mesmo da Constituição Federal,
que durante boa parte da nossa história era posta como mera carta com
adágios de direito, no qual não se tinha o pensamento voltado a sua supremacia como parâmetro que dirime litígios, e muito menos prezando
a segurança jurídica que ela dá ao ordenamento. PAULO LÔBO traz
em sua obra de Direito Civil – Parte Geral, as seguintes considerações a
respeito do tema abordado in loco.
O direito civil, ao longo de sua história no mundo romano-germânico
sempre foi identificado como o lócus normativo privilegiado do
indivíduo enquanto tal. A partir do constitucionalismo moderno,
nenhum ramo do direito era mais distante do direito constitucional do
que ele. Em contraposição à constituição política, era cogitado como
constituição do homem comum, máxime após o processo de codificação
liberal. Essa separação escarpada é fruto histórico do esquema liberal
que separava o Estado e a sociedade civil, concebendo-se a Constituição
como lei do primeiro e o direito civil como ordenamento da segunda.
[...]
Na atualidade, não se cuida de buscar a demarcação dos espaços
distintos e até contrapostos. Antes havia a disjunção; hoje, a unidade
hermenêutica, tendo a Constituição como ápice conformador da
elaboração e aplicação da legislação civil. A mudança de atitude é
237
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Guilherme Pinto do Nascimento - Sterfesson Higo de Lima - Wallace Leonardo de Aguiar
substancial: deve o jurista interpretar o CC segundo a Constituição e
não a Constituição segundo o CC, como ocorria com frequência. 6
Buscando então uma condição social e uma “personalização da
pessoa”, baseada na Constituição, é que surge, no final do século XX,
a ideia dos direitos da personalidade, aglutinados na constituição e no
corpo jurídico civil. Não são institutos estanques, estão em um devir
constante que se entrelaçam e trazem a tona uma humanização e eventual descaracterização da égide tradicional. O ser humano, então, se torna objeto privilegiado na torre dos conceitos jus civilistas.
A doutrina afirma que o início do processo em questão se deu na
Alemanha em 1949 com a Lei Fundamental. O Tribunal Constitucional
Federal do país europeu convencionou que os direitos fundamentais,
além da proteção em circunstâncias ou ocasiões singulares, têm a função de estabelecer uma ordem objetiva de valores, buscando a satisfação
geral ou pelo menos, da maioria da sociedade, o que acarretou em uma
vinculação dos poderes estatais e no condicionamento interpretativo
dos ramos do Direito.
Já na Itália, apesar da sua Constituição ter entrado em vigor no dia
1° de janeiro de 1948, o processo de constitucionalização teve início apenas na década de 60, com a instalação da Corte Constitucional (1956), e,
como ocorreu na Alemanha, a influência desse fenômeno desencadeou a
reinterpretação das normas infraconstitucionais em vigor e em decisões
de inconstitucionalidade, alastrando para os demais países que elevaram
a Constituição de mera carta de direitos para regente maior.
3. A seara do Direito Civil: dos aspectos gerais da
patrimonialidade ao Direito Civil contemporâneo
O Direito Civil, como leciona PAULO LÔBO, é entendido de
forma bem esclarecedora e direta7. Antes de conceituá-lo nas palavras
do referido autor, podemos trazer, precipuamente, que mesmo a pessoa
humana não sendo o único objeto de estudo do Direito Civil, torna-se
essencial para o surgimento e desenvolvimento dos outros institutos.
6 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil – Parte Geral - 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 48.
7 Ibid., 2012.
238
9 • O DANO MORAL COMO EFETIVAÇÃO DA TUTELA JURÍDICA DA PERSONALIDADE À LUZ DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO...
O direito Civil é o conjunto de normas, categorias e institutos jurídicos
que tem por objeto as pessoas e suas relações com as demais. Diz respeito
às dimensões jurídicas da existência cotidiana das pessoas, naquilo
que o direito, em sua evolução histórica, considera como relevante e
necessário para a regulamentação mínima das condutas, que assegurem
a vida de cada uma, como membro da sociedade. É o direito comum
das pessoas.8
As relações jurídicas civis se dão entre pessoas que são regidas
por esses conjuntos de normas, institutos e categorias jurídicas que
compõem o Direito Civil. A pessoa seria o objeto primordial, pois são
por meio das relações sociais que se contraem objetos, realizam contratos, acionam institutos, aglutinam fatos jurídicos, entre outros.
Um contrassenso no Brasil, em três séculos, foi a elevação do patrimônio no lugar do ser humano. Tinha-se o seu destaque como ordem de proteção, pois afastava de sua órbita relações sem revestimento
pecuniário, negando assim os direitos da personalidade que só foram
tutelados com a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002.
Tal ponto, posto por nós, é endossado no “Tratado de Direito Civil”,
de PONTES DE MIRANDA, em que suas ponderações coerentes buscaram uma maior consolidação da constitucionalização de tais direitos.
Antes de qualquer pesquisa, advirta-se em que: a) no suporte fáctico de qualquer fato jurídico, de que surge direito, há, necessariamente,
alguma pessoa, como elemento de suporte; b) no suporte fáctico do fato
jurídico de que surge direito de personalidade, o elemento subjetivo é
ser humano, e não ainda pessoa: a personalidade resulta da entrada do
ser humano no mundo jurídico.9
Considera-se então o patrimônio como a serviço do ser humano,
não existindo a inversão nesse parâmetro. Também, para endossarmos
a nossa alegação, podemos afirmar que o Direito Civil, mesmo que só
em critério didático, é puramente de direito privado; a excelência de tal
preposição nos reafirma seguramente o conceito.
Com a constitucionalização e a consequente repersonalização,
a Carta Magna coloca a pessoa humana como base do Direito Civil e
8 Ibid., p. 17.
9 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado.. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, versão VII,
cap. 1 e 2
239
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Guilherme Pinto do Nascimento - Sterfesson Higo de Lima - Wallace Leonardo de Aguiar
passa o papel de coadjuvante para o patrimônio, extinguindo de vez o
individualismo do século XVIII e da Revolução Francesa. Essa repersonalização fica evidente e se materializa em alguns casos dentro do
nosso ordenamento jurídico, como por exemplo: a utilização crescente
do princípio da dignidade da pessoa humana para sanar os conflitos, o
respeito às diferenças, a visão da família como um lugar de convivência
socioafetiva e a tutela dos direitos da personalidade.
O objetivo burguês liberal resvalou no código civilista de 1916,
conforme entendimento de PAULO LÔBO:
A codificação civil liberal entrou em profunda crise com o advento do
Estado social – no Brasil, inaugurado com a CF de 1934. O paradigma
do individualismo era incompatível com as demandas sociais, com a
consequente intervenção do Estado, máxime da legislação, nas relações
privadas. Inúmeras matérias foram subtraídas do CC, que reduziu
imensamente sua função prestante. As razões da codificação civil
deixaram de existir quando perdeu sua centralidade para a Constituição,
quando os novos direitos privados multidisciplinares não conseguiram
ser nela contidos e principalmente quando valores regentes das relações
privadas migraram para o paradigma da socialidade e da solidariedade.10
No Brasil a configuração da regulação se deu inicialmente pelas
ordenações de Portugal e em seguida da Espanha; estas não surtiram
efeito pela falta de fiscalização e lacunas que as tornaram frágeis. Este
é o cenário propício para se desenvolver costumes internos, moldando
uma regulamentação brasileira no âmbito civilista, ponderando os costumes com as normas; assim foi feito por TEIXEIRA DE FREITAS para
coordenar propedeuticamente uma Consolidação das leis civis esparsas
que existiam no período imperial.
Com o fim do império transacionando para a República, tivemos
a queda do poderio do direito canônico, regulando as relações privadas
para o Código de 1916. Este era impregnado por uma visão senhorial,
rural, patrimonial e conservadora. BEVILÁQUA deixou, então, como
legado, o diploma que serviu para romper com alguns dogmas do império e já era um fôlego inicial para que o Código Civil rumasse para
uma visão mais constitucional, totalmente repudiada no início do século, pois mesmo com o conservadorismo posto, os embates surgiriam e
10 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil – Parte Geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 27-28.
240
9 • O DANO MORAL COMO EFETIVAÇÃO DA TUTELA JURÍDICA DA PERSONALIDADE À LUZ DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO...
mudanças viriam em algum momento, mesmo ao revés da codificação
posta, como demonstraremos no capítulo que segue.
4. A nova visão civilista de 2002, a incidência de
valores humanitários nas relações privadas e a tutela
dos direitos da personalidade
Com o fim de adaptar os ramos do Direito – principalmente do
Direito Civil – às necessidades da sociedade atual, a Constituição Federal de 1988 beneficiou-se de sua posição de norma hierarquicamente superior às demais e passou a utilizar-se de seus princípios fundamentais
para modificar a forma com que os civilistas aplicam o Direito.
A clássica divisão do Direito em Público e Privado fica evidentemente superada em virtude da intercomunicação entre as normas ditas
privadas com as de natureza pública. A missão do Direito Civil passa a
se revestir de função humanizadora das relações entre os particulares.
Esse processo rompe com velhos dogmas civis e reveste com nova roupagem as relações interprivadas.
O valor da dignidade da pessoa humana sobreleva-se de importância no ordenamento pátrio e reflete para o campo privado a necessidade de uma reanálise da estrutura dos institutos civis, dentre eles os
referentes à personalidade.
O Código Civil atual cuidou dos direitos da personalidade de forma bastante tímida e fragmentada, nos artigos 11 a 21. A disciplina fica
aquém da proteção merecida por tal categoria de direitos.
Todavia, essa situação pode ser compensada pela aplicação horizontal dos direitos humanos, levando-se em consideração a relação
existente entre direitos humanos e direitos da personalidade. Esse fenômeno se reflete na tendência atual de se reconhecer eficácia imediata e
aplicação direta das normas constitucionais relativas aos direitos e garantias fundamentais nas relações entre particulares. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 apresenta importância fundamental.
Os preceitos constitucionais referentes às liberdades e garantias
se consagram como diretamente aplicáveis e vinculam tanto entidades
públicas como privadas. Construíram-se, então, pontes axiológicas entre a CF e a legislação civil, fazendo com que as normas constitucionais
241
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Guilherme Pinto do Nascimento - Sterfesson Higo de Lima - Wallace Leonardo de Aguiar
incidissem diretamente sobre as relações privadas. É a chamada eficácia
horizontal dos direitos fundamentais.
Ao longo dos anos, a concepção individualista do Código Civil
de 1916, dava azo à legalização de verdadeiras afrontas aos princípios
exteriorizadores de direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana. Todavia, significantes mudanças ocorrem no decorrer do
século XX. Alterações essas que, além da modernização da norma civilista, propunham um avanço ideológico na concepção liberalista, humanizando algumas relações que antes careciam da ingerência de preceitos
de direitos fundamentais.
A partir de 1969, inicia-se a tentativa de promulgação de um segundo Código Civil. Este deveria ser um aperfeiçoamento do anterior,
reconhecendo-se que aquele já não mais atendia às necessidades da época. Com um processo de elaboração e tramitação que durou mais de trinta anos, o Código Civil de 2002 trouxe uma grande transformação no
direito pátrio, instaurando, segundo Paulo Nader, o abandono da fase
positivista e dogmática do Código de 1916, e inaugurando a fase pós-positivista11. Nesse longo processo de mutação, tem papel preponderante
na guinada do pensamento humanitário a Constituição Federal de 1988.
Conforme já exposto, a Constituição de 1988 traz para o campo
civilista uma nova diretriz no que concerne às bases orientadoras das
normas e sua eficácia social. Os princípios elencados em seu texto contribuem para uma visão inovadora da função sistêmica do ordenamento
jurídico. Desenvolve-se, a partir dos critérios de orientação constitucional, uma valorização da pessoa humana em detrimento dos valores essencialmente patrimonialistas, ou seja, a valorização do ser em prejuízo
do ter. Surge aqui o que a doutrina denomina de constitucionalização
do Direito Civil.
A implementação desse novo paradigma se refletiu na codificação civil de 2002, a qual, diferentemente da anterior, passou a considerar a pessoa como centro e fundamento. Assim, os princípios gerais e
os institutos do Direito Civil sofreram uma modificação no sentido de
11 Pós-positivismo consubstancia-se numa concepção que vai além dos valores da Escola do
Direito Positivo e pretende demonstrar que os princípios, ao contrário do que pensa a corrente
positivista, também gozam de normatividade. Para tal esteira de pensamento os princípios seriam
espécie, juntamente com as regras, do gênero norma. O pensamento pós-positivista enceta
dois grandes preceitos: o da força normativa dos princípios e o da preocupação com os valores
humanitários e civilizatórios do Direito.
242
9 • O DANO MORAL COMO EFETIVAÇÃO DA TUTELA JURÍDICA DA PERSONALIDADE À LUZ DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO...
promoverem sua despatrimonialização. A positivação desse novo pensamento deu-se com a recodificação e a vigência da nova codificação.
Na tentativa de unificar de forma protecionista, voltada para o
ser, o pensamento constitucional com o legal, o Novo Código Civil, tenta adequar, em matéria privada, uma postura de guarida dos bens ditos
primordiais, estabelecendo novas regras, que em muito se distanciam
do modelo arcaico do Código de 1916.
Ocorreu a funcionalização do direito civil, que segundo GUSTAVO TEPEDINO12 é um processo socializante, em que determinadas
liberdades civis, como a liberdade contratual, passa a sofrer uma contenção principiológica baseada na socialidade. Observa-se que o Direito Civil passa por um processo de oxigenação das bases jurídicas com
elementos de ordem social, filosófica, histórica, econômica e ética, com
o nítido objetivo de satisfazer as demandas sociais em prol de uma ordem jurídica e social mais justa. Visa-se, portanto, à concretização dos
princípios constitucionais. Utilizando-se novamente das lições de TEPEDINO, esse novo panorama instaurado com a Carta Magna de 1988
e complementado pela vigência do Código Civil de 2002, configura verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana.13
O que se busca com a denominada constitucionalização do direito civil é uma reconstrução do Direito Privado, de acordo com valores
constitucionais, visando à satisfação dos direitos fundamentais, além
da concretização de um Estado social e democrático de Direito. Constitucionalização é o processo de elevação dos princípios fundamentais
do Direito Civil ao patamar constitucional, tendo como consequência
lógica o condicionamento à observância pelos cidadãos e a aplicação
pelos Tribunais, da legislação infraconstitucional, produção legiferante
que deverá estar condizente com os valores humanitários esboçados no
texto constitucional.
CAIO MÁRIO reflete que após duas grandes guerras há um crescente processo de socialização do direito, e que “não mais se pode reconhecer ao Código Civil o valor de direito comum”, pois a posição ocu12 TEPEDINO, Gustavo (coord.). A parte geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva
civil-constitucional. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
13 Cláusula geral é uma disposição normativa a ser observada pelo juiz na regulação in concreto de
determinada relação de direito. Tem conteúdo variável que é preenchido conforma as necessidades
de cada povo em dada época.
243
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Guilherme Pinto do Nascimento - Sterfesson Higo de Lima - Wallace Leonardo de Aguiar
pada, atualmente, pelos princípios gerais de direito, é gradativamente
e densamente influenciada pelas normas constitucionais, notadamente
pelos direito fundamentais. Continua CAIO MÁRIO a afirmar que “tal
proposta consolidou em nossa doutrina um direito civil constitucional
reconhecido definitivamente nos meios acadêmicos e pelos Tribunais”14.
Desponta um consistente movimento de antropocentrismo dos
valores máximos de objetivação da norma, delimitando-se o exercício
da autonomia privada e ao condicionado à exigência de cumprir fielmente o resgate dos valores humanitários, fazendo prevalecer o respeito
aos direitos e garantias individuais e coletivos expressos na norma estruturante.15 Criam-se, assim, novos critérios legitimadores da atividade
negocial, não mais sobejados na ideia liberal do lucro, mas numa visão
humanitária das relações privadas.
Essa hodierna conjectura irradia seus reflexos para todo o campo
civilista, como, a título de exemplo, no direito de família, em que há
uma equiparação do homem e da mulher no comando do poder familiar; do fortalecimento da união estável. Surge também a formação de
uma base civil de direitos da personalidade tutelados no próprio Código
(arts. 11 e seguintes).
Diante da primazia da Constituição, os direitos fundamentais
passaram a ser dotados da mesma força normativa nas relações públicas
e nas relações privadas. Como não poderia deixar de ser, essa mesma
força deve ser conferida aos direitos da personalidade.
Com efeito, conforme afirma PAULO LÔBO, a Constituição de
1988 “prevê a cláusula geral de tutela da personalidade, que pode ser
encontrada no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana
(art. 1.o, III)”16.
Após toda a abordagem do Direito Civil em face de uma constitucionalização, é propício, neste momento, discorrermos a respeito dos
tipos gerais dos direitos da personalidade. Possuem, estes, uma consolidação geral, tanto no sistema brasileiro, quanto nos mais diversos sis14 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil.. Rio de Janeiro, Forense,2004, p.
23. v. 1
15 Norma estruturante na visão Kelsiana é norma que dá suporte a todo o ordenamento jurídico,
no caso expresso a Constituição Federal.
16 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. Revista Trimestral de
Direito Civil, Rio de Janeiro, Padma, v.6, p. 8, 01 jun. 2001.
244
9 • O DANO MORAL COMO EFETIVAÇÃO DA TUTELA JURÍDICA DA PERSONALIDADE À LUZ DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO...
temas mundiais, tendo como vanguardistas os direito à vida, liberdade,
integridade física ou psíquica, privacidade, honra, moral do autor e à
identidade pessoal.
O direito à vida é inato e indisponível, pois logicamente já se nasce com
ela. É o primórdio que gera todos os outros direitos, isto é, nascer com
vida é propedêutico para uma conjectura de direitos assegurados. Já o
direito à liberdade é relativamente novo e não se confunde com os da
liberdade econômica (livre iniciativa) e da liberdade contratual, como
traz PAULO LÔBO, ainda em seu artigo a respeito dos danos morais.
O direito geral à liberdade é o direito de ser livre, desde o nascimento até à morte, o direito de não estar subjugado a outrem, o direito
de ir e vir, salvo a restrição em virtude do cometimento de crime. Na
história da humanidade, é direito relativamente recente, pois o vínculo à
escravidão, à servidão, a estamentos, a corporações de ofício, a posições
sociais em virtude do nascimento e equivalentes marcaram a trajetória
de todos os povos. A privação ou a restrição indevida da liberdade dá
ensejo á indenização compensatória por danos morais.17
Já quando tratamos dos direitos à privacidade, temos que ele “diz
respeito a fatos, situações e acontecimentos que a pessoa deseja ver sob
seu domínio exclusivo, sem compartilhar com qualquer outra”18. Temos
aqui algo muito interessante para dosar o emprego da tutela dos danos
morais; pois o grau de publicidade é algo que deve ser levado em consideração de forma geral, isto é, pessoas públicas em suas atividades particulares sofrem constantemente assédios em seus momentos íntimos.
Este segundo grupo de direitos, os chamados “à honra”, não devem ser confundidos com os direitos a privacidade, sendo os primeiros
concernentes à relação da sua reputação no ambiente social em que vive.
5. Mecanismo de cumprimento real dos direitos da
personalidade: os danos morais
Segundo leciona PAULO LUIZ NETTO LÔBO,
17 Ibid.,, p. 87
18 Ibid., p. 89
245
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Guilherme Pinto do Nascimento - Sterfesson Higo de Lima - Wallace Leonardo de Aguiar
[...] os danos morais se ressentiam de parâmetros materiais seguros,
para sua aplicação, propiciando a crítica mais dura que sempre
receberam de serem deixados ao arbítrio judicial e à verificação de um
fator psicológico de aferição problemática: a dor moral.19
Ratificando esse entendimento, a Constituição brasileira de 1988
tratou de ambos os institutos em conjunto no art. 5º, inciso X. Para o
autor, “a interação não é ocasional, mas necessária”. Continua afirmando
que “os direitos da personalidade, por serem não patrimoniais, possuem
a mesma natureza do dano moral, também não patrimonial”.20
De fato, há de se concordar com o supracitado autor quando ele
diz que:
De modo mais amplo, os direitos de personalidade oferecem um
conjunto de situações definidas pelo sistema jurídico, inatas à pessoa,
cuja lesão faz incidir diretamente a pretensão aos danos morais, de modo
objetivo e controlável, sem qualquer necessidade de recurso à existência
da dor ou do prejuízo. A responsabilidade opera-se pelo simples fato
da violação (damnu in re ipsa); assim, verificada a lesão a direito da
personalidade, surge a necessidade de reparação do dano moral, não
sendo necessária a prova do prejuízo, bastando o nexo de causalidade.
Por exemplo, a instituição financeira que promove a indevida inscrição
de devedor em bancos de dados responde pela reparação do dano
moral que decorre dessa inscrição; basta a demonstração da inscrição
irregular.21
Pode-se afirmar, assim, que o dano moral consiste na lesão a um
interesse que visa à satisfação ou o gozo de um bem jurídico extrapatrimonial contido nos direitos da personalidade, integridade psíquica e
integridade moral.
No mesmo norte, há autores que, a exemplo de MARIA CELINA BODIN DE MORAES, afirmam que não dispomos de parâmetros
objetivos de avaliação do dano moral. Questiona a autora se a dor e o
constrangimento seriam suficientes para a configuração do dano moral
e como distinguir a intensidade desses sentimentos que seria suficiente
19 Ibid., p. 80.
20 Ibid., p. 79-80.
21 Ibid., p. 80.
246
9 • O DANO MORAL COMO EFETIVAÇÃO DA TUTELA JURÍDICA DA PERSONALIDADE À LUZ DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO...
para averiguação do dano daquela perturbação psíquica que não teria o
condão de causar dor moral. (2003, p.42).
Dito isso, questiona-se se os danos morais estão diretamente relacionados à tutela a personalidade. Poder-se-ia afirmar que não há dano
moral fora dos direitos da personalidade? A Constituição Federal de
1988, como já afirmamos, trata os direitos da personalidade e os danos
morais de forma conjunta em seu artigo 5°, inciso X, quando diz claramente que:
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem
das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou
moral decorrente de sua violação;
Como vemos, a CF/88 traz uma roupagem nova que chocou e
opôs muitos pensamentos de doutrinadores conservadores que ainda
defendiam o patrimônio em detrimento aos direitos da pessoa, tendo
em vista que este segundo não teria um valor traduzido em pecúnia
que o representasse, isto é, não possuía a perspectiva de valoração em
dinheiro dos danos sofridos.
Agora tratados em conjunto, ambos possuem caráter não patrimonial, buscando assim a equiparação nos limites da equidade e do
bom senso em sua aplicação; devendo ser visado sempre ao bem jurídico atingido e à melhor forma de restituição, pois até agora, os valores em
moeda são a forma mais efetiva de realização de justiça mediante uma
ilegalidade cometida a um direito pessoal, não podendo ser transferidos, por serem inerentes à pessoa lesada.
PAULO LÔBO nos alerta sobre o perigo dos “momentos patológicos” dessa tutela:
A indenização compensatória que resulta da configuração dos danos
morais não deve levar ao entendimento de ser a violação dos direitos
da personalidade o objeto exclusivo da tutela jurídica, pois esta dáse, primacialmente, no exercício cotidiano desses direitos. Tem-se
deplorado a excessiva preocupação dos juristas com os ‘momentos
247
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Guilherme Pinto do Nascimento - Sterfesson Higo de Lima - Wallace Leonardo de Aguiar
patológicos’ da proteção da personalidade, resultantes em danos
morais, em detrimento de seu exercício, o que revela resíduo da tradição
patrimonialista.22
Percebe-se, pois, que o instituto dos danos morais não se configura fora dos direitos da personalidade, tendo em vista que estão intimamente ligados. Quando um direito da personalidade é agredido, os danos
morais o “socorrem”, traduzindo pecuniariamente a depreciação sofrida.
A jurisprudência dos tribunais superiores abre imenso precedente para que juízes vinculem suas decisões e dirimam os processos de
uma forma unânime, baseados na segurança jurídica. Neste ponto é que
se procura desestimular as práticas violadoras defronte os direitos personalíssimos da pessoa humana.
Como preceitua CARLOS ALBERTO BITTAR, “na Jurisprudência, depois de certa hesitação na fundamentação de decisões no campo
civil, tem-se ora como nítida a prevalência dos direitos da personalidade, com a sanção a violações ocorridas na prática”.23
Por tudo isso, percebemos a proximidade de reflexos sobre os
direitos da personalidade quando da configuração do dano moral. Já
dissemos que os direitos da personalidade, por serem não patrimoniais,
foram, de certo modo, renegados em um sistema jurídico outrora patrimonialista. Essa categoria de direitos ganha fôlego na escala da repersonalização, quando o patrimônio cede lugar ao ser humano no centro do
ordenamento jurídico.
Passa-se, então, a valorizar o indivíduo e suas necessidades intrínsecas. Nesse contexto, os direitos da personalidade ganham campo próprio no Código Civil de 2002 – artigos 11 a 21 – bem como na
CF/88, citados, por exemplo, no art. 5º, como parte do rol de direitos
fundamentais.
Mister se faz, ainda, reconhecer que os direitos da personalidade
estão relacionados à própria concepção de dignidade humana. Nesse
sentido, devemos concordar quando se fala que os direitos da personalidade são uma cláusula aberta, no sentido de que todo o conjunto
de valores inerentes à pessoa e necessários à dignidade são direitos da
22 Ibid., p. 82
23 BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da personalidade. São Paulo: Forense Universitária.
2006, p. 56.
248
9 • O DANO MORAL COMO EFETIVAÇÃO DA TUTELA JURÍDICA DA PERSONALIDADE À LUZ DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO...
personalidade e merecedores de tutela, ainda que não estejam explicitamente tipificados.
Há tipos mais gerais de direitos da personalidade, já reconhecidos como tais explicitamente e divididos em três grupos: direitos físicos,
psíquicos e morais; bem como a possibilidade de se reconhecer como
direitos inatos tudo aquilo que for necessário à dignidade humana ao
mesmo tempo em que intrínsecos ao ser existencial.
Os direitos da personalidade não são sinônimos de direitos fundamentais, mas nos atrevemos a dizer que são espécies destes. Todavia,
por não serem patrimoniais, encontrava-se dificuldade na forma específica de tutela jurídica em caso de lesão. Deve-se concordar com o autor
do texto em análise quando ele coloca a reparação por danos morais
como apta a constituir sanção que responda a esse tipo de violação.
Ao mesmo tempo, a configuração do dano moral carecia de parâmetros objetivos, ficando sua configuração ao arbítrio da análise subjetiva do julgador sobre a existência da dor moral.
Ora, ao se visualizar a existência de lesão ao direito da personalidade, desnecessária se demonstra a comprovação do dano moral. Como
atributos intrínsecos à personalidade humana, uma agressão a essa categoria de direitos dá subsídios claros e objetivos para a determinação
do dano moral. A subjetividade do julgador fica, agora, restrita apenas à
determinação do quantum da indenização.
6. Conclusões
A constitucionalização do Direito consiste na implementação e
aplicação dos princípios e regras presentes na Constituição Federal por
todo o ordenamento jurídico. Visto isso, surgem várias situações que
serão compreendidas, como a inconstitucionalidade das normas não
compatíveis com a Carta Magna e a Constituição como base de interpretação das normas infraconstitucionais.
Chegando ao Direito Civil, podemos concluir que, esse ramo
do Direito foi evoluindo e se transformando gradativamente, ficando
cada vez mais atrelado e porque não dizer dependente da Constituição
Federal. Teve como “ápice” a sua constitucionalização e o consequente
abarcamento dos direitos da personalidade como sua base, sendo repersonalizado, deixando para trás uma patrimonialidade primordial.
249
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Guilherme Pinto do Nascimento - Sterfesson Higo de Lima - Wallace Leonardo de Aguiar
Por fim, podemos afirmar que, a humanização do Código Civil
trouxe uma série de melhorias e vantagens, e a tendência é, cada vez mais,
os direitos da personalidade serem tutelados, respeitados e aplicados.
Concluímos que tal assunto esta em voga e o seu debate deve ser
constante e inovador, tendo em vista que a repersonalização do Direito
Civil, com os direitos personalíssimos da pessoa humana em primeiro
grau, é ponto chave para as relações privadas quando desrespeitados,
sejam tuteladas pelo melhor instituto, que no caso, são os danos morais.
A propósito, acerca dos danos morais, esses vieram para completar a lacuna que faltava para uma garantia fixa de tais diretos considerados, a primeira vista, abstratos, pois o seu valor pecuniária era quase
incalculável; entretanto, o bom senso em sua aplicação pelos magistrados e a dosimetria devem pairar como princípios explícitos de controle
e segurança.
7. Referências
BITTAR, CARLOS ALBERTO. Os Direitos da personalidade. São
Paulo: Forense Universitária. 2006.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade.
Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro. Padma, v. 6, Abril,
01 jun. 2001
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil – parte geral. 3. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro:
Borsoi, 1971, versão VII, 1 e 2.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Perspectivas a partir do Direito
Civil-Constitucional. In: MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à
pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio
de Janeiro: Renovar, 2003.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de
Janeiro, Forense, 2004. v.1
TEPEDINO, Gustavo (coord.). A parte geral do novo Código Civil:
estudos na perspectiva civil-constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003.
250
10
O FENÔMENO DA DESAPROPRIAÇÃO
JUDICIAL INDIRETA COMO
INSTRUMENTO DE FUNCIONALIZAÇÃO
DA POSSE E DA PROPRIEDADE
Adriano Marteleto Godinho1
- José Humberto Pereira Muniz Filho2
- Juliane da Silva Heman3
- Roberto de Oliveira Batista Júnior4
Sumário: Introdução: o recorte temático - 1. A tradicional
conceituação dos institutos da posse e da propriedade - 2. A
funcionalização da posse e da propriedade no ordenamento
jurídico brasileiro - 3. As limitações ao exercício do direito
de propriedade - 4. A desapropriação judicial indireta e sua
natureza - 5. Os elementos da desapropriação judicial indireta 5.1. A posse ininterrupta e por cinco anos de extensa área - 5.2.
O considerável número de possuidores - 5.3. O sentido da boa-fé
referida no § 4º do artigo 1.228 do Código Civil - 5.4. As obras e
1 Professor da Universidade Federal da Paraíba. Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal
de Minas Gerais e Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa. Advogado.
2 Acadêmico do 6º período de Direito da Universidade Federal da Paraíba.
3 Acadêmica do 6º período de Direito da Universidade Federal da Paraíba.
4 Acadêmico do 6º período de Direito da Universidade Federal da Paraíba.
251
Adriano Marteleto Godinho - José Humberto Pereira Muniz Filho - Juliane da Silva Heman - Roberto de Oliveira Batista Júnior
serviços de relevante interesse social e econômico - 5.5. A justa
indenização e seu pagamento - 6. Conclusões - 7. Referências
Introdução: o recorte temático
O presente trabalho é fruto das pesquisas realizadas na Universidade Federal da Paraíba, no âmbito do projeto destinado aos estudos
da funcionalização da posse e da propriedade como instrumento de
justiça social.
Reunidos os pesquisadores, chegou-se à conclusão de que, dentre
os diversos institutos do Código Civil brasileiro de 2002 destinados à
concretização da função social da posse e da propriedade, destaca-se
uma figura que ainda carece de aguda investigação: a denominada desapropriação judicial indireta, prevista nos §§ 4º e 5º do artigo 1.228
daquele diploma.
A partir daí, desenvolveu-se uma linha de investigação que parte da análise dos fenômenos da posse e da propriedade, tanto em sua
formulação tradicional como na sua acepção constitucionalizada, para
adiante abordar as limitações ao exercício do direito de propriedade, o
que permitirá, enfim, traçar os elementos que configuram o instituto da
desapropriação judicial indireta.
1. A tradicional conceituação dos institutos da posse e
da propriedade
Posse e propriedade são dois dos fenômenos jurídicos de mais
antigo desenvolvimento. Por se tratarem de institutos civis, o papel de
conceituá-los sempre coube, nos países de influência romano-germânica, ao Código Civil. No Brasil não é diferente: o primeiro diploma
civil do país, editado em 1916, estipulou os conceitos de posse e de propriedade. Assim, o artigo 524 daquela codificação estabelecia que “a lei
assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de
reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua”. Por sua vez,
o artigo 485 da lei, hoje revogada, assim previa: “considera-se possuidor
todo aquele que tem de fato o exercício pleno, ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio, ou propriedade”.
252
10 • O FENÔMENO DA DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL INDIRETA COMO INSTRUMENTO DE FUNCIONALIZAÇÃO DA POSSE E DA...
Bem medido o sentido das disposições, atesta-se que a propriedade consistia, à época, no direito de ter a coisa e dela se servir de modo
(quase) absoluto; a posse, por seu turno, representava o exercício, sobre
a coisa, de algum ou alguns dos poderes que compunham a propriedade, quais sejam: o uso, o gozo, a disposição e a reivindicação. Sob esse
prisma, a posse constituía mera exteriorização das faculdades concedidas ao proprietário.
Dizer que a propriedade se cercava de ares que beiravam o absolutismo significa afirmar que, no âmbito do Código Civil brasileiro
de 1916, deferiu-se ao proprietário o direito de livremente usar, gozar,
reaver ou dispor da coisa que lhe pertencia. A destinação a ser conferida
aos bens era indiferente, bastando que se resguardasse ao proprietário a
ampla prerrogativa de deles se valer para a satisfação de interesses puramente egoístas.
Redesenhar esses velhos conceitos de propriedade e de posse tornou-se um imperativo. Contudo, um importante passo nesse sentido
foi tomado com a promulgação da Constituição da República de 1988.
Posteriormente, o Código Civil de 2002 absorveu a ideia de funcionalização contida no texto constitucional, o que abriu o caminho para uma
revisão conceitual, a impor certas barreiras ao exercício dos direitos de
posse e de propriedade, tudo para conformar estes institutos com os
parâmetros mais elevados da ordem jurídica brasileira, como os princípios da solidariedade, da igualdade material e da dignidade da pessoa
humana, os objetivos de erradicação da pobreza e a promoção do bem
de todos e o direito fundamental à moradia.
2. A funcionalização da posse e da propriedade no
ordenamento jurídico brasileiro
No Brasil, a partir da Constituição de 1934, passou-se a conferir
maior preocupação com o sentido da propriedade, por meio de uma
intervenção estatal mais rígida sobre a forma de exercício deste direito,
como deixa entrever seu artigo 113, cujo item 17 enuncia que “é garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o
interesse social ou coletivo”. No artigo 147 da Constituição de 1946, o uso
da propriedade passou a ser condicionado ao bem-estar social, tendo-se
253
Adriano Marteleto Godinho - José Humberto Pereira Muniz Filho - Juliane da Silva Heman - Roberto de Oliveira Batista Júnior
adotado, ainda, o ideal da justa distribuição da propriedade, com igual
oportunidade para todos.
Entretanto, coube à Constituição da República de 1988 proclamar uma nova visão da propriedade, alargando-se a ideia da sua funcionalização pela consagração de duas disposições expressamente dirigidas à regulamentação do instituto: numa delas, se garante o direito
à propriedade privada (artigo 5º, XXII) e, na outra, é condicionado o
exercício desse direito à observação do princípio da função social (artigo 5º, XXIII). Além disso, ao tratar dos princípios da ordem econômica,
o artigo 170 da Constituição torna a se referir à propriedade privada e à
sua função social.
Diante do panorama traçado, a visão outrora prevalecente, que
outorgava ao proprietário um direito praticamente absoluto sobre a coisa, cede diante da matiz socializante inaugurada pela Constituição de
1988. Ao proprietário, continua sendo reconhecido o direito ao uso e
gozo do que lhe pertence, mas o exercício do direito de propriedade
somente se considera regular se o seu titular for capaz de balancear seus
interesses individuais com a noção de utilidade social, que não condiz
com o uso dos bens para fins puramente especulativos ou egoístas.5
Levando-se em conta a necessidade de concretização da função
social, não somente foi a propriedade referida como direito e garantia
individual e como princípio da ordem econômica, mas ganhou também, no expressar de ANDERSON SCHREIBER e GUSTAVO TEPEDINO, a indicação de um conteúdo mínimo, particularmente no que
tange à propriedade imobiliária. Assim, o artigo 186 da Constituição de
1988 traçou requisitos objetivos para o atendimento da função social
da propriedade rural, por meio dos seguintes critérios: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das
disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que
5 Na feliz síntese de PAULO LÔBO, “a função social é incompatível com a noção de direito absoluto,
oponível a todos, em que se admite apenas a limitação externa, negativa. A função social importa
limitação interna, positiva, condicionando o exercício e o próprio direito. Lícito é o interesse individual
quando realiza, igualmente, o interesse social. O exercício do direito individual da propriedade deve
ser feito no sentido da utilidade, não somente para si, mas para todos. Daí ser incompatível com a
inércia, com a inutilidade, com a especulação” (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do
direito civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 33, 1 jul. 1999. Disponível em: http://jus.com.br/
revista/texto/507/constitucionalizacao-do-direito-civil. Acesso em: 15 abr. 2013).
254
10 • O FENÔMENO DA DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL INDIRETA COMO INSTRUMENTO DE FUNCIONALIZAÇÃO DA POSSE E DA...
favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. O mesmo
ocorreu com a propriedade imobiliária urbana, que terá cumprida sua
função social quando atender às exigências fundamentais de ordenação
da cidade expressas no plano diretor.6
Ademais, a Constituição de 1988 estabeleceu as sanções a que se
sujeitam os proprietários de imóveis inertes na concessão da função social à propriedade. Em se tratando da propriedade urbana, elas podem
passar pelo parcelamento ou edificação compulsórios, pela imposição
do imposto progressivo no tempo e, em última instância, pela desapropriação do bem. Sendo rural a propriedade, caberá à União promover
a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, do
imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, tudo sem prejuízo
do aumento progressivo do imposto territorial rural, de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas.
Consoante salienta PETER HÄBERLE,7 a ciência do direito constitucional é exercida, sobretudo, no âmbito teórico. Ela possui a tarefa
de delinear um sem número de propostas teóricas para a compreensão
geral e especial dos direitos fundamentais e de seus métodos de utilização. Com efeito, deve-se entender que a matéria constitucional do
direito de propriedade norteia as relações privadas.
Essa ideia de norteamento, contudo, vem sofrendo várias mitigações, em decorrência das novas vertentes do direito privado. Cabe
ponderar sobre a posição de GUSTAVO TEPEDINO que, com base no
magistério do professor NATALINO IRTI, afirma ter ocorrido uma
[...] transformação, no âmbito do direito privado, do monossistema,
centralizado pelo Código Civil, para o polissistema, próprio da sociedade
pluralista contemporânea, na qual se desfaz a unidade política, ideológica
e legislativa, representada pela codificação, dando lugar ao conjunto de
leis setoriais.8
6 SCHREIBER, Anderson; TEPEDINO, Gustavo. A garantia da propriedade no direito brasileiro.
Revista da Faculdade de Direito de Campos, LOCAL? ano VI, n. 6, p. 103-104.jun. 2005.
7 HÄRBELE, Peter. Die Wesensgehaltgarantic des Art. 19 Abs. 2 Grundgesetez. 3. ed.
Heidelberg: Müller, 1983, p.83.
8 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.209.
255
Adriano Marteleto Godinho - José Humberto Pereira Muniz Filho - Juliane da Silva Heman - Roberto de Oliveira Batista Júnior
Esse conjunto de leis setoriais nos remete a uma compreensão
harmônica de todo o sistema jurídico e à confluência de interpretações
doutrinárias e jurisprudenciais acerca dos institutos da posse e da propriedade, hoje devidamente funcionalizados, com fundamento na interpenetração das regras e dos princípios que conformam o Direito Civil e
o Direito Constitucional.
Essa reviravolta no conceito de propriedade, calcada nas transformações sofridas pelas instituições de Direito Privado em geral, representa o alvorecer de novos tempos. A partir do momento em que a
funcionalização da propriedade se tornou um princípio fundamental, o
antiquíssimo instituto civil ganhou novas perspectivas. Não se fala em
exercício útil desse direito se o seu titular desrespeitar as suas finalidades econômicas e sociais. Ao proprietário de um imóvel, cumpre extrair
da propriedade as suas potencialidades e servir-se dela de forma a saciar
seus interesses, sem descurar do seu impacto social. Com isso, o proprietário deve atender às balizas constitucionais que preenchem o sentido da função social, o que prova a intolerância do ordenamento com a
desídia em relação ao uso a ser conferido aos bens imóveis.
3. As limitações ao exercício do direito de propriedade
Ultrapassado o paradigma da propriedade enquanto direito (quase) absoluto e consagrada a funcionalização deste instituto, impõe-se
atestar que a propriedade, para além de ser um mero conjunto de poderes concentrados nas mãos do seu titular, torna-se um autêntico poderdever.9 O direito de propriedade deve servir não apenas para suprir as
necessidades e interesses estritamente pessoais do seu titular, mas também para valer como um instrumento de pluralismo e promoção da
pessoa e dos interesses da coletividade.
Com o preceito da função social, o legislador passou a se preocupar com a forma de exercício da propriedade e com as suas consequên9 Concepção que surgiu com o magistério de DUGUIT, que, ao rejeitar a visão de propriedade
como direito subjetivo absoluto, erigiu a noção de propriedade-função, não com a finalidade de
negar a existência da propriedade privada, mas para centrar-se em sua natureza de direito-função;
não como poder incondicionado, mas como poder jurídico que tem uma razão de ser específica, da
qual não pode esquivar-se, de satisfazer necessidades individuais e coletivas (JELINEK, Rochelle. O
princípio da função social da propriedade e sua repercussão sobre o sistema do Código Civil.
Disponível em: http://www.mp.rs.gov.br/areas/urbanistico/arquivos/rochelle.pdf, p. 12. Acesso
em: 15 abr. 2013).
256
10 • O FENÔMENO DA DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL INDIRETA COMO INSTRUMENTO DE FUNCIONALIZAÇÃO DA POSSE E DA...
cias sociais, o que deve ser encarado não apenas como uma barreira a
impor limites negativos ao exercício da propriedade; mas mais do que
isso, o princípio constitucional da função social impõe, num sentido
positivo-comissivo, a promoção dos valores que servem de base para o
ordenamento, como o direito social à moradia, o objetivo de construir
uma sociedade justa e solidária e o princípio da dignidade da pessoa humana.10 Assim, a função social não se contrapõe à noção de propriedade
privada, mas a preenche, de modo a consistir no autêntico fundamento
da atribuição desse direito a um titular.
Esmiuçando o parâmetro constitucional da função social da propriedade, o artigo 1.228, § 1º do Código Civil, logo após consagrar as
prerrogativas de uso, gozo, disposição e sequela sobre a coisa – como fez
o Código Civil de 1916 –, estabelece os limites ao exercício do direito,
que deve estar em consonância com as suas finalidades econômicas e
sociais e com a preservação do meio ambiente e do patrimônio histórico e artístico. Estabeleceu-se, com isso, um meio de exercício da propriedade: faculta-se o aproveitamento da coisa e tutela-se a propriedade
privada, mas a ela deve ser conferido uso compatível com os vetores indicados no próprio texto legal. Cumpre ao proprietário, desta maneira,
tornar o exercício do seu direito proveitoso para si e para a sociedade.11
Tais limitações ou imposições sobre o exercício do direito de propriedade, instituto privado por excelência, demonstram efetivamente
que a figura passa a tangenciar novas perspectivas. Conclui-se, pois, que
não há garantia irrestrita à propriedade no texto constitucional brasileiro, mas apenas àquela que atenda ao preceito da função social; com isso,
a propriedade que atente contra os valores fundantes do ordenamento
10 ROCHELLE JELINEK cuida de apontar as dimensões abarcadas pela função social, que podem
representar a privação de determinadas faculdades (não pode o proprietário contaminar o solo
nem construir em áreas de reserva legal ou de preservação permanente), a obrigação de exercitar
determinadas faculdades (obrigações de fazer, como de parcelar gleba de sua propriedade) ou um
complexo de condições para o exercício de faculdades atribuídas, o que ocorre quando o texto
constitucional enuncia os pressupostos que conduzem ao adequado aproveitamento do solo
(JELINEK, op. cit., p. 24-28).
11 Daí a opinião de MARCO AURÉLIO VIANA, para quem “um imóvel rural, por exemplo,
só atende à sua finalidade econômica quando voltado para a produtividade compatível com sua
potencialidade. (...) Referindo-se à finalidade social, o que se pretende é a oposição ao individualismo,
dizendo que a utilização das coisas se faz de forma a gerar riquezas. Os bens devem ter uma utilização
que os torne produtivos, ou seja, geradores de riqueza”.VIANA, Marco Aurélio. Comentários ao
novo Código Civil: dos direitos reais. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 39-40.
257
Adriano Marteleto Godinho - José Humberto Pereira Muniz Filho - Juliane da Silva Heman - Roberto de Oliveira Batista Júnior
jurídico, nomeadamente aqueles contidos no texto constitucional, como
a função social, não será digna de tutela.12
Nesta perspectiva, um dos mais inovadores aspectos do novo Código Civil brasileiro consiste na instituição da inédita figura prevista em
seu artigo 1.228, §§ 4º e 5º, destinada a permitir a aquisição de propriedade em virtude da inércia de seu titular. Trata-se da denominada desapropriação judicial indireta, em que o proprietário, mediante o pagamento
de justa indenização, será privado da coisa se o imóvel consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de
considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado obras
e serviços de interesse social e econômico relevante. Vislumbra-se, no
instituto, um caráter nitidamente social, que em respeito ao direito social
à moradia, também constitucionalmente assegurado, pretende conferir
propriedade a um numeroso contingente de pessoas que jamais teriam
acesso à terra pela via da aquisição negocial a título oneroso.
Precisamente em virtude de sua importância, e tendo em vista
o emprego na lei de diversas expressões de conteúdo deliberadamente
impreciso, passa-se a analisar os elementos caracterizadores do instituto
a desapropriação judicial indireta.
4. A desapropriação judicial indireta e sua natureza
A desapropriação judicial indireta foi incorporada ao texto do
Código Civil de 2002, nos §§ 4º e 5º do artigo 1.228, assim redigidos:
§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel
reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé,
por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela
houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços
considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização
devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para
o registro do imóvel em nome dos possuidores.
Desde que inaugurado, o instituto em apreço ensejou uma série
de indagações, para as quais ainda não há soluções consensuais e definitivas. A primeira e mais elementar delas consiste em tentar identificar a
12 SCHREIBER, op. cit., p. 105-106.
258
10 • O FENÔMENO DA DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL INDIRETA COMO INSTRUMENTO DE FUNCIONALIZAÇÃO DA POSSE E DA...
natureza jurídica da figura. Para tentar elucidar esta controvérsia, duas
correntes doutrinárias foram elaboradas, cumprindo compreendê-las.
Segundo a primeira linha de pensamento, a desapropriação judicial indireta seria uma nova forma de usucapião coletiva. Esta modalidade de usucapião, a propósito, encontra guarida no artigo 10 da Lei n.
10.257/2001 (Estatuto da Cidade), assim expresso:
As áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados,
ocupadas por população de baixa renda para a sua moradia, por
cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível
identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de
serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam
proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
Diante da análise desta norma, identificam-se os pontos aproximativos e distintivos entre a usucapião coletiva e o fenômeno da desapropriação judicial indireta. É perceptível que os núcleos dos dispositivos em parelho são idênticos: em ambos, há uma limitação ao direito de
propriedade, em virtude da sua necessária funcionalização. No entanto,
os procedimentos adotados rumo à consecução dessa limitação tomam
veredas díspares.
Primeiramente, não há previsão de verbas indenizatórias na
hipótese de usucapião coletiva, uma vez que é um meio de aquisição
de propriedade que independe de qualquer pagamento; já a desapropriação judicial indireta exige que se pague uma justa indenização ao
proprietário. Ademais, a posse permeada na usucapião independe de
boa-fé, elemento crucial para a configuração da desapropriação judicial
indireta. Estas distinções, por si, são suficientes para afastar as figuras.
Contrapondo-se à perspectiva anterior, uma outra vertente, embasada no entendimento de MIGUEL REALE,13 reconhece a aproximação dos §§ 4º e 5º do artigo 1.228 do Código Civil ao instituto da
desapropriação comum, eis que ambos são instrumentos de perda com13 Eis o entendimento de MIGUEL REALE, na exposição de motivos do Projeto do novo
Código Civil acerca da desapropriação judicial indireta: “trata-se de uma inovação do mais
alto alcance, inspirada no sentido social do direito de propriedade implicando não só no novo
conceito esta, mas também novo conceito de posse-trabalho”. (REALE, Miguel, apud CASSETARI,
Christiano. Uma análise do instituto descrito no art. 1.228, §§ 4º e 5º, do Código Civil: pontos
divergentes e convergentes. DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo (Coord.). Questões
controvertidas no novo Código Civil São Paulo: Método, 2008, p. 104. v. 7.
259
Adriano Marteleto Godinho - José Humberto Pereira Muniz Filho - Juliane da Silva Heman - Roberto de Oliveira Batista Júnior
pulsória da propriedade, mediante pagamento de indenização, ainda
que, evidentemente, haja distinções notórias entre as figuras: na desapropriação ordinária, o Estado passa a titularizar o direito de propriedade sobre o bem desapropriado, enquanto na desapropriação judicial
indireta, o domínio da coisa é atribuído aos indivíduos que a mantinham em sua posse.
Seja como for, na gênese da desapropriação judicial indireta busca-se a concretização da justiça social e a vedação do abuso de direito
por parte do proprietário, decorrente de sua postura antiética, perante o
ordenamento civil-constitucional. Ademais, conforme os ensinamentos
de Christiano Cassettari, busca-se:
[...] dar efetividade à função social da propriedade – prevista como
mandamento constitucional integrante ao conceito de propriedade –
para privilegiar o seu cumprimento, e estimular o respeito à produção,
ao meio ambiente e às relações trabalhistas e sociais.14
Tem-se, pois, uma funcionalização da posse e da propriedade, no
âmbito do direito público, alinhada ao principio da boa-fé, no âmbito
privado, resultando, então, nessa nova espécie de desapropriação, elencada nos §§ 4º e 5º do artigo 1.228 do Código Civil. Sendo tanto a desapropriação comum quanto a judicial indireta meios de privação da propriedade, mediante o pagamento de indenização ao proprietário que se
vê privado da coisa. Entendemos, assim, ser esta uma forma especial de
desapropriação, conforme os requisitos e elementos a seguir abordados.
5. Os elementos da desapropriação judicial indireta
O instituto da desapropriação judicial indireta é preenchido por
diversas cláusulas abertas, cujo conteúdo deverá ser prudentemente
apreciado à luz das circunstâncias em concreto. A fluidez dos conceitos
que conformam a figura gera imensa controvérsia sobre sua aplicabilidade. O emprego de conceitos de teor indeterminado15 – extensa área,
14 CASSETTARI, Christiano. Uma análise do instituto descrito no art. 1.228, §§ 4º e 5º, do
Código Civil: pontos divergentes e convergentes. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones
Figueirêdo (Coord.). Questões controvertidas no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2008,
p. 107.v. 7
15 Sobre tais conceitos vagos que permeiam o Código Civil de 2002, Miguel Reale assim afirma:
“Somente assim se realiza o direito em sua concretude, sendo oportuno lembrar que a teoria do Direito
260
10 • O FENÔMENO DA DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL INDIRETA COMO INSTRUMENTO DE FUNCIONALIZAÇÃO DA POSSE E DA...
posse ininterrupta, boa-fé, considerável número de pessoas, interesse
social e econômico relevante –, aliado à imposição da fixação de justa
indenização pelo magistrado, como requisito para a prolação da sentença (que servirá como título hábil ao registro do imóvel), torna problemática a compreensão do alcance do instituto em apreço.
A propósito, já foi suscitada até mesmo a inconstitucionalidade
dos dispositivos que consagraram a desapropriação judicial indireta.
Tal arguição foi fruto de uma análise restritiva das funções que o Poder
Judiciário deve exercer sobre a matéria. Preliminarmente, entendeu-se
que somente o Chefe do Executivo teria legitimidade para promover a
desapropriação judicial indireta – embora, caso prevalecesse tal entendimento, teríamos um retrocesso na funcionalização da propriedade e no
desenvolvimento de um Direito Civil-Constitucional erigido para tutelar primordialmente as pessoas e seus valores existenciais. Reconhecida
esta equivocada tese, ter-se-ia um verdadeiro “esbulho possessório”,16 a
ser concretizado por via da discricionariedade do Poder Executivo, conforme sua competência (federal, estadual e municipal). Ademais, poderia ocorrer uma maior burocratização à efetivação da desapropriação
indireta, o que, perceptivelmente, destoa do seu interesse de funcionalização da propriedade e da posse em favor das partes hipossuficientes
da demanda. Neste diapasão, louvavelmente, houve o reconhecimento
da constitucionalidade do instituto na I Jornada de Direito do Conselho
da Justiça Federal (CJF), em que foi consagrado o enunciado de número
82, com os seguintes dizeres: “Art. 1.228: É constitucional a modalidade
aquisitiva de propriedade imóvel prevista nos §§ 4º e 5º do art. 1.228 do
novo Código Civil”.
concreto, e não puramente abstrato, encontra apoio de jurisconsultos do porte de Engisch, Betti,
Larenz, Esser e muitos outros, implicando maior participação decisória conferida aos magistrados.
Como se vê, o que se objetiva alcançar é o Direito em sua concreção, ou seja, em razão dos elementos
de fato e de valor que devem ser sempre levados em conta na enunciação e na aplicação da norma”
(REALE, Miguel. Visão geral do novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 54, fev. 2002.
Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2718>. Acesso em: 11 abr. 2013.
16 Quanto à desapropriação, JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO encara tal instituto,
em especial a desapropriação pelo executivo, aqui aplicada por analogia, como um mecanismo
autoritário e militarista. Primeiramente, por não existir prévia indenização. Segundo por não
possuir a necessária declaração de interesse, o que deturpa a funcionalização da propriedade. Ou
seja, a funcionalização da propriedade permearia as relações privadas, porém o Estado estaria
imune por um sistema autoritário a suas ações e universal a seus bens. CARVALHO FILHO, José
dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Petrópolis: Lumen Juris, 2011, p.798.
261
Adriano Marteleto Godinho - José Humberto Pereira Muniz Filho - Juliane da Silva Heman - Roberto de Oliveira Batista Júnior
Com efeito, nada há de irregular ou inconstitucional nas normas
que regem a figura. Ao revés, elas são perfeitamente compatíveis com
o espírito do texto constitucional, que consagra, em seu bojo, valores
como a extirpação da miséria e a promoção da função social da propriedade. Assim, devemos interpretar o papel do magistrado, a quem compete apreciar os elementos da desapropriação judicial indireta e decretar
a aquisição da propriedade a favor dos possuidores, como uma função
legítima, derivada por norma legal, diversamente da tese de inconstitucionalidade, que trata tal função como específica do Executivo.
A partir dessa análise inicial, pode-se compreender melhor a terminologia do instituto da desapropriação judicial indireta. O sentido da
expressão abarca tanto a compreensão da competência indireta do Poder Judiciário, proveniente de norma legal – eis que o magistrado decreta a aquisição da propriedade pelos ocupantes e determina o pagamento
da indenização –, como também a noção de que a área desapropriada
não passa a pertencer ao Estado, mas aos próprios possuidores que a
reivindicam.
Percebe-se, pois, a pujança do princípio constitucional da função
social da propriedade no fenômeno abordado. Como assinala o processualista LUIZ GUILHERME MARINONI17, a partir do momento em
que os princípios se projetam sobre a realidade, eles servem de fundamento para normas específicas – em causa, o artigo 1.228 do Código
Civil – que orientam concretamente a ação. Cumpre, enfim, atribuir eficácia à funcionalização da propriedade e da posse às partes reivindicantes, fazendo com que estas figuras jurídicas realmente exerçam a função
social que delas se espera.18
Calha trazer à baila um ponto peculiar para a compreensão da
desapropriação indireta. Uma discussão preliminar diz respeito à forma
de interpretação do § 4º do artigo 1.228 do Código Civil, que se reporta à expressão “imóvel reivindicado”. Uma análise literal e restritiva do
dispositivo legal conduziria ao entendimento de que a desapropriação,
em tais casos, somente poderia ser deduzida em sede de ação reivindi17 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 6. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012, p. 48.
18 BRITO, Rodrigo Toscano de. “Desapropriação judicial” e usucapião coletivo: uma análise
comparativa. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo (Coord.). Questões
controvertidas no novo Código Civil,. São Paulo: Método, 2008, p. 123. v. 7
262
10 • O FENÔMENO DA DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL INDIRETA COMO INSTRUMENTO DE FUNCIONALIZAÇÃO DA POSSE E DA...
catória, em que se discute a propriedade (e não diretamente a posse) de
determinados bens. Por outro lado, uma leitura mais permissiva do dispositivo permitiria compreender que a matéria pode ser suscitada tanto
em sede de ação possessória como no âmbito da ação reivindicatória.
Para elucidar o entendimento sobre o tema, pontuam-se três enunciados que foram aprovados em diversas Jornadas de Direito Civil, com os
seguintes dizeres:
- I Jornada, enunciado n. 84: “Art. 1.228: A defesa fundada no direito
de aquisição com base no interesse social (art. 1.228, §§ 4º e 5º, do novo
Código Civil) deve ser argüida pelos réus da ação reivindicatória, eles
próprios responsáveis pelo pagamento da indenização”.
- IV Jornada, enunciado n. 310: “Interpreta-se extensivamente a
expressão ‘imóvel reivindicado’ (art. 1.228, § 4º), abrangendo pretensões
tanto no juízo petitório quanto no possessório”.
- V Jornada, enunciado n. 495: “O conteúdo do art. 1.228, §§ 4º e 5º,
pode ser objeto de ação autônoma, não se restringindo à defesa em
pretensões reivindicatórias”.
A análise dos três enunciados referidos demonstra que o postulado inicial, segundo o qual a desapropriação judicial indireta apenas
poderia ser alegada como matéria de defesa por parte dos ocupantes,
quando o proprietário fosse o autor da ação reivindicatória, foi devidamente revisto. Os dois enunciados seguintes, de extrema importância
para conferir efetividade ao instituto, permitem não apenas que ele seja
deduzido, tanto em sede de ações reivindicatórias como possessórias,
mas também que seja objeto de ação autônoma, em que os possuidores
estarão legitimados a mover ação e pedir que a propriedade lhes seja
concedida, não sendo necessário, pois, que aguardem até que o proprietário os demande judicialmente.
Finalmente, pondere-se sobre a própria essência da ação em que
se discute a desapropriação judicial indireta – pouco importando, no
caso, que a demanda seja promovida pelo proprietário, interessado na
reivindicação da coisa, ou pelos possuidores, que pretendem ver reconhecido seu direito à aquisição da propriedade do imóvel. Qual seria,
enfim, a natureza da demanda desta desapropriação?
263
Adriano Marteleto Godinho - José Humberto Pereira Muniz Filho - Juliane da Silva Heman - Roberto de Oliveira Batista Júnior
Tomando por base o entendimento de PIEROTH e SCHLINK,
reproduzido por GILMAR FERREIRA MENDES,19 a possibilidade de
desapropriação mediante pagamento de justa indenização converte a
garantia da propriedade em garantia do valor da propriedade. Diante
deste panorama, a ação em que se discute a desapropriação judicial indireta se perfaz como de natureza real, eis que a causa da demanda recai
sobre a propriedade do objeto em si, debatendo-se, afinal, sobre quem
deve ser o titular do direito real de propriedade. Este é, essencialmente,
o objeto da demanda, sendo meramente incidental a discussão sobre a
indenização a ser paga (questão de natureza pessoal, por dizer respeito
ao cumprimento de uma obrigação). Este debate, aliás, é de suma importância, conforme se extrai da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADI-MC 2.26020.
5.1. A posse ininterrupta e por cinco anos de extensa área
Para que se configure a desapropriação judicial indireta, é imprescindível que diversas pessoas exerçam posse ininterrupta, por cinco
anos, de extensa área. Diante da ausência de parâmetros legais, como
definir o que viria a ser uma área extensa, passível de ser desapropriada,
nos termos da lei?
A exemplo dos demais elementos que preenchem o instituto em
questão tem-se, mais uma vez, a previsão de um requisito de caráter
eminentemente valorativo, a ser livremente apreciado pelo magistrado,
segundo sua prudência e discricionariedade.
É preciso, contudo, ponderar segundo as circunstâncias do caso.
A concretização do sentido da extensa área aludida pela lei levará em
conta, entre outros critérios, a localização do imóvel e o confronto de sua
medida em relação a outros imóveis situados na mesma região. Quanto
ao tema, GLAUCO GUMERATO RAMOS21 presta seu contributo:
19 MENDES, Gilmar Ferreira et. al. Curso de direito constitucional. 5. ed. rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 516.
20 Tal posicionamento diz respeito à desapropriação ao Estado. Logo, tendo a mesma causa de
pedir, aplica-se analogicamente à nossa discussão: “a ação de desapropriação indireta tem caráter
real e não pessoal, traduzindo-se numa verdadeira expropriação às avessas” (ADI-MC 2.260, Rel.
Min Moreira Alves, julgada em 14/02/2001, Pleno, DJ de 02/08/2002).
21 RAMOS, Glauco Gumerato. Contributo à dinâmica da chamada desapropriação judicial:
diálogo entre constituição, direito e processo. In: Revista Nacional de Direito e Jurisprudência. São
Paulo, v. 6, n. 76, abr. 2006, p.24.
264
10 • O FENÔMENO DA DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL INDIRETA COMO INSTRUMENTO DE FUNCIONALIZAÇÃO DA POSSE E DA...
Não é de considerar a ‘extensa área’ descrita no §4º, como área urbana
ou rural de enormes proporções. O que deve ser levado em conta é o
fato de a respectiva área ter sido ‘extensa’ o bastante para viabilizar que
a ‘posse trabalho’ de várias pessoas tenha redundado em benfeitorias de
relevante interesse social e econômico. Exigir que a ‘extensa área’ seja de
proporções ‘latifúndicas’ [...], será a consagração de um racionalismo
contrário à função social da posse e da propriedade.
Com efeito, o que se deve esperar é que a extensão da área ocupada pelos possuidores seja suficiente para propiciar-lhes a concessão da
esperada função social.
Outras balizas que permitem identificar o significado da expressão “extensa área” podem ser extraídas da própria lei. Por analogia, é
possível considerar as medidas estabelecidas para a caracterização da
usucapião coletiva, cujo limite da área deve superar a extensão de 250
m². Vide, a propósito, o teor do artigo 10 do Estatuto da Cidade (Lei n.
10.257/2001):
As áreas urbanas com mais de 250 m², ocupadas por população de baixa
renda para sua moradia, por mais de 5 anos, ininterruptamente e sem
oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por
cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente,
desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel
urbano ou rural.
Cabe afirmar, portanto, que o modo mais coerente para interpretar o sentido da cláusula aberta em apreço seria partir de uma estipulação elementar: a área extensa deve necessariamente superar a medida
de 250 m². Há mesmo quem sustente a tese de que o parâmetro a ser
utilizado pelo magistrado paira na delimitação de “algo que suplante no
mínimo dez vezes os 250 m² (se em área urbana) ou 50 hectares (se zona
rural)”,22 medidas básicas que encontram guarida nos arts. 1.239 e 1.240
do Código Civil, e que servem para estipular a extensão máxima para a
usucapião rural ou urbana.
Malgrado certas tentativas de se conferir maior precisão ao conceito vago empregado na lei, o fato é que o legislador deliberadamente
legou a tarefa de identificar o conceito de “extensa área” ao magistrado,
22 RIBEIRO, Alex Sandro. Posse “pro labore” do novo Código Civil. In: Revista Síntese de
Direito Civil e Direito Processual Civil, n. 23, mai./jun. 2003, p. 150.
265
Adriano Marteleto Godinho - José Humberto Pereira Muniz Filho - Juliane da Silva Heman - Roberto de Oliveira Batista Júnior
consoante as vicissitudes do caso concreto, inexistindo parâmetros objetivos que permitam estabelecer aprioristicamente o sentido da cláusula geral em questão.
5.2. O considerável número de possuidores
Outro ponto importante, tratado com certa obscuridade pela lei,
consiste na exigência de que a propriedade seja deferida a um “considerável número de pessoas”. Uma vez mais, inexistem critérios legais que
permitam aferir o significado da referida expressão.
Apesar disso, é preciso conceber que o número de possuidores
somente será considerável caso a quantidade de indivíduos que ocupem
a área seja suficiente para permitir que ela atenda a sua função social.
Assim, é imprescindível traçar uma ideia de proporcionalidade entre o
número de ocupantes e a extensão do imóvel: quanto maior este, mais
elevado será o contingente de possuidores necessários para atestar que
a propriedade está sendo racional e adequadamente aproveitada. Tratase de uma questão bastante capciosa, de cunho estritamente subjetivo,
legada ao critério do livre convencimento do juiz para sua aplicabilidade
em cada caso, singularmente averiguado.
Neste domínio, é lapidar a lição de Rodrigo Toscano de Brito,
para quem o número de ocupantes será variável ao sabor das circunstâncias, sobretudo a extensão da área ocupada:
[...] é possível se afirmar que duas pessoas não satisfazem o conceito
de ‘considerável número de pessoas’, mas dez pessoas, que representam,
absolutamente, um número pequeno, podem ser relativamente à área de
terra urbana considerada, um ‘número considerável.23
A partir desta correlação entre a noção do “considerável número de pessoas” e a extensão da área ocupada, é possível avançar e propor um modelo que permita estabelecer um parâmetro mais fiável para
concretizar o sentido da cláusula geral em apreço. Embora não caiba
recorrer a fórmulas matemáticas que, de algum modo, enclausurem o
conteúdo das cláusulas gerais – eis que elas existem precisamente para
atribuir discricionariedade ao magistrado, a quem caberá interpretá-las
equitativamente –, é possível traçar certas balizas que possam servir
23 RAMOS, op. cit., p. 24.
266
10 • O FENÔMENO DA DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL INDIRETA COMO INSTRUMENTO DE FUNCIONALIZAÇÃO DA POSSE E DA...
como valiosos indicativos para a resolução dos conflitos que envolvam
o instituto da desapropriação judicial indireta.
Em relação aos terrenos rurais – que, à partida, serão mais frequentemente objetos dos pedidos de aquisição de propriedade via desapropriação judicial indireta –, é sabido que vigora a noção de módulo
rural, correspondente a uma unidade básica de extensão. Tal unidade,
segundo a legislação pertinente (Estatuto da Terra, Lei n. 4.504/64) corresponde àquela quantidade de terra necessária para prover o trabalho e
o sustento da entidade familiar.
Nesse sentido, a definição de módulo rural encontra previsão no
artigo 4º do Estatuto da Terra:
Art. 4º - Para os efeitos desta Lei, definem-se: (...)
II - Propriedade Familiar, o imóvel rural que, direta e pessoalmente
explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força
de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e
econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de
exploração, e eventualmente trabalhado com a ajuda de terceiros;
III - Módulo Rural, a área fixada nos termos do inciso anterior.
Tal unidade de medida é fixada com base nos critérios determinados pelo artigo 11 do Decreto n. 55.891, de 31 de março de 1965, que
contém os seguintes dizeres:
Art. 11. O módulo rural, definido no inciso III do artigo 4º do Estatuto
da Terra, tem como finalidade primordial estabelecer uma unidade
de medida que exprima a interdependência entre a dimensão, a
situação geográfica dos imóveis rurais e a forma e condições do seu
aproveitamento econômico.
Parágrafo único. A fixação do dimensionamento econômico do
imóvel que, para cada zona de características ecológicas e econômicas
homogêneas e para os diversos tipos de exploração, representará o
módulo, será feita em função: da localização e dos meios de acesso do
imóvel em relação aos grandes mercados;
b) das características ecológicas das áreas em que se situam;
c) dos tipos de exploração predominantes na respectiva zona.
Sendo assim, o módulo rural varia não apenas quanto à localização do imóvel, mas também com relação ao tipo de exploração nele
existente, podendo o terreno, segundo a classificação do Incra, ser hor267
Adriano Marteleto Godinho - José Humberto Pereira Muniz Filho - Juliane da Silva Heman - Roberto de Oliveira Batista Júnior
tigranjeiro, de cultura permanente, de cultura temporária, de exploração pecuária, de exploração florestal ou de exploração indefinida. Isto
reforça a ideia de que o magistrado, para aferir com prudência o sentido
da cláusula geral em apreço, deverá descer às minúcias do caso concreto
e investigar qual a finalidade da utilização do imóvel ocupado.
Apesar da fluidez do critério em questão, cabe propor, a partir
da definição do módulo rural, que esta medida seja utilizada como parâmetro numa equação padrão, a ser eventualmente considerada pelo
magistrado, que tenha como suporte a consideração da extensão real da
propriedade em relação a uma unidade básica (ou seja, o módulo rural).
Portanto, num primeiro momento, caberia apreciar quantos módulos
rurais estão contidos no terreno a ser desapropriado. Supondo-se ter o
bem a medida de 200 hectares, e considerando, hipoteticamente, que o
módulo rural da região corresponda a 35 hectares, caberá apontar que o
imóvel em questão comporta 5,71 módulos rurais.
A consideração do que seria o número razoável de possuidores
poderia ter como base o número de módulos rurais contidos na área a
ser desapropriada, multiplicado pelo número médio de pessoas em cada
família brasileira – que, segundo dados do IBGE de 2010, corresponde
a 4 indivíduos. Ou seja, depois de obtida a quantidade de módulos rurais compreendidos no imóvel, caberá multiplicá-lo por 4. A partir do
exemplo trabalhado, havendo 5,71 módulos rurais no terreno, e depois
de multiplicado esse número por 4, será alcançado o número de 22,85
– por aproximação, 23. Este poderia ser um número considerável de pessoas a ocuparem um terreno de 200 hectares, numa região em que o
módulo rural, por hipótese, seja equivalente a 35 hectares.
A fórmula proposta, naturalmente, não tem o condão de resolver
previamente o problema da interpretação a conferir à norma, e deverá
ser cotejada com as particularidades de cada situação em concreto. Não
deixa de servir, contudo, como um parâmetro para auxiliar na concretização do significado do “considerável número de pessoas” a que alude
o legislador.
268
10 • O FENÔMENO DA DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL INDIRETA COMO INSTRUMENTO DE FUNCIONALIZAÇÃO DA POSSE E DA...
5.3. O sentido da boa-fé referida no § 4º do artigo 1.228
do Código Civil
Para além de demandar que um considerável número de pessoas
ocupe uma extensa área, exige a lei que a posse em questão seja de boafé – e talvez seja este o aspecto mais controverso de toda a disciplina.
Cumpre discutir qual o sentido da boa-fé a que se reporta o dispositivo legal. Num primeiro momento, ao apelar à ideia de posse de
boa-fé, caberia empregar o significado contido no artigo 1.201 do Código Civil: possuidor de boa-fé seria aquele que ignora o vício que o
impede de adquirir a propriedade. Vê-se, pois, que a boa-fé em questão
se reveste de um notório caráter de subjetividade, eis que o possuidor,
no caso, deverá desconhecer o óbice que macula sua posse.
É contestável, contudo, que a boa-fé exigida para a caracterização
da desapropriação judicial indireta corresponda ao sentido estatuído
pelo artigo 1.201 do Código Civil. Configurando-se tal desapropriação
a partir do momento em que um considerável número de pessoas ocupa
extensa área, é pouco provável que tais indivíduos ignorem que sua posse é indevida, eis que, no mais das vezes, ocuparão terreno sabidamente
alheio. Caso o conceito de posse de boa-fé empregado no § 4º do artigo
1.228 do Código Civil corresponda à ignorância do fato de se possuir
coisa alheia, o instituto da desapropriação judicial indireta perderá a sua
eficácia e restará relegado ao ostracismo.
Por isso, é possível defender que a boa-fé aludida no preceito legal
não é a subjetiva ou anímica, cabendo ser considerada sob um prisma
objetivo: assim, a boa-fé dos ocupantes deve ser relacionada à sua conduta, e não ser encarada no plano intencional.24 Noutras palavras, mais
importará averiguar se os ocupantes conferem função social à posse que
exercem e se demonstram verdadeiro ânimo de assim continuar procedendo a apurar se eles conhecem ou não a circunstância de estarem a
ocupar imóvel de propriedade de outrem.
Colaborando para reforçar tal entendimento, foi aprovado o
enunciado 309, oriundo da IV Jornada de Direito Civil, editado nos seguintes termos: “o conceito de posse de boa-fé de que trata o artigo 1.201
24 TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil,: direito das coisas. São Paulo:
Método, 2008, p. 136.
269
Adriano Marteleto Godinho - José Humberto Pereira Muniz Filho - Juliane da Silva Heman - Roberto de Oliveira Batista Júnior
do Código Civil não se aplica ao instituto previsto no §4º do artigo 1.228
do Código Civil”.
Advogar o desapego à concepção subjetiva da boa-fé no âmbito possessório, contudo, é tarefa árdua. Isto se dá não apenas porque o
sentido da posse de boa-fé empregado no artigo 1.201 do Código Civil
é manifestamente subjetivista, mas também porque será preciso vencer
uma tradicional e conservadora visão acerca da ocupação de terras no
Brasil, para assegurar plena eficácia ao instituto da desapropriação judicial indireta.
Veja-se, a propósito, o teor da ementa de um julgado extraído do
Tribunal de Justiça de Rondônia, em que se reconheceu a impossibilidade de ser decretada a desapropriação judicial indireta, em virtude do
recurso à noção subjetiva da posse:
Reintegração de posse. Valoração das provas. Atribuição do juiz.
Desapropriação pela posse-trabalho. Ausência de boa-fé. Compete
ao magistrado apreciar livremente as provas, desde que decida
motivadamente. Configurada a suspeição das testemunhas trazidas pela
parte requerida, age corretamente o juiz ao atribuir valor relativo aos
seus depoimentos, confrontando-os com as demais provas existentes.
Havendo circunstâncias nos autos que permitam a presunção de que
o possuidor não ignora que ocupa indevidamente o imóvel, mostra-se
incabível a desapropriação judicial (CC, art. 1.228, § 4º) (TRIBUNAL
DE JUSTIÇA DE RONDÔNIA. RO 100.001.2006.018386-0, Relator:
Desembargador Kiyochi Mori, Data de Julgamento: 19/05/2009).
Tem-se, pois, que esta é a principal barreira a ultrapassar: conferir
um traço objetivista e finalístico à boa-fé aludida no § 4º do artigo 1.228
do Código Civil, sob pena de se negar vigência à figura da desapropriação judicial indireta e tornar letra morta o importante preceito ali contido, que seguramente contribui para garantir efetivo cumprimento ao
princípio constitucional da função social da propriedade.
5.4. As obras e serviços de relevante interesse social e
econômico
Como derradeiro requisito contido no § 4º do artigo 1.228 do
Código Civil para a caracterização da desapropriação judicial indireta,
figura a exigência de que os possuidores da extensa área nela realizem,
270
10 • O FENÔMENO DA DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL INDIRETA COMO INSTRUMENTO DE FUNCIONALIZAÇÃO DA POSSE E DA...
em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz
de interesse social e econômico relevante.
Como se passa em relação aos demais pressupostos, salta aos
olhos o caráter valorativo da medida: caberá ao juiz aferir, ao sabor das
circunstâncias de cada caso em particular, quais obras ou serviços poderão justificar a aquisição da propriedade do imóvel, em virtude de sua
relevância social.
Por um lado, é razoável a concessão de uma permissiva liberalidade do magistrado para apurar, em cada contexto, quais seriam as
obras ou serviços socialmente relevantes. Isto permite a prudente averiguação das circunstâncias em concreto, o que poderá variar, inclusive,
em função do local em que se situa o imóvel, pois o interesse social
e econômico para promover o desenvolvimento e o bem comum em
uma região não necessariamente será igual ou semelhante em relação a
outros locais. De outra sorte, por vezes se contesta a atribuição de tamanha margem de discricionariedade ao juiz, uma vez que, a partir de tal
dispositivo, a lei
[...] atribuiu ao juiz o papel de definir o que é ou não interesse
social, extrapolando dessa forma a apreciação jurídica para adentrar
propriamente na apreciação política, que é própria dos órgãos do
poder executivo (onde o que prevalece é a discricionariedade) e não do
judiciário, o qual é pautado puramente na legalidade.25
Apesar das críticas cabíveis, a exigência de que o julgador apure em cada caso concreto quando será ou não cumprida a função econômico-social que se espera do exercício da posse e da propriedade,
não destoa do emprego das diversas outras cláusulas gerais contidas no
mesmo dispositivo legal, como o “considerável número de pessoas”, a
“extensa área” e a “posse de boa-fé”. É traço marcante do Código Civil
de 2002, aliás, a previsão de conceitos jurídicos deliberadamente vagos,
cujo conteúdo deve ser preenchido pelo intérprete. Não repugna à plena validade e eficácia da desapropriação indireta, portanto, que seja de
competência do magistrado a aferição do cumprimento da função social do imóvel, atendendo-se, em qualquer circunstância, à necessidade
de se conferir um tratamento adequado e racional ao solo.
25 FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 5.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p.146.
271
Adriano Marteleto Godinho - José Humberto Pereira Muniz Filho - Juliane da Silva Heman - Roberto de Oliveira Batista Júnior
5.5. A justa indenização e seu pagamento
Conforme já se afirmou, a desapropriação judicial indireta exige,
para que os possuidores que pretendem adquirir a propriedade da extensa área ocupada, que seja paga ao proprietário uma justa indenização.
Na atual organização econômica e social a indenização devida no
instituto em estudo merece reflexões. Ressalte-se, de plano, que é devido
o pagamento da indenização para o proprietário do imóvel, mesmo que
este seja negligente e abdique do exercício das funções sociais de sua
propriedade.
Uma vez estabelecido o valor a indenização, matéria que será pormenorizadamente analisada em momento oportuno, pende a controvérsia sobre quem deverá pagá-la. Neste ponto, caberia concluir, num
primeiro momento, que a obrigação deveria recair sobre os possuidores
– futuros proprietários – do bem, pois eles usufruem do imóvel e lhe
conferem função social, em atendimento aos preceitos sociais da comunidade. Neste sentido, conforme preleciona LUCAS ABREU BARROSO, “(...) não nos parece que o legislador pudesse ter idealizado solução
distinta senão a do pagamento da indenização pelos possuidores”.26 Reforça tal entendimento TEORI ALBINO ZAVASCKI, ao suscitar que “(...)
embora não seja expresso a respeito o dispositivo, não há dúvida de que tal
pagamento deve ser feito pelos possuidores, réus da ação reivindicatória”.27
Desta posição, surgiu o enunciado n. 84 da I Jornada de Direito
Civil do Conselho da Justiça Federal, firmando o entendimento de que
compete aos possuidores o pagamento da justa indenização ao proprietário. Eis a íntegra do aludido enunciado:
Art. 1.228: A defesa fundada no direito de aquisição com base no
interesse social (art. 1.228, §§ 4º e 5º, do novo Código Civil) deve ser
argüida pelos réus da ação reivindicatória, eles próprios responsáveis
pelo pagamento da indenização.
A solução, à partida, parece razoável. Entretanto, cabe pressupor
a baixa condição econômica das pessoas que irão adquirir a proprie26 BARROSO, Lucas Abreu. A realização do direito civil: entre normas jurídicas e práticas.
Curitiba: Juruá, 2011, p. 216.
27 ZAVASCKI, Teori Albino. A tutela da posse na Constituição e no Projeto do novo Código
Civil. A reconstrução do Direito Privado. São Paulo: RT, 2002, p. 852.
272
10 • O FENÔMENO DA DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL INDIRETA COMO INSTRUMENTO DE FUNCIONALIZAÇÃO DA POSSE E DA...
dade, o que tornaria penoso o pagamento da indenização. Nos dizeres
de CÉSAR FIUZA, “(...) o § 5º do art. 1.228 não diz quem deverá pagar
esta indenização. Presumidamente, os adquirentes (...). Na prática, porém, pode tratar-se de pessoas muito pobres, o que inviabilizaria a dita
indenização”.28
Entende-se que, em conformidade com as diretrizes de políticas
públicas e as questões fundiárias, quando impossibilitados os adquirentes, por suas baixas condições econômicas, para serem alvos do pagamento da justa indenização devida ao proprietário do bem imóvel, o
Poder Público – no caso, o Ente Federado competente para a desapropriação do imóvel –, seria o responsável pelo pagamento da indenização. É o que defende LUCAS ABREU BARROSO:
[...] opinamos na direção de que, quando o imóvel reivindicado
tiver como possuidores pessoas de baixa renda, uma vez declarada
a desapropriação judicial e apurado o quantum indenizatório, o
pagamento do mesmo deve ficar a cargo do ente federado que teria
competência para desapropriá-lo por via administrativa.29
Tal entendimento nos parece mais adequado, pois obedece ao
princípio da operabilidade, basilar no atual Código Civil, evitando conflitos sociais, com fulcro na preservação da cidadania e da dignidade da
pessoa humana. É o que restou consagrado no enunciado 308, aprovado
na IV Jornada de Direito Civil, verbis:
Art.1.228. A justa indenização devida ao proprietário em caso de
desapropriação judicial (art. 1.228, § 5°) somente deverá ser suportada
pela Administração Pública no contexto das políticas públicas de
reforma urbana ou agrária, em se tratando de possuidores de baixa
renda e desde que tenha havido intervenção daquela nos termos da
lei processual. Não sendo os possuidores de baixa renda, aplica-se a
orientação do Enunciado 84 da I Jornada de Direito Civil.
É importante frisar que este enunciado estabelece a seguinte regra: o Estado somente pagará a indenização se os possuidores forem
pessoas de baixa renda; caso contrário, cumprirá aos próprios possuidores o ônus de suportarem a indenização.
28 FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 8 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 798.
29 Ibid., p. 217.
273
Adriano Marteleto Godinho - José Humberto Pereira Muniz Filho - Juliane da Silva Heman - Roberto de Oliveira Batista Júnior
No que se refere ao quantum, visualizamos problemas para a fixação da indenização que deverá ser paga pelos possuidores ou pelo Poder
Público. Se os valores forem irrisórios, prevalecerá a impressão de que se
trata de punição ao proprietário desidioso, o que não deve constituir o
norte para o caso. De maneira diversa, se o montante for elevado e incompatível com as condições sociais dos adquirentes, provocará frustrações
econômicas e desordem social, em desconformidade com os ditames do
ordenamento jurídico. Neste sentido, aliás, CÉSAR FIUZA se posiciona
sobre o tema, aduzindo que “(...) ao fixar a ‘justa indenização’ ao proprietário, o juiz deverá levar em conta a condição socioeconômica dos possuidores, a fim de não inviabilizar a aquisição da propriedade por eles”30.
Sobre o sentido da expressão “justa indenização”, foi aprovado o
enunciado 240, por ocasião da realização da III Jornada de Direito Civil, a reconhecer que o pagamento não deve corresponder ao preço de
mercado do bem: “Art. 1.228: A justa indenização a que alude o § 5º do
art. 1.228 não tem como critério valorativo, necessariamente, a avaliação
técnica lastreada no mercado imobiliário, sendo indevidos os juros compensatórios”.
Por fim, compete entender que o pagamento da indenização deve
ocorrer antes de se deferir o registro do bem em nome dos possuidores.
Mais uma vez, trata-se de entendimento consolidado por meio do enunciado 241, aprovado na III Jornada de Direito Civil:
Art. 1.228: O registro da sentença em ação reivindicatória, que opera
a transferência da propriedade para o nome dos possuidores, com
fundamento no interesse social (art. 1.228, § 5º), é condicionada ao
pagamento da respectiva indenização, cujo prazo será fixado pelo juiz.
Conclui-se, portanto, que somente depois de proferida a sentença
judicial sobre a procedência do pedido formulado pelo vasto número
de ocupantes, e o completo exaurimento do instituto da desapropriação
judicial indireta – inclusive mediante o pagamento prévio da indenização –, é que a decisão valerá como título para a procedência de registro
do imóvel.
30 Ibid., p. 798.
274
10 • O FENÔMENO DA DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL INDIRETA COMO INSTRUMENTO DE FUNCIONALIZAÇÃO DA POSSE E DA...
6. Conclusões
O instituto da desapropriação judicial indireta consiste em um
importante instrumento, apto a conferir a aplicabilidade concreta ao
princípio da função social da propriedade. Trata-se de uma forma inovadora e especial de desapropriação, proposta pelo novo Código Civil,
em que se assegura a possibilidade de que os possuidores de extensas
áreas passem a ter o domínio do bem, desde que cumpridos os requisitos estabelecidos na lei.
Apesar de sua notória relevância, o instituto não tem merecido a
devida atenção por parte da doutrina, sendo também escassos os casos
decididos pelos Tribunais Brasileiros sobre o tema.
Nas linhas acima tracejadas, foram identificados os diversos
pressupostos para a incidência do instituto da desapropriação judicial
indireta, todos eles consistentes em conceitos vagos e subjetivos, cujas
definições devem ser estabelecidas pelo magistrado, a partir das circunstâncias de cada caso concreto.
A dificuldade de interpretar os pressupostos que preenchem a figura, contudo, não pode embaraçar o seu pleno desenvolvimento. Os
novos horizontes do Direito Civil demandam, em especial, a incidência
de instrumentos de promoção de valores como a dignidade humana, a
justiça social e o direito social à moradia. Desempenhando a desapropriação judicial indireta destes papéis, é imprescindível dar vida ao instituto, sob pena de se recusar aplicação a um preceito legal de crucial relevância para a realização do princípio da função social da propriedade.
7. Referências
BARROSO, Lucas Abreu. A realização do direito civil: entre normas
jurídicas e práticas. Curitiba: Juruá, 2011.
BRITO, Rodrigo Toscano de. “Desapropriação judicial” e usucapião
coletivo: uma análise comparativa. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES,
Jones Figueirêdo (Coord.). Questões controvertidas no novo Código
Civil. São Paulo: Método, 2008. v. 7
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito
Administrativo. 24. ed. Petrópolis: Lumen Juris, 2011.
275
Adriano Marteleto Godinho - José Humberto Pereira Muniz Filho - Juliane da Silva Heman - Roberto de Oliveira Batista Júnior
CASSETTARI, Christiano. Uma análise do instituto descrito no art.
1.228, §§ 4º e 5º, do Código Civil: pontos divergentes e convergentes. In:
DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo (Coord.). Questões
controvertidas no novo Código Civil.. São Paulo: Método, 2008. v. 7
FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade
contemporânea. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998.
FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo
Poder Judiciário. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979.
FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 8 ed. Belo Horizonte: Del
Rey, 2004.
HÄRBELE, Peter. Die Wesensgehaltgarantic des Art. 19 Abs. 2
Grundgesetez. 3. ed. Heidelberg: Müller, 1983.
JELINEK, Rochelle. O princípio da função social da propriedade e sua
repercussão sobre o sistema do Código Civil. Disponível em: http://
www.mp.rs.gov.br/areas/urbanistico/arquivos/rochelle.pdf. Acesso em:
10 jul. 2011.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. Jus
Navigandi, Teresina, a. 4, n. 33, 1 jul. 1999. Disponível em: http://jus.
com.br/revista/texto/507/constitucionalizacao-do-direito-civil. Acesso
em: 15 abr. 2013.
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 6. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
MENDES, Gilmar Ferreira et. al. Curso de Direito Constitucional. 5.
ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010.
RAMOS, Glauco Gumerato. Contributo à dinâmica da chamada
desapropriação judicial: diálogo entre constituição, direito e processo.
In: Revista Nacional de Direito e Jurisprudência. São Paulo, v. 6, n.
76, abr. 2006.
REALE, Miguel. Visão geral do novo Código Civil. Jus Navigandi,
Teresina, a. 6, n. 54, fev. 2002. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/
doutrina/texto.asp?id=2718>. Acesso em: 11 abr. 2013.
276
10 • O FENÔMENO DA DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL INDIRETA COMO INSTRUMENTO DE FUNCIONALIZAÇÃO DA POSSE E DA...
RIBEIRO, Alex Sandro. Posse “pro labore” do novo Código Civil. In:
Revista Síntese de Direito Civil e Direito Processual Civil, n. 23, mai./
jun. 2003.
SCHREIBER, Anderson; TEPEDINO, Gustavo. A garantia da
propriedade no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de
Campos.ano VI, n. 6, p. 103-104.jun. 2005.
TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil,: direito das
coisas. São Paulo: Método, 2008. v. 4
TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 4. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008.
VIANA, Marco Aurélio. Comentários ao novo Código Civil: dos
direitos reais. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
ZAVASCKI, Teori Albino. A tutela da posse na Constituição e no
Projeto do novo Código Civil. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.).
A reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002.
277
11
RESPONSABILIDADE AFETIVA DOS
FILHOS
Dimitre Braga Soares de Carvalho1
- Jéssica Alessandra Barbosa Dantas2
- ZurisadaiLidna Silva Guedes3
Sumário: Introdução - 1. A família e a constitucionalização
do Direito Civil brasileiro - 2. A afetividade como direito e as
implicações da sua omissão - 3. O direito do idoso à afetividade
- 4. Da implementação do Projeto de Lei nº 4.294/08 e suas
garantias - 6. Conclusões - 7. Referências Bibliográficas
Introdução
O Direito de Família tem passado - especialmente na última década - por um processo de releitura à luz dos princípios consagrados na
Constituição da República de 1988. Diante deste fenômeno, as normas
1 Mestre em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Doutorando em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica de Buenos Aires – PUC- BA. Advogado Especializado em Direito
de Família. Membro e Vice-Presidente Estadual do IBDFAM/PB. Membro da International Society
of Family Law – ISFL. Professor de Direito de Família da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN).
2 Graduanda do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
3 Graduanda do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
279
Dimitre Braga Soares de Carvalho - Jéssica Alessandra Barbosa Dantas - ZurisadaiLidna Silva Guedes
não devem ser interpretadas unicamente em sua acepção literal, uma
vez que acabariam por restringir o alcance da sua finalidade técnica e,
consequentemente, deixariam de abarcar um direito que estaria assegurado, caso fosse levada em conta a sua interpretação teleológica.
Este novo olhar sobre as normas do ramo familiarista requer a
compreensão e a aplicação dos princípios jurídicos nas relações que
emergem do seio social. Sabe-se, então, que nestes moldes de interpretação constitucional, o denominado princípio da afetividade, consagrado
doutrinária e jurisprudencialmente, tem chamado a atenção do nosso
ordenamento jurídico e, mais precisamente, do Direito de Família, já
que tem significativa intensidade na composição das relações entre as
pessoas do nosso tempo.
Deste modo, o princípio da afetividade (segundo o qual se presume que no seio familiar deve haver não só o respeito, mas também o
carinho, o amor e a atenção) tem servido de base para que se pleiteie
perante o Judiciário a indenização pelo abandono afetivo. Isto significa
dizer que, embora o amor ou o simples afeto não possam ser exigidos
de forma real e efetiva pelo indivíduo, ou mesmo pelo próprio Poder
Judiciário, a falta deles pode ensejar uma obrigação, na qual aquele que
deixou de dar o afeto deverá “recompensar” de outro modo, o que se
tornou carente deste apreço.4
4 Nesse sentido, a bela lição da Ministra Nancy Andrigui (STJ), ao interpretar a obrigação dos pais
em relação ao vínculo de afeto para com os filhos como sendo um “dever de cuidar”:
“Sob esse aspecto, indiscutível o vínculo não apenas afetivo, mas também legal que une pais e filhos,
sendo monótono o entendimento doutrinário de que, entre os deveres inerentes ao poder familiar,
destacam-se o dever de convívio, de cuidado, de criação e educação dos filhos, vetores que, por óbvio,
envolvem a necessária transmissão de atenção e o acompanhamento do desenvolvimento sóciopsicológico da criança”.
(...)
“Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever
jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos”
(...)
“O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela
possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações
concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole;
comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas
possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes”.
CARVALHO, Dimitre Braga Soares de. STJ muda o entendimento sobre abandono afetivo e, em
belo voto, a Min. Nancy Andrigui reconhece a obrigação do “cuidado”. Disponível em: http://
dimitresoares.blogspot.com.br/2012/05/stj-muda-o-entendimento-sobre-abandono.html.
280
11 • RESPONSABILIDADE AFETIVA DOS FILHOS
Note-se, assim, que os princípios informativos devem ser reconhecidos de maneira isonômica em relação a todas as pessoas, principalmente no cenário atual que insta à leitura constitucional das normas que
estabelecem o escorço jurídico. Deste modo, se as normas jurídicas asseguram em seus preceitos proteção efetiva e igualitária a todos os cidadãos,
a mesma regra deve ser aplicada quando se trata de um grupo minoritário
e mais vulnerável à lesão nos seus direitos, como é o caso dos idosos.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) e o Código
Civil em seus artigos 3º, 4º e 5º e 1.634, I e II, respectivamente, preveem
o dever dos pais, juntamente com outras entidades, de zelar pela criança
e pelo adolescente, garantindo-lhes os direitos fundamentais inerentes
à pessoa humana para que possam, assim, se desenvolver física, mental, moral, espiritual e socialmente em condições de dignidade. Assim,
restando configurada a possibilidade de se reclamar o afeto pelas vias
judiciais, nota-se que o foco da questão tem se dado em relação à responsabilidade que os pais têm sobre os seus filhos, deixando à margem a responsabilidade que os filhos também possuem em relação aos seus pais.
O idoso, portanto, encontra-se um tanto marginalizado frente a
algumas questões relevantes do Direito de Família, como é o caso da
responsabilidade afetiva dos filhos para com os pais. Não é que haja um
esquecimento por parte do ordenamento jurídico, mormente o amparo
legal é dado aos idosos por meio da Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), a qual preceitua a efetivação de seus direitos fundamentais, bem
como por meio de outras legislações presentes no ordenamento brasileiro. Contudo, não obstante o significativo avanço obtido pelo direito
brasileiro com a criação destas leis, ainda há muito a ser considerado e
efetivado sobre esta temática, principalmente quanto à responsabilidade
afetiva que é devida ao idoso pelos filhos, posto que, até o momento, este
tema tão relevante não tem recebido as discussões merecidas.
Enfim, o idoso, como sujeito de direitos que é, também tem a
faculdade de exigir o afeto. Isto nada mais é do que corolário da visão principiológica que deve permear o emprego das normas jurídicas,
garantindo, acima de tudo, o reconhecimento e a aplicação da própria
ideia de “dignidade da pessoa humana”.
Neste diapasão, surge o projeto de Lei 4.294/2008, segundo o qual
os pais idosos poderão requerer a indenização por abandono afetivo dos
filhos. Estes, por sua vez, podem ser responsabilizados pelo descaso afe281
Dimitre Braga Soares de Carvalho - Jéssica Alessandra Barbosa Dantas - ZurisadaiLidna Silva Guedes
tivo. É razoável perceber que, assim como o menor, o idoso naturalmente se encontra em posição de fragilidade, estando muito mais carecedor
de atenção, principalmente daqueles de quem, pelo próprio laço familiar, espera-se receber.
Ora, a valorização do idoso no contexto real da sociedade brasileira atual está longe de um nível satisfatório, o que faz com que seja necessária a intervenção do Estado para garantir-lhe o devido tratamento.
Enxergamos a intenção da Lei supracitada como uma medida ajustada,
capaz de influenciar diretamente nas relações familiares, visto que, ademais do amparo garantido pela Carta Magna no artigo 229, também o
afeto é direito do idoso.
1. A família e a constitucionalização do Direito Civil
brasileiro
A família pode ser entendida, hoje, como um núcleo constituído
por pessoas que possuem o mesmo grau de parentesco, ou de afinidade,
pautada, sobretudo, nos laços de afeto, para ensejar, assim, uma convivência coletivizada, partilhando os seus membros, na maioria das vezes,
dos mesmos traços culturais, de religião e costumes.
Nas palavras de JACKELLINE FRAGA PESSANHA5, a família é
uma construção social, formada por regras sociais, jurídicas e culturais,
sendo base para a sociedade e possuindo o amor como elemento de ligação entre as pessoas que a constituem, firmando-se de todo modo nos
laços do afeto.
Sabe-se, porém, que o conceito do que é família sempre foi um
dos maiores desafios das Ciências Humanas. Além do forçoso reconhecimento de que a evolução social trouxe as mudanças necessárias para que
uma nova concepção sobre este tema fosse desencadeada, principalmente frente à principiologia que rege a Constituição da República de 1988.
Como preleciona ARNOLD WALD:
A família era, simultaneamente, uma unidade econômica, religiosa,
política e jurisdicional em que havia um patrimônio pertencente à
família por completo, embora administrado unicamente pelo pater.6
5 PESSANHA, Jackelline Fraga. A afetividade como princípio fundamental para a estruturação
familiar. Disponível em:<http://www.mp.mg.gov.br/ >. Acesso em: 20 de Abril de 2013.
6 WALD, Arnold. O novo Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2004, p.57.
282
11 • RESPONSABILIDADE AFETIVA DOS FILHOS
Resta-nos evidente que a ideia de família que se tinha, antes da
consagração dos valores fundamentais que dizem respeito à igualdade e
a dignidade das pessoas, estava norteada por papéis econômicos e procracionais que a instituição possibilitava, sendo o genitor quem proporcionava o sustento dos membros da entidade familiar. E a mulher, que
permanecia no lar, comumente era submissa às vontades daquele que
detinha o poder, isto é, o pater familias, que também detinha o jugo
sobre os filhos.
O Direito de Família, todavia, encontra-se em processo constante
de reconstrução, fortemente influenciado por fatores como a “despatrimonialização”, o reconhecimento dos valores éticos e, sobretudo, a valorização do vínculo afetivo nas relações pessoais.
A família brasileira, que teve sua origem pautada em regras severas, derivadas do antigo modelo romano, foi sendo progressivamente
revigorada. A Carta Magna de 1988, como se sabe, assegurou proteção
intensa e merecida às entidades familiares, reconhecendo a multiplicidade de modalidades de constituição de família na sociedade hodierna.7
Na contemporaneidade, não há sentido à existência de uma família baseada unicamente em alicerces que não corroborem com o valor
afetivo, posto que o elo que faz surgir e perdurar o convívio na entidade
familiar é aquele amparado na afinidade, que une pessoas de uma maneira intensa, subjetiva e profunda, independentemente do “vínculo de
sangue” existente entre elas.
Segundo RODRIGO DA CUNHA PEREIRA, “o ambiente familiar hodierno é tido como um centro de realização das pessoas”8, passando
o valor da afetividade a ser consagrado como elemento suporte para a
construção das famílias modernas. Ou seja, os sentimentos de amor, solidariedade e cumplicidade devem ser a causa do surgimento da família e
não uma mera consequência da convivência gerada em razão do tempo.
Tal remodelação da ideia de família foi ganhando força no cenário brasileiro somente a partir da Constituição de 1988, posto que
esta Magna Carta permitiu, por meio do seu texto, a depreensão do
7 Texto de referência: LOBO, Paulo. Entidades Familiares Constitucionalizadas para Além do
NumerusClausus. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/94089407-1-PB.pdf.
8 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípio da afetividade. Disponível em: <http://www.mp.mg.
gov.br/portal/public/interno/arquivo/id/31424>. Acesso em: 20 de Abril de 2013.
283
Dimitre Braga Soares de Carvalho - Jéssica Alessandra Barbosa Dantas - ZurisadaiLidna Silva Guedes
princípio da afetividade como fonte de interpretação do conceito de família, concedendo novo sentido e alcance aos dispositivos normativos
e, consequentemente, consagrando a solidez dos arranjos familiares da
modernidade.
Com a constitucionalização do Direito de Família, sobretudo
com a elevação do afeto à categoria de princípio que embasa as relações familiares, a letra fria da norma jurídica já não é interpretada sem
um olhar constitucional, ocasionando então o reconhecimento, pelo ordenamento jurídico, da contínua possibilidade de composição de inovadores arranjos familiares, que jamais seriam reconhecidos sem esse
“olhar” constitucional às normas.
As famílias monoparentais, as uniões entre pessoas do mesmo
sexo e as indenizações baseadas no desamparo afetivo podem ser utilizados como exemplos que resultam da leitura constitucional do Direito
de Família, no âmbito da constitucionalização do Direito Civil.
Desta feita, então, a família não terá um fim em si mesmo, mas
será baseada tão somente nos laços afetivos construídos entre as pessoas, como dialoga MARIANA BRASIL NOGUEIRA, entendendo que
a família é “lugar privilegiado, o ninho afetivo, onde a pessoa nasce incerta e no qual modelará e desenvolverá a sua personalidade, na busca da
felicidade, verdadeiro desiderato da pessoa humana”.
Posto isso, passaremos doravante, por meio de uma visão constitucionalizada das famílias, a falar sobre a importância da afetividade dentro do âmbito familiar, sobretudo quanto às implicações de sua
omissão no que diz respeito ao idoso.
2. A afetividade como direito e as implicações da sua
omissão
Princípio corolário da dignidade da pessoa humana, a afetividade
encontra-se presente de modo implícito na Constituição Federal, sendo
resguardada justamente por se constituir como o elemento imprescindível à existência e convivência da família. A afetividade se traduz nos
laços de amor e solidariedade que permeiam o ambiente de realizações
pessoais dos sujeitos integrantes de cada espaço de convívio.
A Constituição da República de 1988 preleciona, em seu artigo
226, que: “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.
284
11 • RESPONSABILIDADE AFETIVA DOS FILHOS
Sendo assim, percebemos que o Estado confere um importante amparo
à família, e desse modo, também ao afeto.
Destarte, a afetividade passa a ter um valor na seara jurídica, adquirindo valor jurídico necessário a ser considerado pelo ordenamento
pátrio, daí a sua elevação à categoria de princípio assegurado constitucionalmente. Ademais, até em conformidade com a própria teoria tridimensional do direito9, é cediço que a ordem jurídica opte pela proteção
dos valores que se fazem mais relevantes e presentes na sociedade, já que
fato, valor e norma deverão estar ordenados reciprocamente.
Fazendo jus, desta maneira, à afetividade enquanto princípio, o
STJ ratifica esta ideia no sentido de se posicionar pelo reconhecimento
da paternidade baseada no vínculo socioafetivo entre pais e filhos, pois
para aquela Corte Superior, “o vínculo biológico não revela a falsidade da
declaração de vontade no ato do reconhecimento, já que a relação sócio-afetiva não pode ser desconhecida pelo Direito”.10
Em contrapartida, este mesmo princípio, ao passo que confere
direitos aos indivíduos, com guarida na ordem constitucional, também
gera obrigações nas hipóteses em que é violado. Nesse diapasão, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO11 afirma que, mais gravosa é a
violação a um princípio consagrado pelo ordenamento jurídico, do que
até mesmo o desrespeito a uma norma positivada, posto que quando se
desconsidera um princípio, todo o ordenamento em comando passa a
ser ultrajado.
As implicações da omissão do afeto, neste sentido, além de serem
inúmeras, configuram “abandono” em relação a qualquer pessoa, mormente quando se trata de grupos mais vulneráveis, como é o caso das
crianças e dos idosos.
O enfrentamento do “abandono afetivo” de crianças, em idade de
formação psicológica e de caráter, importa na preservação da integralidade física e subjetiva para o exercício futuro da cidadania.
Nesse contexto, a jurisprudência dos Tribunais brasileiros atua no
sentido de resguardar o direito ao afeto, conferindo indenização a título
9 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva. 2010.
10 O Acórdão do Recurso Especial citado está disponível em: http://www.stj.gov.br/portal_stj/
publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=84986>. Acesso em: 29 de abril de 2013.
11 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 24 ed. São Paulo:
Malheiros Editores. 2007. Cap. II.
285
Dimitre Braga Soares de Carvalho - Jéssica Alessandra Barbosa Dantas - ZurisadaiLidna Silva Guedes
de dano moral quando existe o abandono afetivo nas relações entre pais
e filhos. Todavia, cabe lembrar que o Superior Tribunal de Justiça tem o
seu posicionamento no sentido de que o dano moral sofrido pela pessoa
que “supostamente” foi abandonada deverá ser provado e não presumido, pois em se tratando de ato ilícito, a responsabilidade civil restará
configurada e indenizável nos casos em que o dano ficar provado. Ademais, como expõe o próprio STJ:
[...] o dever de afeto, com efeito, não pode ser imposto, porquanto o
sentimento, o amor, a consideração, o carinho são sensações intrínsecas
ao ser humano, não podendo ser uma pessoa compelida a tanto
(9199720772009826 SP 9199720-77.2009.8.26.0000, Relator: Teixeira
Leite, Data de Julgamento: 16/02/2012, 4ª Câmara de Direito Privado,
Data de Publicação: 24/02/2012).
O afeto, deste modo, não pode ser exigível, mas passível de indenização quando resta provado a existência de prejuízo à formação dos
filhos, pela ausência afetiva do seu genitor.
Ainda no tocante à relação pais e filhos, a indagação que se apresenta aos operadores do Direito é a seguinte: a eventual indenização – a
título de danos morais, no sentido dos pais cobrarem dos filhos o afeto
devido à sua vivência após se tornarem idosos – também estaria resguardada pelo ordenamento jurídico brasileiro? Embora esta discussão
de indenização por danos morais dos pais em face dos seus filhos não
tome as mesmas proporções existentes, quando se fala no sentido contrário, torna-se importante esclarecer sobre a temática da garantia do
afeto, em face dos idosos, na órbita jurídica.
3. O direito do idoso à afetividade
A análise dos artigos 229 e 230 da Constituição Federal permite
inferir que o idoso tem garantido, expressamente, a proteção de seus
direitos subjetivos e suas relações afetivas. Assim dispõe o texto constitucional:
Art. 229 - Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores,
e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice,
carência ou enfermidade.
286
11 • RESPONSABILIDADE AFETIVA DOS FILHOS
Art. 230 - A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar
as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade,
defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.
§ 1º - Os programas de amparo aos idosos serão executados
preferencialmente em seus lares. [...]
Por meio do Estatuto do Idoso, ainda teremos que:
Art. 10 – É obrigação do Estado e da sociedade assegurar à pessoa idosa
a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de
direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição
e nas leis.
Resta induvidoso, deste modo, que o ordenamento jurídico pátrio tem ensejado ao idoso amplo amparo à sua vivência através da
Constituição Federal, bem como por meio de leis ordinárias vigentes.
O afeto, desta feita, por fazer parte dos princípios que norteiam o nosso ordenamento jurídico, é um ponto crucial que deve ser respeitado e
efetivado quando tratamos de possibilitar um convívio familiar e social
mais digno à pessoa idosa.
Todavia, não obstante tais garantias, a realidade do tratamento
conferido ao idoso em sociedade de modo geral, demonstra a vulnerabilidade desse grupo social. São muitos os idosos que passam por maustratos, que já não participam do convívio familiar e que não têm exercido o direito à prioridade, conforme previsto em lei.12
A jurisprudência brasileira tem enfrentado, não raro, casos de
ação de alimentos manejada por pais idosos em face de seus filhos, gerando a responsabilidade destes de fornecer, pelo menos, o mínimo de
amparo material aos pais que se encontram dependentes e necessitados.
É o caso da seguinte decisão:
AÇÃO DE ALIMENTOS - PESSOA IDOSA - NECESSIDADE
COMPROVADA - CAPACIDADE DOS FILHOS EM PRESTAR O
ENCARGO - CONDENAÇÃO MANTIDA. - Os filhos também têm o
dever de prestar alimentos civis aos pais idosos que deles necessitem
para viver de forma digna e de modo compatível com a sua condição
12 Muitas vezes o idoso é oprimido e desvalorizado, justamente por retratar a imagem de quem
muito já viveu. Ao invés de ser enxergado como uma fonte de sabedoria e perseverança em viver, é
visto, pelo contrário, como um ser débil, que já não possui força, “merecendo” ser marginalizado,
já que os seus valores apenas se faziam presentes num passado já muito distante.
287
Dimitre Braga Soares de Carvalho - Jéssica Alessandra Barbosa Dantas - ZurisadaiLidna Silva Guedes
social, em decorrência dos princípios constitucionais da solidariedade
e da dignidade da pessoa humana, do caput do artigo 3º do Estatuto do
Idoso e dos artigos 1.694, 1.695 e 1.696, todos do Código Civil. Portanto,
havendo comprovação da necessidade do idoso em receber alimentos e
a capacidade financeira dos filhos em prestá-los, a condenação é medida
que se impõe. (TJ-MG 103630501873520011 MG 1.0363.05.0187352/001(1), Relator: EDUARDO ANDRADE, Data de Julgamento:
17/03/2009, Data de Publicação: 04/05/2009).
É possível, portanto, expandir o mesmo raciocínio para a hipótese de abandono afetivo. É plenamente sabido que se os idosos, em face
de seus filhos, podem pleitear indenização a título material, com base
nos direitos que a própria CF/88 e as leis ordinárias lhes resguardam.
É consabido que as necessidades material e afetiva andam juntas,
e os seus respectivos suprimentos fazem parte da noção de “dignidade
plena” do indivíduo. Observe-se, no entanto, que existem aspectos diferenciados entre o plano material e o afetivo. Aquele idoso que pleiteia
indenização material, obviamente possui necessidades básicas a serem
supridas, tais como: alimentação, saúde, lazer, higiene, moradia, entre
outros. Como resposta a este pleito da pessoa idosa, ser-lhe-á oferecido
ou negado, conforme o caso, este auxílio material, objeto do seu pleito.
Note-se que não há referência à necessidade de afeto até aqui, mas tão
somente a estas condições mínimas que foram pedidas.
Já quando o idoso pleiteia a indenização pelo abandono afetivo,
ocasionado pelos seus filhos, em contrapartida, pode restar presumido
que o mínimo material já está conquistado e por isso ele pugna por um
direito que, sobremaneira, vai mais além daquilo que o mínimo existencial tem para oferecer.
Percebe-se, então, que quem concede o afeto, por consequência,
também deveria proporcionar as condições que o idoso necessita para
prover as suas carências materiais, afinal o afeto está amplamente ligado
à dignidade da pessoa humana. Para que o idoso tenha a sua dignidade respeitada, faz-se necessário que se destine a ele o afeto, o qual, nas
lições de CAVALIERI FILHO, se liga à dignidade da seguinte maneira:
“[...] temos hoje o chamado direito subjetivo constitucional à dignidade.
E dignidade nada mais é do que a base de todos os valores morais, a
síntese de todos os direitos do homem. O direito à honra, à imagem,
ao nome, à intimidade, à privacidade, ou qualquer outro direito
288
11 • RESPONSABILIDADE AFETIVA DOS FILHOS
da personalidade, todos estão englobados no direito à dignidade,
verdadeiro fun
damento e essência de cada preceito constitucional
relativo aos direitos fundamentais.”13
Embora a temática do abandono afetivo do idoso não seja verificada com a mesma intensidade com a qual o é o caso contrário, é
indubitável o fato de que o idoso possui o direito a uma reparação civil,
a título de dano moral, em desfavor dos filhos que porventura vierem a
desampará-lo.
Frise-se que a indenização, objeto do pedido do idoso em face dos
filhos, possivelmente não fará com que pais e filhos recuperem os laços
familiares que se esvaíram no tempo, ou a depender das circunstâncias,
até mesmo deem início à construção de um vínculo de afeto entre si.
Atente-se, desta maneira, que o afeto não demonstrado se torna
afeto perdido. E o que se pleiteia no Judiciário, obviamente, não é o afeto
no sentido da devolução deste sentimento desvanecido, e sim a indenização pelo prejuízo causado em razão da carência afetiva na vida do pai
ou mãe idosos que foram desamparados.
4. Da implementação do Projeto de Lei nº 4.294/08 e
suas garantias
Diante do que foi exposto, é interessante mencionar que está em
trâmite o Projeto de Lei n º 4.294/08, que tem por objetivo acrescentar
ao nosso Código Civil de 2002, assim como ao Estatuto do Idoso14, normas que estabelecem a garantia de que os pais idosos que, porventura,
não forem amparados afetivamente pelos seus filhos na velhice terão o
direito de pleitear indenização, no tocante ao eventual dano moral que
lhes couber, em face da conduta dos filhos.
De acordo com a própria justificativa trazida no projeto de lei,
temos que:
13 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 2. ed. rev., aum. e atual. São
Paulo: Malheiros, 1998.
14 De autoria do Deputado Carlos Bezerra - PMDB/MT,acrescenta parágrafo ao art. 1.632 da Lei
nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil e ao art. 3° da Lei nº 10.741, de 1ª de outubro
de 2003 - Estatuto do Idoso, de modo a estabelecer a indenização por dano moral em razão do
abandono afetivo.
289
Dimitre Braga Soares de Carvalho - Jéssica Alessandra Barbosa Dantas - ZurisadaiLidna Silva Guedes
No caso dos idosos, o abandono gera um sentimento de tristeza e
solidão, que se reflete basicamente em deficiências funcionais e no
agravamento de uma situação de isolamento social mais comum nessa
fase da vida. A falta de intimidade compartilhada e a pobreza de afetos e
de comunicação tendem a mudar estímulos de interação social do idoso
e de seu interesse com a própria vida. Por sua vez, se é evidente que não
se pode obrigar filhos e pais a se amar, deve-se ao menos permitir ao
prejudicado o recebimento de indenização pelo dano causado.
Reforce-se que, na jurisprudência pátria, é ínfima a quantidade
de julgados sobre indenizações a título de danos morais dos pais em
face dos filhos que os desamparam na velhice, de modo que se torna
muito importante que o ordenamento jurídico trate mais claramente
deste tema. Finalmente, este PL supramencionado trará como garantias
ao idoso a efetivação de direitos já previstos na ordem jurídica, concretizando, então, a possibilidade de reparação civil em desfavor dos filhos,
quando se tratar de abandono afetivo por parte dos mesmos.
6. Conclusões
Com o processo de constitucionalização do Direito Civil e, consequentemente, o enfoque que tanto o princípio da afetividade quanto
o da dignidade da pessoa humana têm recebido, vislumbrou-se a diminuição da força do patrimonialismo e do individualismo, predominantes anteriormente. O direito à indenização por abandono afetivo, então,
apresentou-se como garantia resguardada aos cidadãos que possuem a
sua dignidade ferida em razão de quaisquer prejuízos de ordem moral e
afetiva ensejados pela omissão daqueles que possuem o dever, na forma
lei, de ampará-los e deles cuidar.
O idoso, por se encontrar num grupo de pessoas que são consideradas vulneráveis e, portanto, mais carecedoras do cuidado do ordenamento jurídico (assim como da sociedade em geral), possui, sem
embaraços de qualquer natureza, o direito de responsabilizar civilmente
os seus filhos quando estes os fazem sofrer o abandono afetivo. Isso se
dá pelo fato de entendermos que o vazio acarretado pela falta do afeto
somente contribui para que se agrave a vulnerabilidade natural do idoso, de forma que este passa a se sentir rejeitado e sozinho com o passar
do tempo.
290
11 • RESPONSABILIDADE AFETIVA DOS FILHOS
Embora sejam poucos os julgados dos tribunais brasileiros no
sentido de tornar alvo de debate esta temática (de forma que ela alcance
a mesma intensidade daquela que propõe a indenização por abandono
afetivo dos filhos em relação aos seus pais), há de se deixar claro a necessidade de reconhecimento de que o idoso também pode ser vítima
do abandono de afeto.
Deste modo, é preciso que sejam efetivadas medidas impostas
pela Constituição da República, pelo Estatuto do Idoso e pelas demais
leis ordinárias que tratam da matéria, para que sejam asseguradas aos
idosos as garantias fundamentais impostas pelo Direito.
Faz-se cediço, ainda, a efetivação do Projeto de Lei nº 4.294/2008,
a fim de concretizar, por meio da positivação no ordenamento jurídico,
a indenização, já anteriormente mencionada, a que se sujeitam os filhos
em favor dos pais idosos quando do abandono destes.
Afinal, é necessário encontrar nos idosos a fonte de vida e sabedoria que a sociedade moderna (provavelmente por meio da sua “liquidez”15), gradualmente, deixou de vislumbrar. A verdadeira capacidade de
desafiar este estágio da vida começa pelo reconhecimento irrestrito de sua
dignidade, das suas vicissitudes e do seu complexo universo subjetivo.
7. Referências Bibliográficas
BRASIL. Constituição Federal (1988). 16. ed. São Paulo: Rideel. 2013.
CARVALHO, Dimitre Braga Soares de. STJ muda o entendimento sobre
abandono afetivo e, em belo voto, a Min. Nancy Andrigui reconhece a
obrigação do “cuidado”. Disponível em: http://dimitresoares.blogspot.
com.br/2012/05/stj-muda-o-entendimento-sobre-abandono.html.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 2.
ed. rev., aum. e atual. São Paulo: Malheiros, 1998.
LANÇA, Hugo. A Constitucionalização do Direito de Família.
2011. Disponível em: <http://www.verbojuridico.com/doutrina/2011/
hugolanca_constitucionalizacaodtofamilia.pdf>. Acesso em: 21 de abril de
2013.
15 Em referência ao pensamento de Zigmunt Bauman.
291
Dimitre Braga Soares de Carvalho - Jéssica Alessandra Barbosa Dantas - ZurisadaiLidna Silva Guedes
LOBO, Paulo. Entidades familiares constitucionalizadas para além
do numerus clausus. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/
sites/default/files/anexos/9408-9407-1-PB.pdf.
MARCO, Charlotte Nagelde; MARCO, Cristhian Magnus de. O dano
moral por abandono afetivo do idoso: Proteção a direitos fundamentais
civis. 2012. Disponível em:<http://editora.unoesc.edu.br/index.php/
simposiointernacionaldedireito/article/view/1489>. Acesso em: 31 de
maio de 2013.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo.
24 ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2007.
NOGUEIRA, Mariana Brasil. A família: conceito e evolução histórica e
sua importância. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/
default/files/anexos/18496-18497-1-PB.pdf>. Acesso em: 21 de Abril de
2013.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípio da afetividade. Disponível
em:<http://www.mp.mg.gov.br/portal/public/interno/arquivo/
id/31424>. Acesso em: 20 de Abril de 2013.
PESSANHA, Jackelline Fraga. A afetividade como princípio
fundamental para a estruturação familiar. Disponível em:<http://
www.mp.mg.gov.br/>. Acesso em: 20 de Abril de 2013.
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27 ed. São Paulo:
Saraiva. 2010.
ROSA, Catarina Mariano; AMARAL, Sérgio Tibiriçá. O afeto no
Direito de Família. Disponível em: <http://intertemas.unitoledo.br/
revista/index.php/ETIC/article/viewFile/1667/1594>. Acesso em: 20 de
abril de 2013.
SÃO PAULO (SP). Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Apelação cível nº 9199720772009826 SP 9199720-77.2009.8.26.0000.
Apelante: Marciel Canuto do Nascimento. Apelado: Manoel Antônio do
Nascimento. Relator: Teixeira Leite. São Paulo, 16 de fevereiro de 2012.
Jurisprudência do TJ/SP.
WALD, Arnold. O novo Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2004.
292
12
NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO
ESTÁVEL COMO ATO JURÍDICO EM
SENTIDO ESTRITO
Olavo Nóbrega de Sousa Netto1
- Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa 2
- Juliana Fernandes Moreira3
Sumário: Introdução - 2. Aspectos gerais do noivado e
da união estável - 3. Regras pertinentes à definição de fato
social e ato jurídico em sentido estrito - 3.1. Diretrizes legais
e doutrinárias acerca dos fatos jurídicos - 3.2. Ato jurídico
em sentido estrito e elementos caracterizadores - 4. Natureza
jurídica do noivado e da união estável e efeitos decorrentes de
tais vínculos - 4.1. O noivado como fato social - 4.2. A união
estável inserida no universo dos atos jurídicos em sentido estrito
- 4.3. Efeitos jurídicos decorrentes do noivado e da união estável
- 5. Considerações finais - Referências
1 Advogado. Especialista em Direito Trabalhista.
2 Professora Assistente do Departamento de Ciências Jurídicas da UFPB.
3 Professora Assistente do Departamento de Gestão Pública da UFPB.
293
Olavo Nóbrega de Sousa Netto - Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Juliana Fernandes Moreira
Introdução
Do interregno dos enlaces com pano de fundo negocial ao noivado e à união estável nos moldes em que se apresentam hodiernamente,
percebe-se que os enlaces matrimoniais até o século XIX sempre tiveram
como pano de fundo um fim econômico, em que casamentos arranjados
com parentes e amigos com o fito de enrobustecer o patrimônio familiar
ou preservar a nobreza do sangue de determinada família consistiam na
principal forma de união matrimonial da época.
Essa visão econômica dada ao casamento também era amparada
pelos dogmas religiosos da época, na qual, na visão da Igreja Católica,
pré-século XIX, a indissolubilidade do casamento era usada para argumentar que a escolha do cônjuge jamais deveria amparar-se nos sentimentos, tendo em vista que a sexualidade se avizinhava ao pecado,
sendo permitida apenas com o fim de gerar descendentes.
A realização pessoal só veio no século XIX, com a associação de
amor e liberdade como coisas desejáveis. A partir daí, os casamentos
arranjados por interesses econômicos ou familiares cederam passo à
ideia de amor romântico que, por sua vez, ensejou raptos de noivas que
relutavam em casar com os escolhidos por seus familiares em preferência aos escolhidos do coração. Esse suporte histórico do século XIX demonstra-nos as bases de formação da união estável, tal qual se apresenta
no meio social e jurídico hodierno, e nos possibilita vislumbrar o quão
vetusta é a figura do noivado.
Desta feita, na perspectiva do direito brasileiro moderno, o noivado consiste na promessa de um futuro matrimônio que duas pessoas
fazem, tendo como vigência o lapso temporal existente entre a promessa
de um futuro matrimônio e o momento que antecede a declaração feita
pelos noivos de tornarem-se cônjuges no momento de realização da cerimônia de casamento perante a autoridade. No entanto, o noivado não
se demonstra, na legislação pátria, como uma conditio sine qua non que
antecede o matrimônio, afigurando-se como um ato volitivo dos futuros
cônjuges com o fito de justificarem perante a sociedade a convivência
estreita, contínua e íntima estabelecida entre os mesmos.
Diversamente do noivado, a união estável apresenta-se como a
união livre de impedimentos entre duas pessoas que, por sua vez, optaram por não convolar núpcias. Com a entrada em vigor da Constituição
294
12 • NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO ESTÁVEL COMO ATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO
Federal de 1988, a união estável perde o status de sociedade de fato e
passa a ser reconhecida como entidade familiar e objeto de proteção do
Estado, devendo sua conversão em matrimônio ser facilitada pela lei.
Portanto, pode-se afirmar que a entidade familiar que fora mencionada alhures, apresenta-se perante a sociedade como uma convivência contínua e duradoura de duas pessoas, sem vínculo matrimonial,
com o intuito de constituir família e livre de impedimento legal que
inviabilize a conversão em casamento. Desta forma, a união estável
apresenta-se como um pré-casamento, em que os companheiros terão
a possibilidade de se conhecerem melhor, no que tange às qualidades e
defeitos do outro, antes de convertê-la em matrimônio.
Diante do exposto, o presente trabalho visa a responder a seguinte indagação: onde incluir, a título de classificação, o noivado e a união
estável dentre as grandes categorias jurídicas? Seria possível incluir a
união estável, a título de classificação, nos atos jurídicos em sentido estrito e o noivado dentre os fatos sociais?
O trabalho, ora apresentado, será de fundamental importância
para compreender a natureza jurídica dos dois institutos e, por conseguinte, viabilizar uma maior discussão acerca do tema, possibilitando o
entendimento dos argumentos que conduzem ao vislumbre do noivado
como um fato social e da união estável com um ato jurídico em sentido
estrito.
2. Aspectos gerais do noivado e da união estável
O instituto dos esponsais, ou noivado, encontra suas bases no Direito Romano e no Direito Canônico , via de regra, o casamento haveria
de ser precedido por uma promessa recíproca entre duas pessoas de sexos distintos, realizada de forma verbal, solene e feita pelos esponsos ou
por seus pais. No entanto, mesmo nessa época, tal instituto não gozava
do poder de executar forçosamente o prometido ao ponto de coagir os
noivos a casarem-se, caso tal promessa não fosse cumprida. Porém, há
de convir que já naquela época a ruptura unilateral e injustificada do
noivado gerava dor psíquica ao noivo inocente e abandonado4.
4 Do dano moral no rompimento de noivado. Disponível em: www.meritoadv.com.br. Acesso em
22 de nov. de 2010.
295
Olavo Nóbrega de Sousa Netto - Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Juliana Fernandes Moreira
Essa dor psíquica causada no noivo abandonado levou o Direito
Romano a prever as arras esponsalícias como um modo de reparação
pelo dano moral ocasionado por um dos noivos ao outro em decorrência da ruptura injustificada dos esponsais. As arras esponsalícias nada
mais seriam do que uma indenização devida ao noivo inocente decorrente da ruptura do noivado, onde o causador da ruptura poderia as
perder ou até mesmo pagá-las em triplo ou quádruplo, a depender do
caso, nas situações de arrependimento injustificado5.
Ainda com relação aos esponsais no Direito Romano, as notícias
históricas revelam que as consequências do mesmo se aproximavam,
em muitos aspectos, às do casamento, pois o noivado criava entre um
noivo e os parentes do outro quase que um parentesco por afinidade,
nos moldes apresentados hodiernamente por ocasião da celebração do
casamento, tendo em vista que ensejavam impedimentos para que um
dos noivos convolasse núpcias com os parentes do outro, proibia também que um dos noivos testemunhasse contra o outro e que em caso de
infidelidade da noiva a traição seria equiparada a adultério6.
Os esponsais também se encontravam disciplinados no Direito
Canônico, mas assim como o Direito Romano, o mesmo não obrigava
os noivos, uma vez feita tal promessa, a casarem-se. Contudo, o mesmo
Corpus Juris Canonici previa que aquele que procedesse ao rompimento
injustificado do noivado obrigar-se-ia a reparar os danos morais causados
ao outro, tendo em vista que tal rompimento era repudiado pela Igreja
Católica sendo tido como uma afronta aos dogmas católicos da época7.
Logo, no período anterior à promulgação do Código Civil de
1916, àquele noivo que descumprisse o ajuste feito ser-lhe-ia aplicada
uma indenização a ser paga em favor do noivo inocente, a título de danos morais. Sendo assim, os noivos não seriam coagidos a cumprir a
promessa que fora feita, mas a indenizar o outro em caso de injustificado rompimento.
LAFAYETTE RODRIGUES PEREIRA, citado por MARIA HELENA DINIZ, faz as seguintes considerações acerca da Lei 06 de outu-
5 Ibidem, 2010.
6 Ibidem, item 4, 2010.
7 Ibidem, 2010
296
12 • NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO ESTÁVEL COMO ATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO
bro de 1784, que determinava a aplicação das regras contidas no Direito
Canônico a respeito dos esponsais:
1) o contrato esponsalício deve ser reduzido à escritura pública, lavrada
pelo tabelião do lugar; 2) a escritura pública deve ser assinada pelos
contraentes, por seus pais e, na falta destes, pelos tutores ou curadores,
e por 2 testemunhas ao menos; 3) todavia, residindo o tabelião a mais
de 2 léguas do lugar da habitação dos contraentes, pode o contrato
fazer-se por escritura particular, assinando, além das pessoas referidas,
4 testemunhas. O escrito particular, não sendo reduzido à escritura
pública dentro de um mês, deixa de valer8.
Segundo o entendimento, observa-se que no antigo ordenamento
jurídico o noivado apresentava-se como um instituto de cunho eminentemente contratual, cujo inadimplemento resultaria em perdas e danos.
Com a promulgação da Lei n. 3.071 de 01 de janeiro de 1916, do Código
Civil de 1916, os esponsais deixam de ser disciplinados nos diplomas
legais de forma expressa. No entanto, as doutrinas jus civilistas ainda
consagram o instituto, resguardando o direito da parte prejudicada pelo
rompimento do noivado socorrer-se ao Poder Judiciário pleiteando
perdas e danos. Apesar do Código Civil de 1916 não prever de forma
expressa os esponsais, o mesmo reconhecia, de forma indireta, a sua
existência quando da elaboração da redação do artigo 1.548 do mesmo
diploma legal, senão vejamos:
Art. 1.548. “A mulher agravada em sua honra tem direito a exigir do
ofensor, se este não puder ou não quiser reparar o mal pelo casamento,
um dote correspondente à sua própria condição e estado:
I - se, virgem e menor, for deflorada;
II - se, mulher honesta, for violentada, ou aterrada por ameaças;
III - se for seduzida com promessas de casamento;
IV - se for raptada.”9 (grifo nosso).
Desta feita, segundo este comando normativo, que não encontra
mais aplicabilidade na seara jurídica hodierna, à mulher seduzida com
falsas promessas de casamento lhe será assegurada uma indenização, caso
o ofensor não possa ou não queira reparar o agravo pelo matrimônio.
8 PEREIRA, 1956, p. 29 apud DINIZ, 2008, p.46.
9 BRASIL, 1916.
297
Olavo Nóbrega de Sousa Netto - Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Juliana Fernandes Moreira
Na esteira do Código Civil de 1916, o novo Código Civil também
não regulamentou a promessa de casamento nem trouxe em seu corpo
legal regras específicas que disciplinem o noivado, o que nos faz concluir
que tal instituto estará sujeito à regra geral da responsabilidade civil.
No que tange à união estável, com base na sua evolução histórica,
desde o século XVIII até os tempos hodiernos, observa-se que houve
uma evolução na sua aceitação pela sociedade, tendo a mesma se difundido em todas as classes econômicas e regiões do país, ao ponto de
em 1988 ser alçada à categoria de entidade familiar pela Constituição
Federal. Essa conquista foi decorrente da multiplicação das uniões de
fato e de um olhar mais receptivo da sociedade para com elas. Vejamos,
a esse respeito, o texto constitucional.
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(...)
§3.o Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável
entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar
sua conversão em casamento.10
PEDRO LENZA, ao tratar da matéria, deixa transparecer a satisfação com que recebe o texto constitucional consagrador da união estável como uma forma de família alçada à categoria de entidade familiar.
No entanto, não deixa de expressar a sua irresignação pelo tratamento
diferenciado entre companheiros e cônjuges. Vejamos:
O conceito de família foi ampliado pelo texto de 1.988, visto que, para
efeito de proteção pelo Estado, foi reconhecida como entidade familiar
também a união estável entre o homem e a mulher, devendo a lei
facilitar sua conversão em casamento.
Embora fique clara a preferência do constituinte pelo casamento entre
homem e mulher (uma vez que estabelece que a lei deverá facilitar a
conversão da união estável em casamento), destacamos a importância
deste novo preceito constitucional (união estável), ampliando o conceito
de entidade familiar.11
10 BRASIL, 1988
11 LENZA, 2009, p. 859
298
12 • NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO ESTÁVEL COMO ATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO
Corroborando o que fora dito anteriormente, MARIA BERENICE
DIAS também tece, com bastante propriedade, algumas considerações
a respeito da aceitabilidade, por parte da sociedade, das uniões de fato.
Com a evolução dos costumes, as uniões extramatrimoniais acabaram
merecendo a aceitação da sociedade, levando a Constituição a dar nova
dimensão à concepção de família e introduzir um termo generalizante:
entidade familiar. Alargou a concepção de família, passando a proteger
relacionamentos outros além dos constituídos pelo casamento [...].12
Dentro desta mesma perspectiva, vale esclarecer que a Constituição Federal (CF) de 1988, quando fez referência a algumas entidades familiares, dentre elas a união estável, não criou escalonamentos entre as
mesmas, nem tão pouco estabeleceu classes familiares. Com efeito, MARIA BERENICE DIAS pontua que: “[...] O fato de mencionar primeiro o
casamento, depois a união estável e, por último, a família monoparental
não significa qualquer preferência nem revela escala de prioridade entre
eles”13. Sendo assim, o texto constitucional não fez outra coisa senão
equiparar as entidades familiares e lhes conferir uma especial proteção
do Estado.
3. Regras pertinentes à definição de fato social e ato
jurídico em sentido estrito
Antes de adentrarmos nas especificidades deste marco teórico,
norteado pelas ideias sociológicas acerca de fato social sob a teoria de
ÉMILE DURKHEIM, faz-se necessário ressaltar o objeto de estudo da
Sociologia no tocante a estes fatos supracitados. Não compete à Sociologia estudar, enquanto fato social, todo e qualquer acontecimento humano que esteja despojado das características que o constituem, pois nem
todo comportamento humano poderá ser denominado de fato social.
No entanto, esta mesma disciplina preocupa-se sim, com o estudo dos
fatos sociais que, nas palavras de Durkheim, citadas por SEBASTIÃO
VILA NOVA, “[...] consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir
12 DIAS, 2009, p. 159
13 DIAS, 2009, p.160.
299
Olavo Nóbrega de Sousa Netto - Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Juliana Fernandes Moreira
exteriores ao indivíduo, dotados de um poder de coerção em virtude do
qual se lhe impõem”.14
Da referência feita anteriormente, podemos extrair os elementos
caracterizadores dos fatos sociais na doutrina do método sociológico,
sendo os mesmos: a exterioridade (dotada de um poder coercitivo) e a
generalidade. A exterioridade consiste em um poder imperativo exercido sobre um indivíduo que o faz comportar-se, quer queira ou não, segundo os ditames impostos pela coerção exterior vinda do meio social,
levando este mesmo indivíduo a cumprir seu papel na sociedade e, ao
mesmo tempo, amoldar-se a esta. Essa imposição social, consubstanciada em uma pressão exterior, pode fazer-se sentir ou não. Tal coerção
pode incidir em um indivíduo na forma de preceitos morais, em que o
ser humano fica vinculado a agir e portar-se segundo os costumes e a
própria preceitabilidade moral. É o temor subjetivo, que se manifesta
no íntimo do indivíduo, que o faz comportar-se segundo os ditames impostos pela sociedade, seja por temer a reprimenda social ou o remorso
na sua própria consciência.
Para fins de maior clareza e auxílio no entendimento da matéria aqui versada, faz-se necessário discorrer e pontuar alguns aspectos
acerca da moral, tendo em vista sua relação intrínseca com os fatos tidos como sociais. A moral, enquanto norma de adesão e fator regente
do comportamento humano é sempre um dado histórico, logo, mutável
pelo decorrer do tempo e vinculada a atos humanos, uma vez que a
mesma manifesta-se como condutas advindas dos costumes (culturais
ou históricos) aceitas pela sociedade como certo e normal, levando os
indivíduos a aderirem a elas. Do exposto, pode-se observar que a moral,
por ser mutável em uma dada sociedade, sempre obedecerá a limites
temporais e territoriais.
Ressalta-se o fator temporal pelo fato de ser a moral um dado
histórico que, com o decorrer do tempo, envelhece, caduca, podendo
passar do campo da imoralidade para o da moralidade, ou vice versa,
com o transcurso de tempo. No que tange ao limite territorial da moral,
evidencia-se que um comportamento humano pode, no mesmo momento histórico, ser moralmente aceito por uma sociedade e não ser
14 NOVA, 1981, p.45
300
12 • NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO ESTÁVEL COMO ATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO
por outra. Assim sendo, pode-se chegar ao ponto de se afirmar que a
moral é plural e subjetiva.
ÉMILE DURKHEIM, ao tratar do tema, tenta explicar a moralidade a partir do exame da incidência ou não de uma marca exterior
que, por sua vez, traduz-se numa censura da opinião pública. Vejamos:
[...] Para decidir se um preceito é moral ou não, devemos examinar se
apresenta ou não a marca exterior da moralidade; ela consiste numa
sanção repressiva difusa, quer dizer, numa censura da opinião pública
que vinga todas as violações do preceito. Sempre que estamos em
presença de um fato que apresenta estas características não temos o
direito de lhe negar a qualificação de moral porque ela prova que o fato
é da mesma natureza dos outros fatos morais [...].15
Observa-se que o sociólogo citado, quando explica a reprimenda
que um indivíduo sofre em face da sociedade quando adota posturas
tidas como amorais, fez menção apenas às de cunho público ou exterior. No entanto, doutrinadores hodiernos como TERCIO SAMPAIO
FERRAZ JÚNIOR trazem à baila outra forma de reprimenda, a autorrepressão.
[...] a moralidade dos atos repousa na própria subjetividade de quem age,
enquanto o direito exige instâncias objetivas. Em conseqüência (sic), a
imoralidade do ato exige arrependimento do agente, ou seja, o tribunal
da moral é a própria consciência [...] Embora não se possa negar que o
remorso é um importante e decisivo componente da moralidade, não
resta dúvida de que o ato imoral vem freqüentemente (sic) seguido de
reprovação social [...].16
Corroborando com o que fora exposto, no que tange à percepção
ou não da coerção exterior, vale transcrever um trecho da doutrina de
NOVA.
[...] O poder de coerção dos fatos sociais não é necessariamente
percebido como tal pelos indivíduos, a saber, como uma pressão externa
sobre o seu comportamento, já que os fatos sociais, sendo coletivos, só
atuam quando assimilados pelos indivíduos como modos de convívio,
idéias (sic) e sentimentos tidos como indiscutivelmente normais, como
15 DURKHEIM, 2008, p.62
16 FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 357
301
Olavo Nóbrega de Sousa Netto - Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Juliana Fernandes Moreira
se fossem algo que pertencesse à ordem inevitável das coisas. Quando
me comunico, na minha sociedade, através de determinado idioma
ou quando, à refeição, uso talheres, não me ocorre que eu esteja sendo
pressionado por alguma força externa. E, no entanto, quer eu tenha
ou não consciência da coerção que atua sobre mim, levando-me a
me comportar de determinada forma, essa coerção externa é uma
realidade17.
Assim sendo, quando o indivíduo está perfeitamente amoldado
ou integrado a certos comportamentos, vendo-os como normais, será
certo que o mesmo não sentirá a coerção exterior que tenta fazer com
que o mesmo se integre. No entanto, quando o indivíduo resiste a estas
manifestações impostas ou tende a violá-las, de certo será capaz de perceber a força coercitiva imposta pelo exterior. Um exemplo esclarecedor
nos é dado por DURKHEIM, vejamos:
[...] Observe o modo que são educadas as crianças. Quando reparamos
nos fatos tais como são, e como sempre foram, salta aos olhos que
toda a educação consiste num esforço contínuo para impor à criança
maneiras de ver, de sentir e de agir às quais ela não teria chagado
espontaneamente. Desde os primeiros tempos da sua vida que a
obrigamos a comer, a dormir, a beber nas horas certas. Obrigamo-la à
limpeza, à calma, à obediência. Mais tarde, obrigamo-la a ter em conta
os outros, a respeitar os usos, as conveniências, a trabalhar, etc., etc.
Se, com o tempo, essa coerção deixa de ser sentida, é porque, pouco
a pouco, engendrou hábitos e tendências internas que a tornam inútil,
mas que só a substituem porque derivam dela [...]18.
A generalidade dos fatos sociais, por sua vez, exprime a ideia de
que os fatos ditos como sociais possuem uma existência própria e são
difundidos em uma sociedade ao mesmo tempo em que independem
de aparições individuais. ÉMILE DURKHEIM instrui que a generalidade dos fatos sociais também é resultado dos costumes, dos modos, das
práticas, das crenças passadas já feitas “[...] pelas gerações anteriores;
recebemo-las e adotamo-las porque, sendo ao mesmo tempo uma obra
17 NOVA, 1981, p.46
18 DURKHEIM, 2008, p.35
302
12 • NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO ESTÁVEL COMO ATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO
coletiva e uma obra secular, estão investidas de uma particular autoridade que a educação nos ensinou a reconhecer e respeitar [...]”.19
Desta feita, mesmo que estas práticas ou costumes não sejam
impostos por meio da lei, não deixam de ter um dos atributos dos fatos sociais, a generalidade “[...] resultante da vida comum, um produto
das ações e das reações entre as consciências individuais; e se ressoa em
cada uma delas, é em virtude da energia especial que deve justamente à
sua gênese coletiva”20. Logo, para DURKHEIM:
Fato social é toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer
sobre o indivíduo uma coerção exterior: ou então, que é geral no âmbito
de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria,
independentemente das suas manifestações individuais.21
Desta definição, pode-se denotar que esse sociólogo nos traz, em
poucas linhas, tudo o que fora exposto anteriormente acerca da exterioridade (consubstanciada em uma coerção do meio social) e da generalidade, todas enquanto características do fato social compreendidas em
uma única acepção.
3.1. Diretrizes legais e doutrinárias acerca dos fatos
jurídicos
Saindo do plano dos fatos sociais e desaguando na seara dos fatos
jurídicos, passaremos a analisar a localização e o disciplinamento desse
tema no Código Civil vigente. O disciplinamento dos fatos jurídicos no
Código Civil de 2002 encontra-se esculpido na Parte Geral, Livro III,
sendo rubricada pela expressão “Dos Fatos Jurídicos”. Não obstante a
isso, o mesmo diploma legal não se preocupa em disciplinar os fatos
jurídicos nos artigos que se seguem à abertura do Livro III da Parte
Geral, deixando tal incumbência para a doutrina pátria e alienígena.
Assim sendo, observa-se que o CC de 2002, ao tratar da matéria, deixa
lacunoso o espaço codificado destinado aos “Fatos Jurídicos” para abrir
“Título I” reservado aos Negócios Jurídicos que, por sua vez, integra a
classificação daqueles.
19 Ibid., p.37
20 Ibid., p.37
21 Ibid., p.40
303
Olavo Nóbrega de Sousa Netto - Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Juliana Fernandes Moreira
Feitas tais pontuações, pode-se inferir que o Código Civil declinou da competência para definir e classificar os mesmos, dando azo
para que a doutrina assim procedesse definindo-os e classificando-os
como cresse de direito o jus civilista que, porventura, venha a estudar a
matéria.
Assim sendo, faz-se necessário esboçarmos o conceito do que
vem a ser um fato jurídico. Os fatos jurídicos tanto podem vir a ser
acontecimentos naturais, como condutas humanas previstas em normas
legais que, por consequência, lhes outorgarão efeitos jurídicos. Neste
mesmo diapasão, MARIA HELENA DINIZ, citando o magistério de
CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, afirma que existem “[..] dois fatores constitutivos do fato jurídico: um fato, isto é, qualquer eventualidade
que atue sobre o direito subjetivo, e uma declaração da norma jurídica,
que confere efeitos jurídicos àquele fato [..]”22.
Porém, antes de adentrarmos na classificação dos fatos jurídicos,
poder-se-ia inquirir quando um fato social deixa de sê-lo social para ingressar no plano dos fatos jurídicos. É nesse ponto que surge o brilhante
magistério de MARCOS BERNARDES DE MELLO, no qual assevera
que os fatos passam por uma espécie de valoração antes de adentrarem
no mundo abstrato das leis. Tanto é assim que, um determinado fato humano ao adquirir importância ou relevância no plano jurídico passará
a sofrer a incidência da norma juridicizante para, assim, discipliná-lo
e, ao mesmo tempo, fazê-lo ingressar no mundo jurídico ou plano da
existência23.
Ainda no tocante ao entendimento do que vem a ser um fato jurídico, SÍLVIO DE SALVO VENOSA nos oferece um exemplo bastante
esclarecedor, no qual, se fazendo um paralelo com o exposto alhures,
ficará de fácil compreensão o momento em que um fato humano ou
natural adquire relevância jurídica e, ato contínuo, ingressa no mundo
abstrato das leis.
[...] são fatos jurídicos a chuva, o vento, o terremoto, a morte, bem como
a usucapião,a construção de um imóvel, a pintura de uma tela. Tanto
uns como outros apresentam, com maior ou menor profundidade,
consequências jurídicas. Assim, a chuva, o vento, o terremoto, os
22 Id, 2009, p. 387
23 MELLO, 1988.
304
12 • NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO ESTÁVEL COMO ATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO
chamados fatos naturais, podem receber a conceituação de fatos jurídicos
se apresentarem consequências jurídicas, como a perda da propriedade,
por sua destruição, por exemplo. Assim também ocorre com os fatos
relacionados com o homem, mas independentes de sua vontade, como
a nascimento, a morte, o decurso do tempo, os acidentes ocorridos
em razão do trabalho. De todos esse fatos decorrem importantíssimas
consequencias jurídicas. O nascimento com vida, por exemplo, fixa o
início da personalidade entre nós [...].24
Desta feita, pode-se perceber que não são todos os acontecimentos humanos ou naturais que devem ser denominados de fatos jurídicos, mas apenas os que são fruto de relações entre os indivíduos ou que
interferem na órbita intersubjetiva destes. Daí decorrerá a necessidade
do Direito regê-los, atribuindo-lhes efeitos e, ao mesmo tempo, regulando-os para que os discipline no âmbito da convivência social. Assim, no
momento em que esses acontecimentos humanos ou naturais adquirem
importância na seara jurídica, ao ponto de serem regulados por normas
que lhe conferirão efeitos, deixam de ser puro e simplesmente fatos para
serem fatos jurídicos. O processo de ingresso dos acontecimentos humanos e naturais no mundo abstrato das leis é denominado pela doutrina jus civilista de juridicização. Nesta perspectiva, assevera LOURIVAL
VILANOVA:
O direito é um processo dinâmico de juridicização e desjuridicização de fatos, consoante as valorações que o sistema imponha, ou
recolha, como dado social (as valorações efetivas da comunidade que o
legislador acolhe e as objetiva como normas impositivas).25
Como o Código Civil vigente não se preocupou em discriminar
sua própria classificação dos fatos jurídicos coube à doutrina tal incumbência. No entanto, dada a importância da matéria e o grande número
de estudiosos do direito dispostos a se debruçarem sobre o conteúdo em
explanação, ocorreu que cada tratadista esboçou sua própria classificação, resultando em uma confusão classificatória.
Assim, para efeitos meramente didáticos, optamos pela classificação esboçada pela Corrente Doutrinária Francesa que concebe a divisão
dos fatos jurídicos em sentido lato, em fatos jurídicos em sentido estrito
24 VENOSA, 2009, p. 321
25 VILANOVA, 1995, p. 90
305
Olavo Nóbrega de Sousa Netto - Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Juliana Fernandes Moreira
e atos jurídicos. MARCOS BERNARDES DE MELLO nos traz os precedentes históricos desta classificação, que tem suas raízes no século XVI.
Assim vejamos:
[...] os fatos jurídicos (lato sensu) eram classificados em fatos jurídicos e
atos jurídicos, uma divisão que tem suas origens no século XVI, quando
começou a ser usada a expressão ato jurídico, desconhecida até aquela
época. Os romanos, cujos ensinamentos jurídicos sempre dominaram
o pensamento ocidental, não conheceram,como já nos referimos,
uma teoria do fato jurídico. Nas fontes romanas encontramos várias
expressões que correspondem à idéia (sic) de fato jurídico, tais como
causa, negotlum, gestum. Nenhuma, porém, que se assemelhe a fato
jurídico ou ato jurídico26.
Para definir fatos jurídicos, todas as considerações citadas serão
válidas. Assim, fatos jurídicos são todos os acontecimentos naturais, ou
condutas humanas, previstos em normas jurídicas que irão lhes conferir
efeitos, efeitos estes, jurídicos.
Nesta esteira, observa-se que os fatos jurídicos em sentido lato
subdividem-se em fatos jurídicos em sentido estrito e atos jurídicos.
Parafraseando SÍLVIO DE SALVO VENOSA, pode-se afirmar que o
primeiro é entendido como todo “[...] acontecimento natural, que independe de ato volitivo humano, passível de acarretar efeitos jurídicos.
É o caso do nascimento e dos terremotos, que podem ocasionar a perda
da propriedade”27. Ainda com relação aos fatos jurídicos em sentido estrito, vale transcrever a conceituação dada aos mesmos por MARCOS
BERNARDES DE MELLO, vejamos:
Todo fato jurídico em que, na composição do seu suporte fáctico (sic),
entram a penas fatos da natureza, independentes de ato humano como
dado essencial, denomina-se fato jurídico stricto sensu. O nascimento,
a morte, o implemento de idade, a confusão, a produção de frutos, a
aluvião, a avulsão, são exemplos de fatos jurídicos stricto sensu28.
Conclui esse mesmo doutrinador que “[...] a interferência do fato
na esfera jurídica de alguém, ampliando-a ou reduzindo-a, constitui o
26 MELLO, 1988, p. 114
27 VENOSA, 2009, p.322
28 MELLO, op.cit.,p. 131
306
12 • NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO ESTÁVEL COMO ATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO
dado suficiente para que o direito passe a regê-lo no plano do comportamento humano”29, prescrevendo como devem portar-se os indivíduos
afetados pelo fato jurídico em sentido estrito. Esses fatos naturais não
podem ficar sem regulamentação, fora do mundo jurídico, sob pena de
inviabilizar uma convivência social harmônica.
Já os atos jurídicos, que segundo Venosa, também podem ser denominados atos humanos ou atos jurígenos, são “[..] aqueles eventos
emanados de uma vontade, quer tenham intenção precípua de ocasionar efeitos jurídicos, quer não”30, observando-se que os mesmos traduzem-se por condutas humanas. Compreendem tanto os atos jurídicos
lícitos como os ilícitos.
Os atos jurídicos ilícitos são objeto de estudo das doutrinas jus
civilistas que versam sobre a responsabilidade civil. No Código Civil
de 2002, a matéria encontra amparo nos artigos 186, 187 e 188. Ainda
no tocante aos atos jurídicos ilícitos, marcados pela existência de uma
sanção, vale destacar um trecho da doutrina de DINIZ, aclarando que
o mesmo:
[...] produz efeitos previstos em norma jurídica, como sanção, porque
viola mandamento normativo [...]. Como se vê, o ato ilícito não origina
direito subjetivo a quem o pratica, mas sim deveres que variam de
conformidade com o prejuízo causado a outrem.31
Já os atos jurídicos lícitos, segundo Venosa, “[...] são os praticados
pelo homem sem intenção direta de ocasionar efeitos jurídicos”32. A disciplina legal dos mesmos encontra-se inserta no artigo 185 do Código
Civil de 2002, em que este assim prescreve: “Art. 185. Aos atos jurídicos
lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as
disposições do Título anterior”33.
Do comando normativo retro pode-se inferir, juntamente com o
magistério de SÍLVIO DE SALVO VENOSA, que “[...] o atual estatuto
consolidou a compreensão doutrinária a manda que se aplique ao ato
29 Idid, p. 132
30 VENOSA, 2009, p. 322
31 Ibid, p. 389
32 Ibid, p. 322
33 BRASIL, 2002
307
Olavo Nóbrega de Sousa Netto - Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Juliana Fernandes Moreira
jurídico meramente lícito, no que for aplicável, a disciplina dos negócios
jurídicos”34.
Ainda no que concerne aos atos jurídicos lícitos, é de fundamental importância evidenciar que os mesmos subdividem-se em atos jurídicos em sentido estrito e negócios jurídicos. No que tange aos negócios
jurídicos, é de bom alvitre esclarecer ao leitor que este trabalho monográfico não tem como objetivo estudá-los exaustivamente, mas sim o
suficiente para distingui-lo dos atos jurídicos em sentido estrito que,
por sua vez, será trabalhado em momento específico. Desta feita, passemos à compreensão do que vem a ser um negócio jurídico.
Quanto aos negócios jurídicos, o Código Civil de 2002 dedicou um
Título específico para os mesmos, a saber, Título I, inserto no Livro III da
Parte Geral, com grande número de artigos disciplinando a matéria.
Assim sendo, o negócio jurídico é uma espécie de ato jurídico
lícito em que a vontade humana atua tanto na formação do negócio jurídico quanto na determinação de seus efeitos. Por este conceito, observase que o legislador pátrio consagrou, no campo dos negócios jurídicos,
a autonomia privada.
[...] o negócio jurídico funda-se na “autonomia privada”, ou seja, no
poder de auto-regulação dos interesses que contém a enunciação de
um preceito, independentemente do querer interno. Apresenta-se,
então, o negócio jurídico como uma “norma concreta estabelecida pelas
partes”35.
[...] não basta a mera manifestação da vontade para a aquisição de
um direito (...). É necessário que tal efeito, visado pelo interessado,
esteja conforme a norma jurídica; isto é assim porque a própria ordem
jurídico-positiva permite a cada pessoa a prática de negócio jurídico,
provocando seus efeitos. Este é o âmbito da “autonomia privada”, de
forma que os sujeitos de direito podem auto-regular, nos limites legais,
seus interesses particulares36.
A noção de negócio jurídico pode ser perfeitamente entendida
quando trazemos à baila o exemplo dos contratos.
34 VENOSA, 2009, p. 322
35 DINIZ, 2009, p. 449
36 Ibid, p. 449
308
12 • NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO ESTÁVEL COMO ATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO
Assim é que, por exemplo, nos contratos - que são a mais importante
espécie de negócio jurídico – em geral os figurantes podem ter a liberdade
de estruturar o conteúdo de eficácia da relação jurídica resultante,
aumentando ou diminuindo-lhe a intensidade, criando condições e
termos, pactuando estipulações diversas que dão, ao negócio, o sentido
próprio que pretendem37.
MARCOS BERNARDES DE MELLO afirma que nos negócios jurídicos a vontade tem que ser manifestada para compor o suporte fático
de uma categoria jurídica, categoria esta que fica a critério do indivíduo,
com vistas à produção de efeitos jurídicos que podem ser predeterminados pelo ordenamento jurídico, como deixados livremente à escolha
de cada indivíduo38.
Isso é de tal modo, pois, segundo MELLO, a formação do conceito de negócio jurídico foi construída sob a égide do Estado Liberal,
e, em consequência disso, a doutrina passou a vislumbrar nos negócios
jurídicos a autonomia privada39. Vejamos agora com as palavras do próprio autor.
O conceito de negócio jurídico foi, assim, construído sob a inspiração
ideológica do Estado Liberal, cuja característica mais notável consiste
na preservação da liberdade individual, a mais ampla possível, diante do
Estado. Por isso, concebeu-se o negócio jurídico como instrumento de
realização da vontade individual, respaldando uma liberdade contratual
que se queria praticamente sem limites. Em conseqüência (sic) desse
voluntarismo (que revela intenso voluntarismo) - tão exagerado que se
transformou em dogma - a doutrina passou a ver no negócio jurídico
um ato de autonomia da vontade – também dita autonomia privada –
em razão do que:
a) o negócio jurídico seria uma criação da vontade declarada das
pessoas; mais ainda: a declaração da vontade negociai constituiria o
próprio negócio jurídico;
b) os seus efeitos jurídicos seriam uma decorrência da vontade
negocial.40
37 MELLO, 1988, p. 167
38 Ibid, p. 167
39 MELLO, 1988, p. 168
40 Ibid, p. 168
309
Olavo Nóbrega de Sousa Netto - Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Juliana Fernandes Moreira
Feitas tais considerações acerca da classificação dos fatos jurídicos, considerações estas imprescindíveis para a compreensão do que
vem a ser um ato jurídico em sentido estrito, adentremos nas especificidades deste, analisando sua concepção doutrinária, bem como seus
elementos caracterizadores.
3.2. Ato jurídico em sentido estrito e elementos
caracterizadores
Dissemos anteriormente que os atos jurídicos em sentido estrito
são, juntamente com os negócios jurídicos, espécies do gênero ato jurídico lícito, consagrando a tese da teoria dualista. Discorremos também
sobre as noções gerais de negócio jurídico para melhor distingui-lo dos
atos jurídicos em sentido estrito. Então, já adentrando no mérito deste
tópico, pode-se asseverar que, ao contrário dos negócios jurídicos, nos
atos jurídicos em sentido estrito, a presença da autonomia da vontade,
tão marcante nos negócios jurídicos, é ínfima, ou melhor, inexistente.
Isso é assim, visto que nos atos jurídicos em sentido estrito a vontade humana, que pode consistir em uma manifestação, no modo como
o sujeito se comporta, ou em uma declaração, expressão da vontade de
forma escrita ou verbal, atua apenas na formação do ato jurídico, pois
os efeitos são predeterminados na lei. Ainda no que diz respeito a essa
espécie de ato jurídico, STOLZE GAGLIANO e PAMPLONA FILHO
(2013) entendem não haver espaço para a autonomia da vontade acerca
dos efeitos produzidos pelo atos, uma vez que estes já encontram previsão legal.
Assim, nos pronunciares de GONÇALVES, para que se concretize o suporte fático de ato jurídico em sentido estrito, basta simples
manifestação de vontade, seja na forma de declaração de vontade, seja
com uma simples intenção ou comportamento do agente41. A partir daí,
a norma jurídica conferirá seus efeitos, efeitos estes previamente esculpidos no ordenamento jurídico, sendo vedado ao agente atribuir outros
efeitos que não os encravados na norma jurídica antecedente.
Em se tratando de atos jurídicos em sentido estrito, basta a manifestação de vontade de um indivíduo para que os efeitos predetermina41 GONÇALVES, 2006
310
12 • NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO ESTÁVEL COMO ATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO
dos nas normas jurídicas incidam sobre o mesmo e, ato contínuo, passe
a reger o comportamento desse, não abrindo margem à autonomia da
vontade. Da doutrina de CARLOS ROBERTO GONÇALVES, destacamos um importante trecho que diferencia o negócio jurídico dos atos
jurídicos em sentido estrito.
Tanto o negócio jurídico como o ato jurídico em sentido estrito
decorrem de manifestação da vontade. No negócio jurídico, essa
manifestação visa diretamente a alcançar um fim prático permitido
na lei, dentre a multiplicidade de efeitos possíveis. Constitui ele um
instrumento da vontade individual, em que as partes têm a liberdade de
estruturar o conteúdo de eficácia da relação jurídica, aumentando-lhe ou
diminuindo-lhe a intensidade, criando condições e termos, pactuando
estipulações diversas que dão, ao negócio, o sentido próprio que
pretendem. Permite ele, enfim, a escolha da categoria jurídica almejada
e o auto-regramento de condutas. Por essa razão não é necessária uma
vontade qualificada, sem vícios.
No ato jurídico em sentido estrito, no entanto, o efeito da manifestação da vontade está previsto na lei e não pode ser alterado. O
interessado apenas deflagra, com o seu comportamento despojado de
conteúdo negocial, um efeito previamente estabelecido na lei. Não há,
por isso, qualquer dose de escolha da categoria jurídica42.
Dito isso, tomando-se como exemplo o reconhecimento de paternidade, basta uma simples declaração de vontade para que neste suporte fático incida os efeitos previamente estabelecidos no ordenamento
jurídico como, por exemplo, o dever de prestar alimentos, assegurar o
direito à vida e à educação. Assim, aponta MELLO que:
No ato jurídico stricto sensu, como se conclui, a vontade não tem escolha
da categoria jurídica, razão pela qual a sua manifestação apenas produz
efeitos necessários, ou seja, preestabelecidos pelas normas jurídicas
respectivas, e invariáveis43.
Para complementar este raciocínio, vejamos a consideração de
ato jurídico em sentido estrito formulado por esse mesmo autor.
42 GONÇALVES, 2006, p. 303
43 MELLO, 1988, p. 162
311
Olavo Nóbrega de Sousa Netto - Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Juliana Fernandes Moreira
[...] fato jurídico que tem por elemento nuclear do suporte fáctico
(sic) manifestação ou declaração unilateral de vontade cujos efeitos
jurídicos são prefixados pelas normas jurídicas e invariáveis, não
cabendo às pessoas qualquer poder de escolha da categoria jurídica ou
de estruturação do conteúdo das relações jurídicas respectivas44.
Destarte, pode-se observar que o ponto que permite diferenciar
os atos jurídicos em sentido estrito dos negócios jurídicos é o poder
de escolha da categoria jurídica. Enquanto nos negócios jurídicos há
amplitude da autonomia da vontade, permitindo que as pessoas possam
determinar os efeitos dos atos jurídicos lícitos, nos atos jurídicos em
sentido estrito, essa determinação dos efeitos não existe, uma vez que os
mesmos encontram-se predeterminados na lei.
4. Natureza jurídica do noivado e da união estável e
efeitos decorrentes de tais vínculos
Feitas as considerações atinentes aos aspectos gerais tanto do
noivado como da união estável, bem como das regras pertinentes à
definição de fato social e ato jurídico em sentido estrito, atingiremos,
neste capítulo, o ápice de nosso trabalho monográfico, em que iremos
evidenciar a afinidade existente entre o noivado e o fato social do método sociológico de Durkheim, e a união estável e os atos jurídicos em
sentido estrito.
Quando nos referimos à expressão afinidade, empregamo-la para
designar a natureza jurídica tanto de um como de outro instituto jurídico. Grande parte dos doutrinadores pátrios, quando fazem alusão à
natureza jurídica de um ramo do direito, não se preocupam em trazer a
lume o que vem a ser o próprio sentido de natureza jurídica.
Assim sendo, a expressão citada anteriormente é utilizada pela
doutrina para designar uma similitude existente entre um instituto e
uma grande categoria jurídica, podendo aquele ser incluído nesta para
fins de classificação dentro de um orbe jurídico. Ao final deste capítulo
iremos traçar os efeitos jurídicos decorrentes do noivado e do vínculo
de companheirismo.
44 MELLO, 1988, p. 162
312
12 • NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO ESTÁVEL COMO ATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO
4.1. O noivado como fato social
Discorremos anteriormente acerca da definição de noivado (ou
esponsais como preferem designá-lo alguns autores) bem como de seus
precedentes históricos na Lei 06 de outubro de 1.784 e no Código Civil
de 1916, em seu artigo 1.548, inciso III. Tratamos ainda da compreensão
de fato social segundo a teoria de Durkheim, evidenciando seus elementos caracterizadores.
Pois bem, é chegado o momento de demonstrarmos o nexo que
une os dois institutos ao ponto de podermos articular que a natureza
jurídica do noivado é de fato social. As doutrinas jus civilistas que versam sobre a matéria não se preocupam em noticiar a natureza jurídica
do noivado, limitando-se em conceituá-lo e apontar as consequências
jurídicas decorrentes de sua ruptura, elencando julgados dos Tribunais
nesse sentido.
Por certo, observa-se que esta monografia é de fundamental acuidade, uma vez que aborda a natureza jurídica dos esponsais. No entanto,
de quais argumentos podemos valer-nos para convencer os leitores da
veracidade do que se afirma?
É sensato que não podemos identificar a natureza jurídica do
noivado como sendo um fato jurídico. Para ser considerado como tal
o mesmo teria que ser disciplinado pela norma jurídica, ante a sua relevância social, justificando, assim, seu ingresso no mundo jurídico.
O suscitado a pouco pode ser provado ante a ausência de norma
juridicizante incidente sobre o noivado, pois não há em nosso ordenamento jurídico comandos normativos que venham a reger o noivado.
É o que se dessume do trecho da doutrina de Mello, abaixo transcrita.
É preciso, ainda, ter em mente que os fatos, mesmo os que não sejam
repudiados socialmente como prejudiciais, mas, ao contrário, sejam
tidos como importantes, e, assim revistam as características da liceidade,
não serão jurídicos em virtude disso. Se não houver uma norma jurídica
que os juridicize, permanecerão ajurídicos, embora possamos dizer
que são lícitos. Não há fato por natureza jurídico, mas, somente, por
imputação das normas jurídicas45.
45 MELLO, 1988, p. 118.
313
Olavo Nóbrega de Sousa Netto - Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Juliana Fernandes Moreira
Afastada a natureza de fato jurídico do noivado, adentremos na
identificação do mesmo como sendo um fato social. Nas palavras de
Maria Berenice Dias “[...] o noivado é mero compromisso moral e social
e significa que os nubentes têm a intenção de casar” 46. Ora, se o noivado
é “mero compromisso moral e social”, decerto será regido pelas normas
morais impostas pela sociedade.
É aqui onde podemos apontar o primeiro elemento caracterizador dos fatos sociais sob a teoria de Durkheim, que é a exterioridade.
Esse elemento vincula os indivíduos a comportarem-se segundo os alvitres impostos pela sociedade, imposições estas todas de cunho moral
com o fito de “[...] justificar à sociedade a convivência mais contínua e
íntima dos noivos” 47.
Não há comandos normativos que possam impor às pessoas o
estado de noivos para justificar uma convivência continuada e pessoal
daqueles na fase que antecede ao matrimônio. Esta imposição é exterior, vinda da sociedade, que vincula aos indivíduos a amoldarem-se
aos costumes da época. A exterioridade nos leva ao segundo elemento
caracterizador dos fatos sociais, que é a coerção.
A coerção, que também advêm do meio social, leva os indivíduos
a comportarem-se segundo os costumes e os preceitos morais. Nas palavras de Maria Helena Diniz “(...) nada há que obrigue um promitente
a respeitar seu comprometimento matrimonial” 48.
Porém, discordamos deste posicionamento, uma vez que acreditamos, mesmo não havendo dispositivo legal obrigando o promitente
a honrar seu compromisso, que a sociedade faz bem o seu papel exercendo essa coerção sobre os noivos, para que os mesmos comportem-se
segundo os costumes e as condutas moralmente aceitas pela sociedade.
Nos dizeres de Artur Machado Paupério:
[...] a moral é a regra a que é compelido o homem para objetivar o bem,
dentro do respeito de si próprio e dos outros... A moral freqüentemente
(sic) nos obriga ao cumprimento de deveres para com o próximo49.
46 DIAS, 2009, p.120.
47 DINIZ, 2008, p. 46.
48 DINIZ, 2008, p. 46.
49 PAUPÉRIO, 2003, p. 54.
314
12 • NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO ESTÁVEL COMO ATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO
Neste diapasão, esta coerção incide no íntimo das pessoas, fazendo-as comportarem-se segundo a moral e os costumes, como já enfatizamos, seja por temerem a reprimenda social, ou a própria consciência.
O último, mas não menos importante elemento caracterizador
dos fatos sociais é a generalidade. Esta se traduz em uma forma de comportamento difundida no meio social. O noivado apresenta essa característica tendo em vista que não é uma prática isolada de alguns indivíduos, mas sim um comportamento amplamente difundido nas mais
diversas classes sociais.
Mesmo não sendo imposto por meio de lei, o noivado não perde
uma de suas características primordiais, que possibilita-nos identificá-lo com os fatos sociais, qual seja: a generalidade. O noivado é geral por
ato da própria sociedade e não por imposição legal.
Em síntese, podemos afirmar que na constância do noivado podemos identificar todos os elementos caracterizadores dos fatos sociais:
a exterioridade, a coerção e a generalidade. Isso nos leva a asseverar,
com convicção, que a natureza jurídica do noivado não é outra senão a
de fato social.
4.2. A união estável inserida no universo dos atos
jurídicos em sentido estrito
Discorremos a pouco sobre a natureza jurídica do noivado como
sendo fato social. No entanto, o segundo momento deste capítulo é dedicado à análise da natureza jurídica da união estável como sendo de ato
jurídico em sentido estrito.
Em momento oportuno desta monografia laboramos acerca da
definição de união estável, extraída a partir da exposição de seus elementos caracterizadores. Em seguida, evidenciamos o que vem a ser
um ato jurídico em sentido estrito para trazer à baila a união estável
inserida naqueles.
Pois bem, é certo que a união estável fora vista por largo tempo de
uma forma discriminada por parte da sociedade, e essa rejeição refletiu
na própria legislação da época; isso é assim, pois a construção normativa de uma época histórica é fruto das aspirações sociais.
Porém, a união estável não estava fadada a viver na inteira surdina, às margens da sociedade e da própria legislação. Aos poucos a
315
Olavo Nóbrega de Sousa Netto - Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Juliana Fernandes Moreira
mesma passou a se dissipar entre aqueles que buscavam uma relação
mais “aberta”, em que o início e o fim da relação se resumiriam em um
simples passar pela porta da habitação dos companheiros.
Alguns autores, dentre eles Venosa, atribuem como fator para
essa visão estigmatizada da união estável o fato de que em tempos passados o legislador via como única forma de constituição de família o
casamento, amparado em concepções eminentemente religiosas.
[...] Durante muito tempo nosso legislador viu no casamento a única
forma de constituição da família, negando efeitos jurídicos à união
livre, mais ou menos estável, traduzindo essa posição em nosso Código
Civil do século passado. Essa posição dogmática, em um país no qual
largo percentual da população é historicamente formado de uniões
sem casamento, persistiu por tantas décadas em razão de inescondível
posição e influência da Igreja católica. Coube por isso à doutrina, a
partir da metade do século XX, tecer posições em favor dos direitos
dos concubinos, preparando terreno para a jurisprudência e para a
alteração legislativa. Com isso, por longo período, os tribunais passaram
a reconhecer direitos aos concubinos na esfera obrigacional50.
Disseminada a união estável em meio à sociedade, doutrina e jurisprudência não desampararam sua existência e, além de reconhecê-la,
disciplinaram-na. A união estável não passou pelo plano fático despercebida, foi valorada pela doutrina e jurisprudência, dada a sua importância jurídica, o que desaguou no ingresso deste instituto no mundo
jurídico ao ponto de ser mencionado no próprio Texto Constitucional51.
Pode-se afirmar que a Constituição Federal de 1988 conferiu à
união estável, ou concubinato puro, como preferem alguns doutrinadores, o status de entidade familiar objeto de proteção por parte do Estado,
e, além disso,
[...] emprestou juridicidade aos enlaces extramatrimoniais até então
marginalizados pela lei. Assim, o concubinato foi colocado sob regime
de absoluta legalidade. As uniões de fato entre um homem e uma
50 VENOSA, 2009, p. 36.
51 Por certo é que hoje, a união estável assume um papel relevante como entidade familiar na
sociedade brasileira, já que muitas pessoas, principalmente das últimas gerações, têm preferido
essa forma de união em detrimento do casamento (TARTUCE: SIMÃO, 2007, p. 241).
316
12 • NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO ESTÁVEL COMO ATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO
mulher foram reconhecidas como entidade familiar, com o nome de
união estável52.
Assim, dada a sua relevância, a união estável ganha relevo e ingressa no orbe jurídico não só como um fato jurídico, gênero do qual
o ato jurídico em sentido estrito é uma espécie, como pontifica Venosa,
ao dispor que “a união estável é um fato do homem que, gerando efeitos
jurídicos, torna-se um fato jurídico” 53.
Há que se ir além, pois se dermos à união estável a natureza jurídica de fato jurídico estaremos inserindo-a em um conceito que pode
nos levar a equívocos, ao ponto de admiti-la como sendo um acontecimento da natureza sem assim o ser.
A renomada doutrinadora Maria Berenice Dias - que por seu estudo e trabalho doutrinário, em se tratando de “direito das famílias”,
mostra-se, hoje, como a autora que apresenta a obra mais vanguardista
acerca desse tema e a que mais se aproximou da matéria -, em comento
certifica que a união estável nasceu “[...] da convivência, simples fato
jurídico que evolui para a constituição de ato jurídico, em face dos direitos que brotam dessa relação” 54.
Tendo em mente a citação supracitada, temos que ir além até chegarmos ao ponto de assegurarmos que a natureza jurídica da união estável e de ato jurídico em sentido estrito, pois se duas pessoas conviverem
de forma pública, contínua, duradoura e com intuito de constituir família não poderão negar a existência de uma união estável alegando que se
trata, por exemplo, de um simples namoro, uma vez que o suporte fático
caracterizou aquela união como sendo estável. Assim sendo, seus efeitos
ser-lhe-ão aplicados independentemente da vontade dos conviventes.
No entanto, a partir do reconhecimento da união estável como entidade familiar pela Constituição Federal de 1988, e seu disciplinamento
pelo Código Civil de 2002, alastrou-se certo temor entre alguns casais
que conviviam de modo tal a configurar as bases de uma união estável.
Logo, para se furtarem dos efeitos do reconhecimento de uma
união estável, aqueles casais optaram por celebrar um contrato de namoro. Observemos o que Dias pontifica a esse respeito:
52 DIAS, 2009, p. 159.
53 VENOSA, 2009, p. 41.
54 DIAS, op.cit., p. 161.
317
Olavo Nóbrega de Sousa Netto - Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Juliana Fernandes Moreira
Desde a regulamentação da união estável, levianas afirmativas de que
simples namoro ou relacionamento fugaz podem gerar obrigações
de ordem patrimonial difundiram certo pânico. Diante da situação
de insegurança, começou a ser decantada a necessidade de o
casal de namorados firmar contrato para assegurar a ausência de
comprometimento recíproco e a incomunicabilidade do patrimônio
presente e futuro. No entanto, esse tipo de avença, com o intuito de
prevenir responsabilidades, não dispõe de nenhum valor, a não ser o
de monetarizar singela relação afetiva. Distingue-se o namoro da união
estável pelo nível de comprometimento do casal, e é enorme o desafio
dos operadores do direito para estabelecer sua caracterização55.
Todavia, há como se diferenciar no meio social uma união estável
de um simples namoro more uxorio?
A resposta para a indagação poderá ser encontrada quando analisarmos e verificarmos a presença dos elementos constitutivos de uma
união estável em uma relação existente entre dois indivíduos. Tartuce e
Simão trazem a diferenciação entre os dois institutos, vejamos:
[...] A constituição de família é que diferencia cabalmente o namoro
da união estável. Se há um projeto futuro de constituição de família,
estamos diante de namoro. Se há uma família já constituída, com ou
sem filhos, estamos diante da união estável.
No mesmo sentido, o TJRS vem entendendo que o mero namoro longo,
em que não há o objetivo de constituição de família, não constitui
união estável:
“Embargos infringentes. União estável. Caracterização de namoro.
O namoro, embora público, duradouro e continuado, não caracteriza
união estável se nunca objetivaram os litigantes constituir família”
(TJRS, Processo 70008361990, data 13.08.2004, Órgão julgador 4º.
Grupo de Câmaras Cíveis, rel. Juiz José Ataídes Siqueira Trindade,
origem Comarca de Montenegro) 56.
Assim, como bem rebate Maria Helena Diniz, será tido como inválido o contrato de namoro quando o relacionamento dos conviventes
apresentarem os elementos configuradores da união estável, ei-los: con-
55 DIAS, 2009, p. 176.
56 TARTUCE: SIMÃO, 2007, p. 247.
318
12 • NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO ESTÁVEL COMO ATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO
vivência pública, contínua, duradoura e com o objetivo de constituir
família57.
Presentes os elementos referidos alhures em uma relação de convivência, os companheiros não poderão controlar os efeitos jurídicos,
tendo em vista que a união estável tem natureza jurídica de ato jurídico
em sentido estrito.
Prontamente, a vontade dos conviventes irá atuar apenas na formação da união estável, a partir daí não haverá possibilidade de regulamentação privada de efeitos por parte dos companheiros, uma vez que
os efeitos jurídicos desta união estão predeterminados, ou encravados,
na legislação.
4.3. Efeitos jurídicos decorrentes do noivado e da união
estável
Alcançado um dos objetivos desta monografia (identificar a natureza jurídica do noivado como sendo de um fato social e da união
estável como ato jurídico em sentido estrito) passemos a fazer algumas
considerações acerca dos efeitos que dali irá decorrer.
Quanto à união estável, é inequívoca que a mesma gere efeitos
na seara jurídica até pelo fato de possuir natureza jurídica de ato jurídico em sentido estrito. No entanto, no que tange ao noivado, há de se
analisar caso a caso para, ao final, vislumbrar-se a existência de efeitos
jurídicos, principalmente decorrentes da dissolução do mesmo.
Iniciando pelos efeitos do noivado no orbe jurídico, deve-se esclarecer que enquanto o mesmo estiver em sua normal constância, ou
seja, como uma fase que antecede ao matrimônio, sua natureza será apenas de fato social, não havendo interesse jurídico em regular o comportamento dos noivos na constância dos esponsais.
Porém, a partir do momento em que temos: uma promessa de
casamento efetivamente feita pelos noivos, associada a uma estabilidade da relação; um rompimento injustificado; e um dano (devidamente
demonstrado pela parte lesada), o noivado contrairá relevância jurídica
ao ponto de haver ingresso no mundo jurídico, sobretudo no campo
doutrinário e jurisprudencial.
57 DINIZ, 2008.
319
Olavo Nóbrega de Sousa Netto - Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Juliana Fernandes Moreira
Nessa conjuntura, o noivado deixa de ter natureza jurídica de
simples fato social e passa a ser um ato jurídico ilícito, marcado pela
existência de uma sanção, mais precisamente, de reparação do dano sofrido, conforme dicção do artigo 927 do Código Civil de 2002. Nesse
sentido elencamos o entendimento doutrinário:
O fato de nosso legislador não ter disciplinado os esponsais como
instituto autônomo demonstra, conforme assinala a doutrina, que
preferiu deixar a responsabilidade civil pelo rompimento da promessa
sujeita à regra geral do ato ilícito58.
A própria Constituição Federal de 1988, em conjunto com o Código Civil de 2002, viabiliza a reparação pelo dano moral experimentado em seu artigo 5º, inciso V e 186, respectivamente. Contemplando o
que fora exposto, observemos o que dispõe Dias.
[...] quando se dissolve o noivado, com alguma freqüência (sic) é buscada
indenização, não só referente aos gastos feitos com os preparativos do
casamento que se frustrou, mas também por danos morais pelo sonho
acabado59.
Contudo, a quebra de esponsais só é passível de ensejar indenização
por danos morais quando houver grave humilhação e vexame. Angústia
e desencanto pelo fim do relacionamento amoroso não ensejará danos
morais, pelo contrário, só irá configurar mero aborrecimento ou dissabor
a que está sujeito um indivíduo no perpassar de um relacionamento.
No entanto, não é todo e qualquer rompimento de noivado que
acarretará efeitos na órbita da responsabilidade civil, mas só aquele em
que restar patente à promessa de casamento feita pelos noivos - e não
pelos seus pais - o rompimento injustificado e o dano (material e/ou
moral) devidamente demonstrado (s) nos autos do processo60.
Entretanto, alguns tratadistas vêm doutrinando no sentido de
que deferir os pedidos de indenizações por rompimento de esponsais
seria o mesmo que compelir os noivos a casarem-se para se liberarem da
responsabilidade de arcar com o adimplemento de tais danos.
58 GONÇALVES, 2003, p. 62.
59 DIAS, 2009, p. 120.
60 DINIZ, 2008.
320
12 • NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO ESTÁVEL COMO ATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO
A resistência que alguns opõem a pretensões desta natureza se funda
no argumento de que, a se deferir a indenização reclamada, estar-seia constrangendo, indiretamente, o promitente à execução in natura da
promessa feita, por meio do casamento, como opção liberatória daqueles
danos, o que seria contrário aos princípios que regem a instituição
matrimonial61.
Acreditamos que, quando o doutrinador supracitado referiu-se
aos princípios que regem o matrimônio, estava a mencionar o princípio
da liberdade que, no Direito de Família, assegura aos indivíduos:
[...] o direito de constituir uma relação conjugal, uma união estável
hétero ou homossexual. Há a liberdade de extinguir ou dissolver o
casamento e a união estável, bem como o direito de recompor novas
estruturas de convívio62.
Se ao casamento e à união estável é assegurada à liberdade ao
indivíduo de dissolvê-las, decerto que, por analogia, no noivado igual
direito assiste aos nubentes. No entanto, quando do rompimento do
vínculo o nubente arrependido deverá proceder, no ato do rompimento,
de forma discreta, sem humilhação, nem insulto, e com o mínimo de
desumanidade63.
Após as ponderações feitas acerca dos efeitos do noivado na seara
jurídica, analisemos agora os efeitos relacionados à união estável. Parte
dos efeitos decorrentes da união estável encontra-se encravados principalmente no Código Civil, onde o mesmo, em seu artigo 1.724, elenca
alguns dos deveres impostos aos companheiros.
Quanto ao dever de lealdade é de bom alvitre fazermos algumas
pontuações acerca do mesmo, uma vez que este não se confunde com o
dever de fidelidade. Desta forma, está afastada a possibilidade de configuração de adultério na constância da união estável.
Não se atina o motivo de ter o legislador substituído fidelidade por
lealdade. Como na união estável é imposto tão-só o dever de lealdade,
pelo jeito inexiste a obrigação de ser fiel, assim como não há o dever
da vida em comum sob o mesmo teto. Portanto, autorizado a lei a
61 GONÇALVES, 2003, p. 62.
62 DIAS, op.cit., p. 63.
63 BITTENCOURT, 1970.
321
Olavo Nóbrega de Sousa Netto - Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Juliana Fernandes Moreira
possibilidade de definir como entidade familiar a relação em que não há
fidelidade nem coabitação, nada impede o reconhecimento de vínculos
paralelos. Se os companheiros não têm o dever de serem fiéis nem
viverem juntos, a mantença de mais de uma união não desconfigura
nenhuma delas64.
No que tange aos efeitos patrimoniais da união estável, o artigo
1.725 do Código Civil de 2002 aplica a esta relação convivencial, na falta
de disposição expressa em sentido contrário, o regime da comunhão
parcial de bens.
Dessa forma, os bens adquiridos a título oneroso na constância
da união estável serão reputados como adquiridos por ambos os conviventes. Assim, para estes bens haverá a formação de uma espécie de
condomínio, nos moldes dos direitos reais, na qual a prova de esforço
comum, para que o bem integre o patrimônio do outro companheiro,
é desnecessária. Neste mesmo lamiré, segue trecho da doutrina de Tartuce e Simão.
Ainda quanto ao regime de bens da união estável, conforme Enunciado
115 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito
Civil, há presunção de comunhão de aquestos na constância da união
mantida entre os companheiros, sendo desnecessária a prova do esforço
comum para se comunicarem s bens adquiridos a título oneroso durante
esse período. Como se pode perceber esse efeito é decorrente do próprio
regime da comunhão parcial, em que, como vimos, a prova do esforço
comum é desnecessária65.
Maria Berenice Dias também nos esclarece que em caso de um
dos conviventes ostentar o desejo de alienar um bem, adquirido a título
oneroso na constância da união, não poderá fazê-lo antes da anuência
do outro companheiro, vejamos:
Instala-se a co-titularidade patrimonial, ainda que somente um dos
conviventes tenha adquirido o bem. O direito de propriedade resta
fracionado em decorrência do condomínio que exsurge ex vi legis.
Logo, o titular nominal do domínio não pode aliená-lo, pois se trata
de bem comum. É necessária a concordância do companheiro. A
constituição da união estável leva à perda da disponibilidade dos bens
64 DIAS, 2009, p. 169.
65 TARTUCE: SIMÃO, 2007, p. 261.
322
12 • NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO ESTÁVEL COMO ATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO
adquiridos, revelando-se indispensável a expressa manifestação de
ambos os proprietários para o aperfeiçoamento de todo e qualquer ato
de disposição do patrimônio comum66.
A legislação, artigo 1.694 do Código Civil de 2002, também admite a possibilidade de um dos companheiros pleitear do outro o direito a “[...] alimentos de que necessitem para viver de modo compatível
com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua
educação”.
Porém, para que seja deferida tal pretensão, há que se demonstrar
nos autos o binômio: necessidade do alimentando e possibilidade do
alimentante. Já para Dias “[...] o único requisito para a concessão de
pensão em favor do companheiro é a prova da necessidade do pensionamento” 67.
Um outro efeito decorrente da união estável diz respeito ao direito sucessório, aquele que resulta da morte de um dos companheiros,
sendo que o artigo 1.790 do Código Civil de 2002 regulará a participação do companheiro ou companheira na sucessão do outro, no que tange aos bens adquiridos de forma onerosa na constância da união estável.
Do exposto, pode-se concluir que configurados os elementos caracterizadores de uma união estável é inequívoca a incidência da norma
jurídica regulando os efeitos pessoais e patrimoniais previamente consignados na legislação. Sendo isso o que nos faz atribuir à união estável
a natureza jurídica de ato jurídico em sentido estrito.
5. Considerações finais
Com a realização deste trabalho, percebeu-se que no decorrer
dos anos que marcaram o século XVIII, o motivo que dava azo aos casamentos não era outro senão o único fim de agregar riquezas ao patrimônio das famílias envolvidas, resultando em um empecilho à indesejada
dispersão patrimonial.
Também restou patente a existência de noivados curtos adstritos
ao período que ia da promessa de casamento a celebração do mesmo.
No que tange a união estável, evidenciou-se que a mesma encontrou
66 DIAS, 2009, p. 171.
67 Ibid., p. 182.
323
Olavo Nóbrega de Sousa Netto - Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Juliana Fernandes Moreira
suas premissas nas classes menos favorecidas do século XVIII que, por
razões econômicas, sempre postergavam o dia do casamento por questões eminentemente financeiras.
Verificou-se que o Código Civil de 1916 não disciplinou o instituto dos esponsais. No entanto, demonstrou em seu corpo legal que reconhecia a existência do mesmo, apesar de não regê-lo, cabendo à doutrina e jurisprudência da época tal incumbência. Já no que diz respeito ao
Código Civil de 2002, denotou-se que o mesmo nem sequer fez alusão
ao noivado em seus artigos.
Identificou-se os elementos basilares para a configuração conceitual tanto do noivado como da união estável. E, com o advento da Constituição Federal de 1988, ressaltou-se a relevante contribuição daquele
diploma quando alçou à categoria de entidade familiar a união estável,
conferindo-lhe especial proteção do Estado.
Observou-se a compreensão de fato social sob a teoria de Émile
Durkheim, reconhecendo-se um fato social, como tal, aqueles que consagram os três elementos trazidos a lume por aquele sociólogo: exterioridade, coerção e generalidade.
Traçou-se as diretrizes legais dos fatos jurídicos, para se chegar
aos atos jurídicos em sentido estrito, na qual o ato volitivo do indivíduo
atua apenas na escolha da categoria jurídica, uma vez que seus efeitos
encontrar-se-ão esculpidos de forma prévia na lei.
Constatou-se que a doutrina quedou-se inerte em evidenciar a
natureza jurídica tanto do noivado como da união estável, principalmente em relação àquele, enfatizando, quando muito, definições e alguns efeitos.
Discutiu-se que na constância do noivado, por não haver interesse jurídico em regular os efeitos pessoais e patrimoniais dos nubentes,
houve a escusa do legislador em incluí-lo no universo jurídico, ocasionando um empecilho para que o mesmo seja incluído a título de classificação no orbe dos fatos jurídicos.
Diante da omissão doutrinária em incluir a título de classificação
o noivado e a união estável em uma das categorias jurídicas, atribuindo-lhes as respectivas naturezas jurídicas, discutiu-se que no noivado
a única “força reguladora” emana não de outra parte senão da própria
sociedade que impõe aos indivíduos uma forma de comportamento, e
essa força reguladora do noivado é o que podemos chamar de coerção
324
12 • NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO ESTÁVEL COMO ATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO
social, que por sua vez, faz com que os esponsais sejam regidos pelo
fator moral da sociedade.
Também fora declinado neste trabalho que a moral varia de cultura para cultura, obedecendo a limites temporais e territoriais. Temporal pelo fato de que a moral caduca pelo decurso de tempo e territorial
pelo fato de cada povo ter a sua cultura e, consequentemente, uma concepção de que vem a ser moral.
Reitera-se que as normas sociais cogentes que regulam o noivado
variam de lugar para lugar. Percebeu-se que o noivado, apesar de não
ser imposto por lei é difundido no seio social, o que o faz merecedor da
terceira característica dos fatos sociais que é a generalidade.
Com a regulamentação da união estável pela legislação pátria,
muitos dos indivíduos que conviviam de modo a configurar as bases
deste instituto optaram por celebrar um contrato de namoro, contrato
este que sofreu rechaça dos Tribunais Pátrios quando os conviventes
estabeleciam vínculo nos moldes a configurar aquele tipo de união.
Portanto, notou-se que apesar da existência do contrato de namoro, aos contratantes foram impostos todos os efeitos pessoais e patrimoniais decorrentes da união estável.
Configurada a existência de convivência pública, contínua, duradoura, entre duas pessoas e com o objetivo de constituir família, serlhe-ão aplicados todos os efeitos legais declinados nessa monografia. Se
dessa forma estão procedendo os Tribunais brasileiros, é inegável que
para a união estável de natureza jurídica outra não lhe cabe senão a de
ato jurídico em sentido estrito.
Notou-se em relação ao noivado um entendimento esboçado pelos Tribunais que, talvez, o faça desaparecer por completo do mundo
jurídico, qual seja, o indeferimento dos pedidos que versem sobre ressarcimento de danos morais, uma vez que deferir tais pleitos seria uma
afronta ao princípio da liberdade.
Deferir indenizações deste cunho seria coagir, indiretamente, o
promitente a cumprir o avençado para se eximir de lançar a mão em seu
patrimônio e indenizar um indivíduo que, em outra ocasião, haveria de
ser seu cônjuge.
Concluindo, espera-se que este trabalho contribua para que aqueles que possuem afinidade e apreço pela matéria aqui versada, entendam
a relevância de se compreender a natureza jurídica dos institutos postos
325
Olavo Nóbrega de Sousa Netto - Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Juliana Fernandes Moreira
em análise, possibilitando a captação, a partir daí, da razão de existência
jurídica de efeitos legais tanto do noivado como da união estável no
universo jurídico.
Referências
BITTENCOURT, Edgard de Moura. Família. Rio de Janeiro: Alba, 1970.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada
em 5 de outubro de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.
br>. Acesso em 07 de outubro de 2013.
________. Código Civil: promulgado em 11 de janeiro de 2002.
Disponível em:<http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 07 de outubro
de 2013.
________. Lei n. 3.071, de 01 de janeiro de 1916. Institui o Código
Civil. Revogada pela Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível
em: < http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 07 de outubro de 2013.
________. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4277 e Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental 132. Relator Ayres Britto. Brasília, julgamento
em 04 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/
cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteúdo=178931>. Acesso em: 07 de
outubro de 2013.
DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. 2. ed. São Paulo:
Contexto, 2006.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5. ed. rev., atual.
e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de
família. 23. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008.
________. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral do direito
civil. 26.ed. reformulada. São Paulo: Saraiva, 2009.
________. Compêndio de introdução à ciência do direito. 14. ed. São
Paulo: Saraiva, 2001.
326
12 • NOIVADO COMO FATO SOCIAL E UNIÃO ESTÁVEL COMO ATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Tradução de
Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2008. Tradução de Les Règles
de la Méthode Sociologique, 1895.
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito:
técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003..
FREDERICO, Alencar. A responsabilidade civil pelo rompimento
do noivado. Disponível em:<http://www.ambitojuridico.com.br/site/
index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1789>. Acesso
em 07 de outubro de 2013.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: parte geral. 3.
ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.
________. Responsabilidade civil. 8. ed. rev. de acordo com o novo
Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva, 2003.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito de Família.
Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/
buscalegis/article/viewFile/8270/7836>. Acesso em 07 de outubro de
2013.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. 3. ed. São Paulo:
Saraiva, 1988.
NOVA, Sebastião Vila. Introdução à sociologia. São Paulo: Atlas, 1981.
PAUPÉRIO, Artur Machado. Introdução ao estudo do direito. Rio de
Janeiro: Forense, 2003.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 3. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1979.
PORTO, Dino Gonçalves. Do dano moral. Disponível em: <http://
www.meritoadv.com.br/wp-content/uploads/imagens/evolucao-dano.
htm>. Acesso em 07 de outubro de 2013.
________. Do dano moral no rompimento de noivado. Disponível em:
<http://www.meritoadv.com.br/wp-content/uploads/imagens/artigodanomoral.htm>. Acesso em 07 de outubro de 2013.
327
Olavo Nóbrega de Sousa Netto - Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa - Juliana Fernandes Moreira
PRETTO, Cristiano. Notas sobre responsabilidade civil pelo
rompimento dos esponsais. Disponível em: <http://www.
prettoribeirodovale.com.br/publicacoes/1>. Acesso em 07 de outubro
de 2013.
TARTUCE, Flávio e SIMÃO, José Fernando. Direito civil: família. São
Paulo: Método, 2007..
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 9. ed. São
Paulo: Atlas, 2009.
________. Direito civil: parte geral. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. São Paulo:
Saraiva, 1995.
328
13
DA CATIVIDADE MARCÁRIA
COMO NOVO FUNDAMENTO
DA RESPONSABILIDADE CIVIL
EMPRESARIAL
André Luiz Cavalcanti Cabral1
Sumário: Introdução - 1. Da marca - 2. Dos grupos
econômicos - 3. Da catividade marcária - 4. Da responsabilidade
civil com fundamento na catividade marcária - 5. Exemplos
consumeristas da aplicabilidade da catividade marcária - 6.
Conclusões - 7. Referências
Introdução
Estudos e discussões ao longo dos anos acerca da responsabilidade civil não retiram a importância que merece ser dada ao tema da Catividade Marcária. Para muito além do esgotamento, a vida contemporânea desafia novas formas de se enxergar e refletir o abraço do fenômeno
da responsabilização. Afinal, principalmente na seara empresarial, a
1 Mestre em Ciências Jurídicas com linha de pesquisa em Direito Econômico. Doutorando em
Direitos Humanos e Desenvolvimento pela UFPB. Professor de Direito Empresarial e Civil da
UFPB e do UNIPÊ. E-mail: cabral@crc.adv.br
329
André Luiz Cavalcanti Cabral
responsabilidade civil está intimamente relacionada ao desenvolvimento econômico e à higidez dos postulados capitalistas da defesa da concorrência e da proteção da propriedade privada. O risco de qualquer
atividade é fator a ser considerado, desde o plano de negócio até a contabilização dos resultados empresariais obtidos.
Com a evolução das relações empresariais, os agentes econômicos buscam novas formas de expansão de seus mercados. No contexto
da globalização econômica há acirramento da conjuntura concorrencial, pois o capital é apátrida e nômade, desloca-se mais intensamente
na busca da maximização dos resultados da atividade empresarial. A
mundialização dos mercados é um fenômeno de conquistas de massas
consumidoras e torna superlativas as ações do homem, intensificando a
produção, a publicidade, as necessidades e os contratos.
Na conjectura atual (liberal, neoliberal, ou regulatória) o desenvolvimento econômico de um país pressupõe a sistematização de instrumentos de proteção das criações intelectuais e inventivas que são frutos
do discernimento criativo humano. Assim, há a consolidação e a aceitação da ideia de que o efetivo resguardo dos bens intelectuais propicia
valor agregado ao patrimônio empresarial; bem como, assegura sua estabilidade e credibilidade mercadológica. Dentre as diversas espécies de
ativos imateriais ou intangíveis, destaca-se a necessidade de proteção da
marca, tendo em vista sua função de identificação e remissão de origem
dos produtos e/ou serviços perante o mercado consumidor.
O que se propõe, no presente ensaio, é um novo paradigma de
responsabilização a partir da marca registrada; logo, se tratará da marca,
sua catividade e os grupos econômicos. Em seguida, há a tentativa de
demonstrar a utilização da marca como um novo condutor da responsabilidade civil no âmbito das atividades empresariais e sua fundamentação por um fenômeno socioeconômico e jurídico que se denomina de
catividade marcária.
1. Da marca
Como consequência do liberalismo econômico, a propriedade
privada se encontra sedimentada, constitucionalmente, como direito
fundamental – artigo 5º, inciso XXII. No entanto, seu exercício encontra limites na função social da propriedade (artigo 5º, inciso XXIII). O
330
13 • DA CATIVIDADE MARCÁRIA COMO NOVO FUNDAMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL EMPRESARIAL
direito de propriedade pressupõe a faculdade de usar, dispor, gozar da
coisa e reavê-la de quem injustamente a possua ou detenha2, e ainda está
albergado como princípio da ordem econômica – artigo 170, incisos II
e III da Constituição Federal.
Resta superada a concepção liberal que considerava a propriedade como um direito individual absoluto, uma vez que a sua importância
para o bem-estar geral e para a condução econômica está a demonstrar
que o seu exercício há de ser relativizado com vistas a tais finalidades.
No entanto, não se olvida de que a propriedade continua sendo sinônimo de poder.3
A marca4 é todo sinal distintivo que indica a ideia de origem de
um bem, seja um produto ou serviço, cujo uso serve de orientação para
o consumo e como referência à escolha de mercado, além de ter como
funcionalidade a identificação dos bens aos quais é aposta, isto é, diferenciam-se os produtos e serviços que são marcados pelo símbolo escolhido para servir de marca.
As marcas podem ser classificadas segundo critérios diversos,
contudo a principal classificação diz respeito à sua apresentação, podendo ser classificada como: nominativa, quando composta apenas de
algarismos alfabéticos; figurativa, se formada exclusivamente por símbolos ou figuras sem dizeres ou palavras escritas; e mista ao associar
elementos figurativos com nominativos concomitantemente.
No âmbito jurídico, a proteção marcária foi inserida em sede
constitucional a partir da Constituição Federal de 18915; entretanto, no
2 Cf. Artigo 1228 do Código Civil.
3 “Parece uma realidade que o poder econômico — seja representado pela detenção de
propriedades imóveis, de bens de produção, de tecnologia ou valor mobiliário — constitui um dos
pressupostos do poder político.” (TAVARES, 2003, p. 159).
4 [...] a marca é o sinal gráfico, figurativo ou de qualquer natureza, isolado ou combinado
e que se destina à apresentação do produto e/ou do serviço ao mercado. Por isso deve ser
distintiva, especial e inconfundível. Consistindo a marca num sinal qualquer, e empregada essa
palavra genericamente, subentende‑se que marca é tudo, dispensando‑se assim qualquer forma
enumerativa, exemplificativa ou restritiva. Este sinal comumente se apresenta de forma gráfica,
tendo por objeto a letra, sílaba, palavra, conjunto de palavras; o número ou conjunto de números; o
risco, traço, conjunto de riscos ou traços; a sua forma figurativa ou ainda o conjunto das primeiras
com esta última.” (SOARES, 2000, p.16).
5 Art 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
(...) § 27 - A lei assegurará também a propriedade das marcas de fábrica.
331
André Luiz Cavalcanti Cabral
atual ordenamento jurídico brasileiro há proteção constitucional no art.
5º, inc. XXIX. Essa proteção constitucional possui um desdobramento infraconstitucional, sendo disciplinada pela Lei nº 9.279 de 1996 ou
o Código da Propriedade Industrial, um importante diploma legal que
tem por objeto a proteção das criações intelectuais industriais, incluídas, além das marcas, as patentes, as indicações geográficas e os desenhos industriais.
A proteção atribuída no direito interno é lastreada por uma sólida base internacional da matéria com tratados internacionais, como a
Convenção da União de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial
(CUP), incorporada ao direito brasileiro pelo Decreto n.º 75.572/1985,
bem como o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio6.
A titularidade da marca, no caso do Brasil, ocorre com seu registro no INPI – Instituto Nacional de Propriedade Industrial, que atesta a
viabilidade de apropriação dos símbolos e nomes requeridos como marca. São critérios para o registro marcário: a novidade, a veracidade, a
capacidade distintiva e a licitude para a obtenção do registro. O registro
passa a ser o fato gerador do direito de exclusividade por um decênio,
passível de renovações sucessivas.7
Note-se que a essência imagética marcária emerge facilmente
perceptível pelo sentido da visão que é uma fonte informativa para o
raciocínio humano. Assim, o mercado reconhece na marca a matriz informativa que atribui qualidade ao produto ou ao serviço auxiliando na
escolha que o consumidor deve realizar entre todos os bens ofertados,
logo sua natureza jurídica8 é de bem móvel imaterial9.
6 Chamado de TRIPS, do inglês Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights),
integrante do conjunto de Acordos assinados em 1994, no encerramento da Rodada Uruguai do
GATT (General Agreement on Tariffs and Trade), que criou a Organização Mundial do Coméricio
(OMC), recepcionado no Brasil pelo Decreto n. 1.355, de 30 de dezembro de 1994.
7 Lei nº 9.279/96 (LPI) - Art. 133. O registro da marca vigorará pelo prazo de 10 (dez) anos,
contados da data da concessão do registro, prorrogável por períodos iguais e sucessivos.
8 [...] para as empresas as marcas representam uma propriedade legal incrivelmente valiosa que
pode influenciar o comportamento do consumidor, ser comprada e vendida e, ainda, oferecer a
segurança de receitas futuras e estáveis para seu proprietário [...] (KOTLER, 2006, p. 269).
9 Negrão afirma que “Do ponto de vista do estabelecimento e identificando sua natureza
jurídica, a marca pode ser conceituada como um direito de propriedade incorpóreo, integrante
do estabelecimento, que tem como funções distinguir produtos e serviços e, em alguns casos,
identificar sua origem e atestar o atendimento desses quanto a certas normas e especificações
332
13 • DA CATIVIDADE MARCÁRIA COMO NOVO FUNDAMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL EMPRESARIAL
A construção teórica e legal da proteção marcária pode ser entendida em contexto multidisciplinar abrangendo elementos de economia, antropologia, ciências sociais, psicologia, direito e outros, por isso
infere-se dela como fenômeno típico da globalização. Dessa maneira, a
marca recebe o profissionalismo típico do ambiente empresarial, assim
ela é pensada por experts de marketing, com base em perfis psicológicos
dos consumidores de acordo com os targets ou nichos de Mercado10 que
se almeja.
Infere-se disso que, quando se fala em uma marca, raramente está
se falando de um acaso, em razão delas serem bens construídas a partir
de valores preconcebidos e para valorar bens de interesse empresarial;
portanto, percebe-se que ela é a provocadora por excelência de associação com o produto ou serviço ao qual adere. Afinal, as pessoas buscam a
experiência prometida na publicidade, seja ela sucesso, poder, elegância
ou prazer11.
As marcas são faróis mercadológicos fincados na mente dos consumidores por meio da associação de valores, experiências e discursos
que os capturam, desde a infância até o último suspiro. As imagens,
como elementos vitais do processo de cognição humana, são adaptáveis
às necessidades da velocidade e da transitoriedade do corpo social. Dessa forma, elas são idealizadas para servirem de ofertas preconcebidas
aprisionadoras da atenção do consumidor que está preso à teia publicitária, sendo sujeito passivo de um bombardeio imagético12. A globalitécnicas.” (NEGRÃO, 2010, p.167).
10 [...] com frequência tem imagens claramente definidas, ou ‘personalidades’, criadas pela
propaganda do produto, por sua embalagem, pela caracterização visual da marca e por outras
estratégias de marketing. (SOLOMON, 2011, p. 32).
11 Batey argumenta que “Vale repetir que uma marca é criada não só como resultado das atividades
de um marqueteiro (o estímulo, ou input), mas também – e isso é o principal - como resultado da
leitura e da reação do consumidor a essas atividades (o que ele depreende da mensagem). Do ponto
de vista do marqueteiro, a marca é uma promessa, um pacto. Da perspectiva do consumidor, é
uma série de associações, percepções e expectativas que existem em sua cabeça.{...} Com o tempo,
experiências e encontros vão formando um conjunto de associações, influenciado a percepção da
marca e gerando a rede associativa, ou engrama da marca.” (BATEY, 2010, p. 27 e 28)
12 A cultura de hoje é feita de ofertas, não de normas. Como observou Pierre Bourdieu, a cultura
vive de sedução, não de regulamentação; de relações públicas, não de controle policial; da criação
de novas necessidades/desejos/exigências, não de coerção. Esta nossa sociedade é uma sociedade
de consumidores. E, como o resto do mundo visto e pelos consumidores, a cultura também se
transforma num armazém de produtos destinados ao consumo, cada qual concorrendo com os
outros para conquistar a atenção inconstante/errante dos potenciais consumidores. (BAUMAN,
333
André Luiz Cavalcanti Cabral
zação pode ser conceituada como um conjunto de relações sociais com
intensificação das interações transnacionais13; assim, nesse contexto, a
publicidade e as marcas vão sendo lançadas à esfera global.
A supervalorização do fator marcário, de certa forma, é produto
das estratégias nacionais e internacionais de adaptação do sistema capitalista e converge para a ampliação dos beneficiários da exploração de
uma marca, pois surgem estratégias de compartilhamento marcário. A
marca compartilhada por diversos contratos, a exemplo das espécies de
franquia, concessão, representação, acaba por se propagar mais rapidamente, como também, permite-se seu fortalecimento no segmento de
atuação que se publiciza. A necessidade inata de troca entre os grupos
estimula o instituto da marca, como fenômeno integrante da globalização econômica.
Entretanto, há um desafio de compatibilização do interesse de
imersão no fenômeno global, mas de se preservar quanto aos riscos
próprios do universo econômico empresarial, sendo certo que o desenvolvimento das relações comerciais, também, deve resguardar a justiça
social e buscar a solidariedade nas relações. Isso em respeito à Constituição Federal, que no art. 3º, I, pondera que o desenvolvimento pressupõe a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. A valorização
do trabalho, ao lado de outras formas de relativização da livre iniciativa,
como por exemplo, a função social da propriedade, indica a relevância
de valores sociais na condução econômica, o que reflete ainda no matiz
principiológico da ordem econômica.
A igualdade de condições de mercado é pressuposto formal de
condições iniciais de partida sem interferências estatais ou de outras
ordens. No entanto, a concorrência exige dos empresários diversas estratégias de diferenciação para que possam ser percebidos em um mercado, cada vez mais global. Ou seja, embora haja o pleito de um direito
à igualdade, há, de certa maneira, um direito à desigualdade ou de diferenciar-se, sendo este último muito mais resguardado e efetivo, porque dele resulta a construção das relações de poder14. A igualdade não
2010, p. 33-34).
13 Santos entende a globalização como um “[...] conjunto de relações sociais que se traduzem na
intensificação das interações transancionais, sejam elas práticas interestatais, práticas capitalistas
globais ou práticas sociais e culturais transnacionais”. (SANTOS, 2002, p. 85).
14 “Em resumo, o mercado dos bens simbólicos tem as suas leis, que não são as da comunicação
334
13 • DA CATIVIDADE MARCÁRIA COMO NOVO FUNDAMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL EMPRESARIAL
é um princípio de atuação no mercado, já que são os desiguais que se
destacam e conquistam espaços diferenciados. Infere-se, então, ser por
meio da desigualdade que mercados são dominados e que se conquista a
preferência de mais consumidores. Nessa realidade, a marca é um ativo
econômico central dos mais relevantes, o que resultou em um reconhecimento legal da necessidade de sua proteção.
A atração implementada pelos signos distintivos é determinante
para o sucesso das atividades mercadológicas, seja na captação inaugural do consumidor, seja na manutenção de sua fidelidade. A dimensão
do presente estudo perpassa o âmbito empresarial, visto que as estratégias que embasam esse poder atrativo marcário atuam sobre as mais
diversas esferas e passam a ser não apenas um vetor econômico, pois
ganham ares de valor cultural e social15. O signo marcário remete o bem
grafado à suas origens, denunciando os responsáveis pela sua oferta, isto
é, esclarece aos consumidores e concorrentes, que dividem o ambiente
de mercado, qual a procedência daquele bem marcado16.
A marca consiste em um importante fator de influência nas escolhas feitas pelo consumidor, o que valoriza a marca como ativo intangível do capital empresarial, permitindo e incentivando o gasto de
grandes fortunas em campanhas publicitárias que as expõem e atraem o
consumidor. Cria-se um sistema de retroalimentação em que a publicidade, como espécie de comunicação social de massa, fortalece a marca
que ostenta e, por outro lado, a marca fortalece a própria publicidade
que a propaga.17
universal entre sujeitos universais: a tendência para a partilha indefinida das nações que
impressionou todos os observadores compreende-se se se vir que, na lógica propriamente
simbólica da distinção – em que existir não é somente ser diferente mas também ser reconhecido
legitimamente diferente e em que, por outras palavras, a existência real da identidade supõe a
possibilidade real, juridicamente e politicamente garantida, de afirmar oficialmente a diferença –
qualquer unificação, que assimile aquilo que é diferente, encerra o princípio da dominação de uma
identidade sobre a outra, de negação de uma identidade por outra.” (BOURDIEU, 2010, p. 129)
15 Ademais, como aduz NUNES, a lógica da sociedade de consumo é no sentido de que as
necessidades são pretextos para vender aquilo que se produz. Assim, se não há necessidades,
inventam-se e os desejos são produzidos juntamente com os bens. (NUNES, António José Avelãs.
Neoliberalismo e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 58).
16 No reconhecimento de Kotler a “[...] marca é uma oferta de uma fonte conhecida.” (KOTLER,
2006, p. 22).
17 Dominique Quessada exprime o seguinte pensamento: “Por seu trabalho de imposição de ordens
e de vetorização da ordem (de organização da ordem), a publicidade consiste fundamentalmente
na criação e na definição de territórios (os territórios das marcas) aos quais aderem pessoas.” (In:
335
André Luiz Cavalcanti Cabral
2. Dos grupos econômicos
A condição de empresário é própria apenas dos sujeitos de direito personificados. Quanto às possibilidades jurídicas de personificação,
têm-se como empresários pessoas físicas (empresários individuais) e
os que são pessoas jurídicas. Na segunda hipótese, encontram-se tanto
as sociedades empresárias (em sua imensa maioria estruturadas como
LTDA ou S/A), como também as EIRELI18.
Os grupos econômicos são, justamente, resultados das relações
entre empresários, principalmente, entre as sociedades empresárias. Essas relações consistem em negócios jurídicos que possibilitam concentração da exploração da atividade econômica e diminuição dos custos,
mas podem limitar ou prejudicar a livre concorrência e gerar domínio
de mercado.
Entre as relações societárias mais comuns se evidencia as sociedades de simples participação, coligadas ou filiadas, controlada e controladora. A primeira ocorre quando uma sociedade participa como sócia
de outra com menos de 10% (dez por cento) do seu capital com direito
a voto (CC, art. 1.100). Já a segunda, consiste nas situações em que uma
sociedade participa com 10% (dez por cento) ou mais do seu capital em
uma outra sociedade, mas sem controlá-la, ou seja, sem ser isoladamente determinante em sua gestão. Nas coligadas ou filiadas, portanto, as
sociedades mantêm as relações societárias entre si, contudo tidas como
isoladas e sem organização conjunta (LSA, art.243,§1º / CC, art. 1099).
Por sua vez, na terceira forma, a controlada é aquela cujo capital outra sociedade participa com maioria do seu capital, como sócia
majoritária e, dessa forma, com capacidade de controlá-la por meio de
eleição da maioria de seus administradores (LSA, art.243,§2º / CC, art.
1098). Finalmente, a controladora é, exatamente, a sociedade que participa da maioria do capital social de uma outra sociedade (controlada),
com capacidade de controlá-la, isto é, de elegerem a maioria de seus
administradores (LSA, art. 246), assim essas seriam as modalidades
O poder da publicidade na sociedade consumida pelas marcas: como a globalização impõe
produtos, sonhos e ilusões. Tradução de Joana A. D. Melo.São Paulo: Futura, 2003, p. 12).
18 Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada ou EIRELI consiste na nova espécie de
pessoa jurídica de direito privado criada pela Lei Nº 12.441, de 11 de julho de 2011 que a inseriu
no art. 44, VI e no art. 980-A do Código Civil.
336
13 • DA CATIVIDADE MARCÁRIA COMO NOVO FUNDAMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL EMPRESARIAL
mais comuns de grupos econômicos de fato.19 A sociedade controladora e suas controladas podem constituir grupo de sociedades, mediante
convenção pela qual se obriguem a combinar recursos ou esforços para
a realização comuns. Dessa forma, constituem grupos econômicos de
direito20.
Há, ainda, o Consórcio (LSA, art.278) definido como sociedades,
sob o mesmo controle ou não, que unem-se para executar determinado
empreendimento e compartilhar lucros e responsabilidades daí decorrentes e na forma pactuada entre elas21. É importante ressaltar que não
há a personificação do consórcio, a ele não é outorgada personalidade
jurídica por sua formalização.
Essas relações ocorrem por meio de operações societárias que
provocam tanto concentração como a desconcentração de empresas,
sendo todas essas operações regulamentadas pelo Código Civil. Nesse
sentido, tem-se: (i) a transformação (mudança do modelo societário de
uma sociedade, de uma limitada para sociedade anônima, consoante
elucida os arts. 1113/1115); (ii) fusão (união de duas ou mais sociedades
que se extinguem dando lugar à criação de uma nova, que as sucede em
todos os direitos e obrigações, sendo regido pelos arts. 1119/1121); (iii)
Incorporação (operação na qual uma ou mais sociedades são absorvidas
por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações, segundo
arts. 1116/1118); (iv) Cisão (consiste no desdobramento da sociedade
existente em, pelo menos, duas novas sociedades, criadas para suceder a
transmitente extinta, conforme art. 229 da LSA).
Esta pequena revisão das possibilidades de configuração dos grupos econômicos é importante para que se possa visualizar a proposta da
catividade marcária que virá em seguida. Afinal, nas relações societárias
descritas, muitas vezes, muito além de recursos meramente financeiros
19 Para BORBA: “O grupo será considerado de fato ou de direito, segundo tenha ou não tenha
sido objeto de um ato formal de constituição.” (BORBA, 2007, p. 533).
20 Negrão entende o grupo de direito como a holding. “O grupo de direito, também chamado
holding [...] se estabelece mediante convenção pela qual as sociedades se obrigam a combinar
recursos ou esforços para a *realização dos respectivos objetos ou a participar de atividades ou
empreendimentos comuns. [...] A ligação entre elas identifica-se com a expressão “grupo de
sociedades” ou, simplesmente, “grupo”, criando uma nova estrutura administrativa e, ainda, podendo
instituir órgão de deliberação colegiada e cargos de direção geral.” (NEGRÃO, 2010, p. 511).
21 No consórcio, há a definição de suas “[...] obrigações entre as sociedades às condições
previstas no respectivo contrato, respondendo cada uma por suas obrigações, sem presunção de
solidariedade.” (NEGRÃO, 2010, p. 512).
337
André Luiz Cavalcanti Cabral
são compartilhados, outros ativos também são repartidos, entre eles,
dar-se destaque, aqui, a marca.
3. Da catividade marcária
Para definição e entendimento do fenômeno da catividade marcária faz-se necessário compreender a realidade contemporânea da força das marcas. Pode-se denominar o contexto atual de nossa realidade
como a era Times Square22, em homenagem ao local ou ponto turístico
mais visitado no mundo.23
Um importante questionamento acerca desse contexto, já descrito até o momento, é: Qual o motivo de milhões de pessoas, todos os
anos, ficarem postadas na Times Square? A paisagem, que se observa
nela, não é uma rara criação natural fruto de elementos únicos de um
ecossistema, também não é um feito isolado humano, como um grande monumento em homenagem a um grande feito, pessoa ou povo. Na
Times Square, a grande atração consiste apenas nas marcas e suas publicidades. A paisagem mais visitada do mundo consiste em uma série
de prédios com gigantescos telões e painéis luminosos que, de forma
ininterrupta, vinte e quatro horas por dia, anunciam marcas, promoções
por meio de publicidades comerciais.
Na era Times Square, todo lugar é mercado, o discurso é publicitário, o patrimônio mais valioso é intangível24, todos são consumidores,
e o fim é o poder econômico. Só se tem significado o que se associa a um
valor consumível, as pessoas pertencem às tribos sociais que ostentam
seus totens (suas marcas) como senhas essenciais de inserção e permanência em seu seio coletivo. O indivíduo é o que consome, seja vestindo,
bebendo, viajando etc.25
22 A famosa praça de Manhattan, Nova York que consiste numas das áreas mais valorizadas da
cidade. Cf. BBC. Times Square vira zona de pedestres. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/
portuguese/multimedia/2009/05/090525_timesquareebc.shtml>. Acesso: 05 de Abril 2013.
23 Estima-se que quase 40 milhões de turistas estiveram na Times Square em 2010. CF. APPLETON,
Kate; RICO, Beattie; ADRIEN, Glover; LYNDSEY, Matthews; JOSUÉ, Pramis; SHIELDS, Ann.
Abraçar a sabedoria das multidões, adicionando atrações do mundo mais visitados turísticas
à sua lista de balde. Disponível em: <http://www.travelandleisure.com/articles/worlds-mostvisited-tourist-attractions/1>. Acesso: 05 de Abril 2013.
24 A própria marca é contabilmente um ativo intangível.
25 Nesse sentido, QUESSADA afirma que, “As marcas jogam, assim com a ameaça de invisibilidade
[…] A pessoa se cobre de marcas para significar sua existência; ela se cobre de marcas para não
338
13 • DA CATIVIDADE MARCÁRIA COMO NOVO FUNDAMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL EMPRESARIAL
A marca é uma linguagem de mercado e como tal se sujeita as
características gerais da linguagem26. As marcas são símbolos dotados
de conteúdo prévio que não se esgota na fonética ou grafia, porque é
constituído de valores e sentimentos pretéritos apreendidos pelos consumidores por meio da publicidade e das experiências pessoais de consumo, muitas das quais motivadas pela tentativa de vivenciar aquelas
sensações transmitidas pela propaganda27. No desejo de expandir seus
mercados, os empresários delineiam novas relações jurídicas, contratuais ou não, como consequência das estratégias de conquista de novos
espaços. Sendo o contrato um instrumento de formalização de uma ou
mais relações negociais28.
Logo, surgem contratos múltiplos, conexos, cativos, entre outros,
numa denúncia da proliferação de novas formas de se relacionar no
mercado da pós-modernidade. Os contratos cativos consistem numa
série de contratos ou relações contratuais que criam relações jurídicas
complexas de longa duração envolvendo agentes econômicos de uma
cadeia de fornecimento e impondo uma posição de dependência ou
catividade dos consumidores.29 Isso se coaduna com o perfil atual de
indução ao consumo de bens materiais ou não através de exposição à
publicidade agressiva, além de outras estratégias de marketing, que expõem os consumidores a graves riscos na vida em sociedade e produdesaparecer.” (QUESSADA, 2003, p. 134).
26 “Um sistema linguístico é uma série de diferenças de sons combinadas com uma série de
diferenças de idéias; mas essa confrontação de um certo número de signos acústicos com outras
tantas divisões feitas na massa do pensamento engendra um sistema de valores; e é tal sistema
que constitui o vínculo efetivo entre os elementos fônicos e psíquicos no interior de cada signo.
Conquanto o significado e o significante sejam considerados, cada qual à parte, puramente
diferenciais e negativos, sua combinação é um fato positivo; é mesmo a única espécie de fatos que a
língua comporta, pois o próprio da instituição linguística é justamente manter o paralelismo entre
duas ordens de diferenças [...] Na língua, como em todo sistema semiológico, o que distingue um
signo é tudo o que o constitui; a diferença é o que faz a característica, como faz o valor e a unidade.”
(SAUSSURE, 1995, p. 139, 140 e 141).
27 Essa relação é exaltada por SOLOMON, quando afirma que as “ [...] pessoas quase sempre
escolhem um produto porque gostam de sua imagem ou porque acreditam que sua ‘personalidade’,
de alguma maneira, corresponde à delas.” (SOLOMON, 2011, p. 32). Essa “personalidade” do
produto de que fala SOLOMON é percebida por meio da publicidade que exibe os valores eleitos
pelo produtor como elementos característicos do produto ou serviço atrelado à marca.
28 GRAU ressalta o papel dos contratos na “[...] jurisdicização de uma ou mais relações negociais
travadas entre as partes que dele participam e por ele se obrigam”. (GRAU, 2005, p. 15).
29 Cf. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5 ed. rev.
atual. ampl. São Paulo: Rt, 2006, p. 91-92.
339
André Luiz Cavalcanti Cabral
zem grande insegurança quanto ao futuro, portanto são exemplos desses contratos cativos os bancários, fornecimento de água, luz e telefone,
entre outros.30
É avulta de importância e atualidade a questão da conexidade
contratual que, explicado por KONDER31, como mais do que uma pluralidade de contratos, significa a vinculação capaz de produzir efeitos
especiais, no âmbito jurídico e não apenas no econômico, aos contratos
por ele interligados. Há ainda a ideia citada por LORENZETTI 32, sobre
redes contratuais, que destaca a complexidade das múltiplas relações
envolvidas destacando o seu caráter sistêmico, de forma que o efeito em
um dos elementos reflete nos demais. Finalmente, a realidade de compartilhamento marcário por sua força atrativa alinha-se ao pensamento
exposto acerca dos contratos cativos onde citamos MARQUES33.
A catividade marcária é fundamentada no fato de que as escolhas e preferências dos consumidores se pautam na marca, pois nela
se deposita o conceito ou renome como variante de decisão de aquisição. Variante qualitativa, seja pelo atributo de procedência, de antiguidade no mercado, ou mesmo, associativa, que remete às experiências pretéritas de consumo e de satisfação de necessidades similares
anteriormente manifestadas. A catividade marcaria, sob a perspectiva
socioeconômica, é a faculdade das marcas de atrair consumidores e
adquirentes em geral, pela sedução do discurso publicitário criador de
valores e necessidades que se desenvolvem na aprisionadora rede de
ofertas a que todos estão sujeitos.
A marca tornou-se o elemento central da escolha do consumidor.
Contudo, ao se deparar com um acidente de consumo ou mesmo dano,
nem sempre a indicação de procedência da marca é suficiente para a
devida reparação ou compensação ao lesado. Muitas vezes, inclusive,
a marca, como bem móvel negociável que é, passa a ser compartilhada
por outros empresários que se beneficiam todos com a propagação cole-
30 Idem, ibidem.
31 KONDER, Carlos Nelson. Contratos Conexos. Grupos de contratos, redes contratuais e
contratos coligados. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 96.
32 LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos.. Buenos Aires-Santa Fé: RubinzalCulzoni, 1999, p. 41. Tomo 1.
33 MARQUES, op. cit., p. 91-92.
340
13 • DA CATIVIDADE MARCÁRIA COMO NOVO FUNDAMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL EMPRESARIAL
tiva do símbolo marcário que fortalece a sua catividade34 em relação ao
mercado de consumo. Alguns compartilhamentos marcários surgem,
justamente, das relações de grupos econômicos vistos acima, porém,
identificam-se várias hipóteses contratuais em que a marca é repassada
ao uso ou benefício de outrem.
Nessas relações plurais e complexas, a marca serve como uma espécie de uniforme identificador das equipes partícipes do jogo concorrencial. Entretanto, há nítida dificuldade de se identificar os contornos
dessas relações e suas consequências no direito econômico e do desenvolvimento. Para isso é necessário um aprofundamento do tema, e é o
que se fará no tópico seguinte.
4. Da responsabilidade civil com fundamento na
catividade marcária
Devido à sua importância para a estabilidade das relações comerciais e fixação das empresas no mercado com o domínio de sua clientela,
desenvolveu-se uma preocupação quanto à proteção concorrencial do
direito marcário. A marca era uma arma vital na batalha contra a concorrência. Nesse aspecto, protegeu-se a marca como patrimônio empresarial,
mas os efeitos dessa tutela interessa tão somente ao seu titular ou proprietário, aquele detentor dos direitos decorrentes do registro marcário.
A sociedade identifica os grupos ou blocos empresariais pelas
marcas que são seus estandartes nos desfiles mercadológicos. Porém, há
uma carência de estudos mais aprofundados acerca dos efeitos jurídicos
do compartilhamento de marca. O triunfo de uma marca perante as
suas concorrentes e a credibilidade que ela ostenta são ativos inquestionáveis, embora de difícil mensuração na solidez de um empreendimento empresarial. A marca passa a ostentar um valor em si, passando
a ser objeto das mais diversas relações empresariais. Logo, sua ampla
negociabilidade traz uma aparente autonomia que seria capaz de isentar
das consequências do seu uso alguns agentes negociais partícipes das
cadeias de fornecimento.
Nos limites das relações entre aqueles que possuem a titularidade da marca ou o simples uso dela por meio de licenciamento e os que
34 Neste ensaio, inspira-se na ideia de catividade contratual, para identificar o que denominamos
de catividade marcária.
341
André Luiz Cavalcanti Cabral
obtêm vantagens indiretas referenciais, bem como na sua capacidade de
integrar diversos negócios jurídicos empresariais lícitos ou ser objeto de
atos ilícitos, situa-se a zona grise sobre o tema da responsabilidade pelos
atos daí consequentes.
Essa delimitação se coloca como essencial não apenas para a instrumentalidade regulatória, contudo, também, como fator de realização da verdadeira justiça social consumerista, pois afeta toda a massa
de consumidores sujeita às ofertas de mercado35. Nesse sentido, assevera-se que
É, de certa forma, a economicidade como princípio do Direito
Econômico de que fala CAMARGO36 e de sua regra do interesse social. O estudo da responsabilização civil no fenômeno marcário como
instrumento regulatório empresarial avulta de importância nas relações
massificadas em que a vulnerabilidade do consumidor37 é acentuada,
especialmente em face da intensa atração exercida pelas marcas.
Como assevera BARROSO38, o direito não mais se contenta com
a visão patrimonialista que renega a contextualização abrangente das
relações, pois a dignidade da pessoa humana como espectro axiológico do sistema e base central da ordem jurídica internacional tem como
corolário o princípio da solidariedade social, extraído do art. 3º, I da CF,
com o Direito promovendo a intensa cooperação entre os indivíduos na
realização dos fins da sociedade contemporânea, como afirmado por HIRONAKA39. O próprio Direito Civil ganha contornos existenciais, numa
visão mais solidarista40, visto que alguém usufruiu das vantagens e não
arcou com os ônus da exploração de determinada atividade ou relação.
35 “[...] o reconhecimento dos direitos do consumidor como direitos fundamentais confere nova
direção ao desenvolvimento da atividade econômica”. (BOTREL, 2009, p. 55).
36 CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Direito Econômico: aplicação e eficácia. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris Editor, 2001, pp. 101-102.
37 [...] o mito da soberania do consumidor é um reflexo do mito liberal do contratualismo,
que reduz toda a vida em sociedade – nomeadamente a vida econômica – a relações contratuais
livremente assumidas por indivíduos livres, independentes e iguais em direitos, cada um dos quais
dispõe de informação completa sobre todas as alternativas possíveis e sabe perfeitamente o que
quer. (NUNES, 2003, p. 57)
38 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 129.
39 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta. São Paulo:
USP, 2002, p. 116- 117.
40 ARAÚJO JÚNIOR, Francisco Milton e MARANHÃO, Ney Stany Morais. Responsabilidade
342
13 • DA CATIVIDADE MARCÁRIA COMO NOVO FUNDAMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL EMPRESARIAL
Costuma-se aduzir que a responsabilidade extracontratual decorre do dever geral de não lesar outrem, enquanto que a responsabilidade
contratual tem como pressuposto a existência de uma relação negocial
anterior que una os sujeitos. Atualmente, esse conceito é estendido, entendendo-se, majoritariamente, que a responsabilidade contratual abarca os danos pré-contratuais e pós-contratuais, como afirma DALLEGRAVE.41 Segundo KONDER42, a questão se mostra ainda mais conturbada
em tempos de interligação acentuada entre contratos, de mitigação do
princípio da relatividade contratual e do instituto da oponibilidade dos
efeitos contratuais, tudo à luz da funcionalização dos contratos, quando
conceitos como partes e terceiros precisam ser revisitados.
Já para MARTINS COSTA43, se a função social atua enquanto
fundamento do contrato e no modo de seu exercício, também deve ela
incidir nos efeitos daí advindos, o que abrange a responsabilização. Esses conceitos crescem de importância na questão da catividade marcária, em que todos os componentes da cadeia contratual obtêm vantagens
diretas e indiretas com a marca aposta - ainda que não tenham sido partes de contrato que tem a marca como objeto imediato - e com a atração
que ela exerce perante o público-alvo, sejam consumidores ou outros
empresários, logo há a necessidade de ponderações de ordem econômica e empresariais44 para melhor compreender a questão.
Dessa forma a noção de repartição de riscos é ínsita a de exploração conjunta de determinado empreendimento, porque permite essa redistribuição e o verdadeiro desenvolvimento o que pode ser visto como
processo de expansão45.
civil e violência urbana – considerações sobre a responsabilização objetiva e solidária do Estado
por danos decorrentes de acidentes laborais diretamente vinculados à insegurança pública. Revista
LTR. São Paulo,v. 75, n. 09, , p. 75-79, 1053- 1070, set. 2011
41 DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Responsabilidade civil no direito no trabalho. 3 ed. São
Paulo: LTr, 2008, p. 193
42 KONDER, Carlos Nelson. Contratos Conexos. Grupos de contratos, redes contratuais e
contratos coligados. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 69.
43 MARTINS-COSTA, Judith. Notas sobre o princípio da função social do contrato. Revista
literária de Direito. n. 37. São Paulo: Jurídica Brasileira, ago/set 2004, p. 191.
44 “[...] muito mais do que instrumento para o desenvolvimento a idéia de redistribuição integra
o próprio conceito de desenvolvimento”. (CALIXTO FILHO, 2002, p. 39)
45 “[...] um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam” (SEN, 2000, p. 52).
343
André Luiz Cavalcanti Cabral
Como afirma BITTAR46, a complexidade inerente às relações econômicas também é sentida na impossibilidade de ter-se uma legislação
cuja amplitude semântica seja capaz de abarcar todos os comportamentos econômicos possíveis, mormente em tempos de globalização e de atipicidade das diversas formas de estabelecimento de relações contratuais.
No direito, as mudanças não configuram necessariamente rupturas. Conforme FEITOSA, as transformações experimentadas pelo
contrato, ao longo dos tempos, não foram rupturas com a tradição anterior.47 No entanto, a dificuldade de exaustão legislativa não significa
a impossibilidade de identificação de diretrizes que sejam capazes de
reequilibrar relações disformes, de modo a efetivar a tutela de direitos
lesados ou exercidos de modo abusivo.
Assim, a responsabilidade civil existe enquanto há poder para
manter a propriedade, já que ela é o fim maior da responsabilidade civil
ao determinar o dever de recomposição patrimonial do agente causador
do dano em favor do lesado. A questão que se debate, nessa oportunidade é qual é o poder maior, qual a propriedade que deve ser privilegiada,
a do consumidor mais vulnerável, ou a do fornecedor que se beneficia
das marcas que compartilha48.
Certamente, pode-se utilizar, nesse sentido, da responsabilidade
civil para a propagação da justiça social e do reequilíbrio da relação consumerista, promovendo um desenvolvimento socioeconômico obrigacionalmente sustentável para os consumidores com base na catividade
marcária ; portanto, um novo poder em favor do consumidor vulnerável.
46 BITTAR, Carlos Alberto. Tutela dos direitos da personalidade e dos direitos autorais nas
atividades empresariais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 117.
47 FEITOSA, Maria Luiza Pereira Alencar Mayer. Paradigmas Inconclusos: Os contratos entre
a autonomia privada, a regulação estatal e a globalização dos mercados. Coimbra (Portugal):
Coimbra Editora, 2007, p. 569.
48 O poder não é, justamente, uma substância, um fluido, algo que decorria disto ou daquilo,
mas simplesmente na medida em que se admitia que o poder é um conjunto de mecanismos e
de procedimentos que têm como papel ou função e tema manter – mesmo que não o consigam
– justamente o poder. É um conjunto de procedimento, e é assim e somente assim que se poderia
entender que a análise dos mecanismos de poder dá inicio a algo como uma teoria do poder [...] as
relações, esse conjunto de relações, ou antes, melhor dizendo, esse conjunto de procedimento que
têm como papel estabelecer, manter, transformar os mecanismos de poder, pois bem, essas relações
não são autogenéticas, não são auto-subsistentes, não são fundadas em si mesmas. O poder não se
funda em si mesmo e não se dá a partir de si mesmo. (FOUCAULT, 2008, p. 4)
344
13 • DA CATIVIDADE MARCÁRIA COMO NOVO FUNDAMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL EMPRESARIAL
5. Exemplos consumeristas da aplicabilidade da
catividade marcária
Primeiramente, imagine que há um problema de aquisição na
compra de um produto de uma marca preferida no exterior - seja a tal
diretamente em uma viagem internacional ou em uma compra pela internet -,e ao chegar no domicílio do brasileiro, o consumidor observa
um defeito no produto e constata que foi lesado.
A escolha do produto pautou-se na marca, porém a indústria fabricante no Brasil é outra pessoal jurídica distinta, com quadro societário diverso e não se responsabiliza pelo produto adquirido no exterior.
O caso em exame demonstra a dificuldade prática de responsabilizar
o contratante direto, bem como de caracterizar uma relação de grupo
econômico entre o fornecedor estrangeiro e o nacional que se utiliza da
marca no Brasil.
Algumas vezes, pode-se ter uma relação direta societária, o que se
permitiria uma desconsideração da personalidade jurídica ordinária ou
inversa, mas em outras vezes não há nada além de um mero contrato de
licenciamento marcário. Contudo, reforçar-se que a marca foi o atrativo
e decisivo fator de escolha que levou o consumidor a escolher o produto.
Em semelhante caso concreto ao exemplo formulado o STJ decidiu sobre a força da marca e da publicidade no mercado global. Há
na ementa a menção expressa à “respeitabilidade da marca” e a necessidade de um equilíbrio distributivo entre o ônus das “deficiências dos
produtos” e o bônus do beneficiamento “de marcas mundialmente conhecidas” (Resp 63.981 SP49). Ocorre que tanto no exemplo concreto,
49 DIREITO DO CONSUMIDOR. FILMADORA ADQUIRIDA NO EXTERIOR. DEFEITO
DA MERCADORIA. RESPONSABILIDADE DA EMPRESA NACIONAL DA MESMA
MARCA (“PANASONIC”). ECONOMIA GLOBALIZADA. PROPAGANDA. PROTEÇÃO
AO CONSUMIDOR. PECULIARIDADES DA ESPÉCIE. SITUAÇÕES A PONDERAR NOS
CASOS CONCRETOS. NULIDADE DO ACÓRDÃO ESTADUAL REJEITADA, PORQUE
SUFICIENTEMENTE FUNDAMENTADO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO NO
MÉRITO, POR MAIORIA.
I - Se a economia globalizada não mais tem fronteiras rígidas e estimula e favorece a livre
concorrência, imprescindível que as leis de proteção ao consumidor ganhem maior expressão
em sua exegese, na busca do equilíbrio que deve reger as relações jurídicas, dimensionando-se,
inclusive, o fator risco, inerente à competitividade do comércio e dos negócios mercantis, sobretudo
quando em escala internacional, em que presentes empresas poderosas, multinacionais, com filiais
em vários países, sem falar nas vendas hoje efetuadas pelo processo tecnológico da informática e
no forte mercado consumidor que representa o nosso País.
345
André Luiz Cavalcanti Cabral
como no hipotético, a catividade marcária poderia ser fundamento objetivo e mais eficiente para o vínculo de responsabilização50. Em outro
precedente pautado na marca, a primeira turma recursal cível do TJRS
reconheceu o vínculo por meio da marca entre fabricante estrangeira e
importadora nacional51.
II - O mercado consumidor, não há como negar, vê-se hoje “bombardeado” diuturnamente por
intensa e hábil propaganda, a induzir a aquisição de produtos, notadamente os sofisticados de
procedência estrangeira, levando em linha de conta diversos fatores, dentre os quais, e com relevo,
a respeitabilidade da marca.
III - Se empresas nacionais se beneficiam de marcas mundialmente conhecidas, incumbe-lhes
responder também pelas deficiências dos produtos que anunciam e comercializam, não sendo
razoável destinar-se ao consumidor as conseqüências negativas dos negócios envolvendo objetos
defeituosos.
IV - Impõe-se, no entanto, nos casos concretos, ponderar as situações existentes.
V - Rejeita-se a nulidade argüida quando sem lastro na lei ou nos autos.
(REsp 63.981/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, Rel. p/ Acórdão Ministro SÁLVIO
DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 11/04/2000, DJ 20/11/2000, p. 296)
50 Veja-se uma possível ementa hipotética com base na catividade marcária: “DIREITO DO
CONSUMIDOR. FILMADORA ADQUIRIDA NO EXTERIOR. DEFEITO DA MERCADORIA.
RESPONSABILIDADE DA EMPRESA NACIONAL COMPARTLHADORA DA MESMA
MARCA (“PANASONIC”). CATIVIDADE MARCÁRIA. PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR.
NULIDADE DO ACÓRDÃO ESTADUAL REJEITADA, PORQUE SUFICIENTEMENTE
FUNDAMENTADO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. I - Se a economia globalizada não
mais tem fronteiras rígidas e estimula e favorece a livre concorrência, imprescindível que as leis de
proteção ao consumidor ganhem maior expressão em sua exegese, na busca do equilíbrio que deve
reger as relações jurídicas, dimensionando-se, inclusive, o fator risco, inerente à competitividade
do comércio e dos negócios mercantis, sobretudo quando em escala internacional, em que
presentes empresas poderosas, multinacionais, com filiais em vários países, sem falar nas vendas
hoje efetuadas pelo processo tecnológico da informática e no forte mercado consumidor que
representa o nosso País.
II - O mercado consumidor, não há como negar, vê-se hoje “bombardeado” diuturnamente por
intensa e hábil propaganda formadora de uma cadeia de ofertas com base nas marcas, a induzir
a aquisição de produtos, notadamente os sofisticados de procedência estrangeira, levando em linha
de conta diversos fatores, dentre os quais, e com relevo, a marca.
III – A catividade marcária advém do contexto socioeconômico em que a marca é o fator
decisivo de escolha do consumidor e se torna, portanto, vínculo jurídico de responsabilização
entre os partícipes de mercado que compartilham os signos registrados com exclusividade.
IV – Se empresas nacionais compartilham marcas internacionais e se beneficiam de seu renome,
incumbe-lhes responder também pelas deficiências dos produtos com as marcas que anunciam e
comercializam em seu segmento de mercado, não sendo razoável destinar-se ao consumidor as
conseqüências negativas dos negócios envolvendo objetos defeituosos.
(REsp BRASIL, Rel. Ministro Exemplo, Rel. p/ Acórdão Ministro Exemplo II, TURMA, julgado
em breve, DJ futuro)
51 “É legítima passivamente a importadora exclusiva de produto estrangeiro, uma vez é parte
integrante de negócio globalizado, com extensão mundial, prevalecendo-se da confiança
depositada na marca para efetuar seus negócios. Se a empresa nacional beneficia-se da marca do
produto defeituoso, deve também honrar com a sua garantia legal” BRASIL. Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul. Recurso Cível nº 71001234657 da 1ª Turma Recursal Cível. Relator: Ricardo
346
13 • DA CATIVIDADE MARCÁRIA COMO NOVO FUNDAMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL EMPRESARIAL
Percebe-se o reconhecimento jurisprudencial de que nosso ordenamento jurídico deve ser hábil a dar respostas aos problemas advindos
da ordem globalizada, logo se impõe a elasticidade de conceitos, de forma a permitir a efetiva proteção do consumidor, que não está adstrito a
delimitações territoriais estanques, mas exposto a um contexto concorrencial da globalização que ultrapassa as fronteiras.
A universalidade das trocas de bens apoia-se nas informações
também globais, o que gera a internacionalização da publicidade empresarial e de suas marcas; assim, há que se considerar que as marcas
mundialmente difundidas repercutem nas relações jurídicas travadas
em cada mercado consumidor nacional conquistado ou em disputa.
Contudo, esse fenômeno de aprisionamento das preferências dos
consumidores não ocorre apenas na seara internacional global, porque
ele se reproduz, nacionalmente e, até, regionalmente, sendo isso perceptível quando se adquiri um veículo em uma concessionária de uma
grande rede automotiva, cuja marca atrai pela antiguidade no mercado,
mas o carro apresenta problemas graves, após os serviços de reparo em
uma colisão.
Ao procurar à concessionária, o consumidor se depara com o seu
fechamento por falência e, sendo seu crédito quirografário pouco privilegiado, há possibilidades consideráveis de não ser ressarcido. Porém,
uma nova concessionária da marca da rede automotiva acaba de ser
instalada na cidade em outro local, com grupo totalmente distintos de
sócios investidores. Haveria sucessão de responsabilidade?
Pelo estabelecimento empresarial a resposta é negativa, pois a
nova concessionária instala-se em local diverso. Dessa forma, pela composição societária distinta, a teoria da desconsideração também seria
ineficiente, entretanto a marca do carro foi o elemento central da escolha do consumidor.
Infere-se disso que a nova concessionária certamente se beneficiará dos casos de sucesso da antiga e do renome construído pela marca,
mas por que não compartilha os deveres oriundos dos casos de insucesso? A catividade marcária poderia ser o fundamento de responsabilidade entre as concessionárias, como também entre essas e a concedente
automotiva, pois todos compartilham a marca, são co-utentes dela em
Torres Hermann. Porto Alegre, 24 maio 2007.
347
André Luiz Cavalcanti Cabral
suas atividades. Portanto, a internacionalidade não pode ser posta como
fragmento essencial para a composição da catividade marcária.
Precisa-se, assim, desenvolver-se uma teoria que possa dar uma
resposta efetiva aos problemas, tanto do comércio global quanto do nacional, com vistas à proteção ao consumidor pelos danos sofridos por
produtos ou serviços defeituosos. Nesse percurso, exige-se uma abrangência semântica como forma de responder as necessidades de uma
nova realidade mais complexa. Por isso, faz-se necessário uma reflexão
maior acerca de conceitos como o de “cadeia produtiva”, ou mesmo de
“grupos econômicos de fato”. Nesse sentido, a teoria aqui exposta da catividade marcária está apta a fundamentar novas configurações de grupos econômicos fáticos pelo compartilhamento de marcas, sejam elas
estrangeiras ou nacionais.
6. Conclusões
Observou-se que a marca exerce influência fundamental perante
os consumidores, que encontram nela a maior referência para as suas
escolhas mercadológicas. A marca é o verdadeiro farol no oceano de
consumo, indicando onde os consumidores navegantes são desejados,
convidando-os para atracar. Da essência liberal de sua origem, a marca
como toda propriedade também deve ser reinterpretada por uma função social. Para além dos argumentos clássicos de instrumento que serve de fomento ao desenvolvimento econômico, a função social marcária
pode construir sólido pavimento no processo de responsabilização empresarial. Estar-se-ia, tão somente, socializando-se a marca por meio de
assunção de riscos empresariais entre aqueles que patrocinam e fruem
de seu compartilhamento.
Nesse norte foi apresentada a teoria da catividade marcária como
novo fundamento para a responsabilização empresarial por compartilhamento marcário nas relações de consumo. Assim, conceitos tradicionais de responsabilização podem ser adaptados para atender a nova
realidade de cadeias de fornecimento complexas em prol da parte mais
vulnerável da relação de consumo.
Para novas realidades, novas ações são necessárias. Os grupos
empresariais se aliam em complexas redes de contratos orquestrando-se
interesses comuns. O mercado consumidor, no entanto, não consegue
348
13 • DA CATIVIDADE MARCÁRIA COMO NOVO FUNDAMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL EMPRESARIAL
visualizar a forma organizacional dos grupos econômicos formais e informais com clareza, seja por desconhecimento das formalidades legais,
seja pelas dificuldades burocráticas de acesso aos documentos necessários a tal intento.
Nesse contexto, a marca pode constituir esse elemento de identificação ou associação entre empresários de forma objetiva e de fácil
identificação, portanto há nítida potencialidade de consolidação de uma
nova concepção de uma organização empresarial não formal ou grupo
econômico de fato, pelo fenômeno de compartilhamento das marcas.
O estabelecimento de uma fundamentação jurídica para promover o desenvolvimento socioeconômico do mercado consumerista ao redistribuir os ônus empresariais entre os propagadores das mesmas marcas responde à justiça distributiva, já que esses mesmos sujeitos repartem
os benefícios da marca comum. Ao promover uma redistribuição dos
ônus empresariais entre os membros da cadeia de fornecimento, a catividade marcária contribui para a efetiva tutela reparatória do consumidor.
Para a comunidade jurídica, o tema avulta de importância e atualidade, visto que se afina com os entendimentos vanguardistas acerca
da redefinição da regulação econômica em busca do desenvolvimento
humano e sua sintonia com as novas relações engendradas na sociedade
globalizante, de forma a evitar que as injustiças sociais sejam aprofundadas, constituindo-se o Direito num instrumento de pacificação social
e equilíbrio das relações.
Nosso sistema normativo não pode fugir das interferências operadas pela ordem globalizada impondo-se a elasticidade de conceitos de
forma a permitir a efetiva proteção do consumidor que não está adstrito
a delimitações territoriais estanques, mas exposto a um contexto concorrencial da globalização que desconhece fronteiras.
Respaldando-se em posicionamentos jurisprudenciais intentouse demonstrar que o campo de aplicabilidade da catividade marcária é
amplo e merece ser mais investigado. Por último, a redefinição do conceito da responsabilidade atende a tutela dos direitos e aos objetivos
constitucionais de construção de uma sociedade mais justa e solidária,
embora não refratária da manutenção do sistema econômico e concorrencial, com base na propriedade privada, mas com efetiva função social.
349
André Luiz Cavalcanti Cabral
7. Referências
ARAÚJO JÚNIOR, Francisco Milton e MARANHÃO, Ney Stany
Morais. Responsabilidade civil e violência urbana – considerações sobre
a responsabilização objetiva e solidária do Estado por danos decorrentes
de acidentes laborais diretamente vinculados à insegurança pública.
Revista LTR, São Paulo, v. 75, n 09, p. 75-79; 1053- 1070, set. 2011
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional
contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2010.
BATEY, Mark. O significado da marca: como as marcas ganham vida
na mente dos consumidores. Rio de Janeiro: Best Business, 2010.
BAUMAN, Zigmunt. Capitalismo parasitário. Tradução de Eliana
Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2010.
BITTAR, Carlos Alberto. Tutela dos direitos da personalidade e dos
direitos autorais nas atividades empresariais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.
BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 10 ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2007.
BOTREL, Sérgio. Direito Societário Constitucional. São Paulo: Atlas,
2009.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de janeiro: Bertrand
Brasil, 2010.
CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Direito Econômico: aplicação e
eficácia. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2001.
NETO, José Affonso Dallegrave. Responsabilidade civil no direito no
trabalho. 3 ed. São Paulo: LTr, 2008.
FEITOSA, Maria Luiza Pereira Alencar Mayer. Paradigmas
inconclusos: os contratos entre a autonomia privada, a regulação estatal
e a globalização dos mercados. Portugal: Coimbra Editora, 2007.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no
Collège de France. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
350
13 • DA CATIVIDADE MARCÁRIA COMO NOVO FUNDAMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL EMPRESARIAL
GRAU, Eros Roberto. FORGIONI, Paula. O Estado, a empresa e o
contrato. São Paulo: Malheiros, 2005.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade
pressuposta. São Paulo: USP, 2002.
KONDER, Carlos Nelson. Contratos conexos. Grupos de contratos,
redes contratuais e contratos coligados. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
KOTLER, Philip. Administração de marketing. Tradução de Mônica
Rosenberg, Brasil Ramos Fernandes, Cláudia Freire. 12 ed. São Paulo:
Pearson Prentice Hall, 2006.
LISBOA, Senise. Responsabilidade civil nas relações de consumo, RT,
2001.
LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos. Buenos AiresSanta Fé: Rubinzal-Culzoni, 1999. Tomo 1.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do
Consumidor. 5 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Rt, 2006.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no Direito Privado. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999.
_______ Notas sobre o princípio da função social do contrato. Revista
literária de Direito,. São Paulo: Jurídica Brasileira, n. 37, ago/set 2004.
NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de Empresa:
teoria geral da empresa e Direito Societário. 7 ed. São Paulo: Saraiva,
2010. v. 1.
NUNES, António José Avelãs. Neoliberalismo e Direitos Humanos.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
QUESSADA, Dominique. O poder da publicidade na sociedade
consumida pelas marcas: como a globalização impõe produtos,
sonhos e ilusões. Tradução de Joana A. D. Melo. São Paulo: Futura,
2003.
SALOMÃO FILHO, Calixto. (coord) Regulação e desenvolvimento.
São Paulo: Malheiros, 2002.
SANTOS, Boaventura de Souza. (org). A globalização e as ciências
sociais. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2002.
351
André Luiz Cavalcanti Cabral
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. São Paulo:
Cultrix, 1995.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
SOARES, José Tinoco. Marca vs nome comercial: conflitos. São Paulo:
Jurídica Brasileira, 2000.
SOLOMON, Michael R. O comportamento do consumidor:
comprando, possuindo e sendo. Tradução de Luiz Carlos de Queiroz
Faria. 9 ed. Porto Alegre: Bookman, 2011.
TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São
Paulo: Método, 2003.
352